Edição 221 | 28 Mai 2007

Um estrondo desde o início

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IHU Online

“Após décadas de experimentalismos formais”, explica a professora Laura Hosiasson, “o leitor passou a compor e recompor as várias linhas narrativas e os diversos quebra-cabeças espaciais e temporais”. Para ela, a obra de García Márquez, em especial Cem anos de solidão, foi um marco desse novo momento da literatura hispano-americana. “Cem anos de solidão foi estrondoso a partir da sua primeira publicação, em 1967”, recorda.

Na entrevista concedida à IHU On-Line na semana passada, por e-mail, Laura Hosiasson destacou que a obra proporcionou a “volta à simplicidade da forma, combinada com uma crescente complexidade do argumento”, o que proporcionou, ressalta ela, “confluir mito e história política do continente”. Assim, Cem anos de solidão, que completa 40 anos em 2007, tornou-se leitura obrigatória à “qualquer jovem adulto que se julgasse moderno”.

Graduada em Licenciatura em Literatura com menção em filosofia pela Universidad do Chile, Laura Hosiasson é mestre e doutora em Letras (Língua Española e Literatura Hispano-americano) pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, ela leciona na mesma universidade.

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Qual é a importância de García Márquez, a partir, sobretudo, de Cem anos de solidão?
Laura Hosiasson -
Como disse o mexicano Carlos Fuentes, outro grande escritor do período de Gabriel García Márquez, o colombiano escreveu com Cem anos de solidão um dos livros mais divertidos que já foram escritos na América Latina. Foi um estrondo desde o início, a partir de sua primeira publicação, em 1967. A partir daí, García Márquez se tornaria o primeiro escritor latino-americano a poder se dar ao luxo de viver onde quisesse e como quisesse, impondo suas condições aos editores.

Esse fenômeno pode ter tido várias razões, mas me parece que a principal tem a ver com essa fruição que a leitura de Cem anos de solidão propunha desde as primeiras frases. Após décadas de experimentalismos formais, como os das vanguardas e do chamado ‘nouveau roman’ francês, por exemplo, em que o leitor era chamado a compor e recompor as várias linhas narrativas e os diversos quebra-cabeças espaciais e temporais; em que múltiplos narradores dividiam a tarefa de contar a partir de ângulos diferentes, o narrador de Cem anos de solidão parecia retomar o lugar de uma onisciência tradicional e vinha entregar, num tempo pretérito e majestoso, o conteúdo da fabulosa saga dos Buendía. Embora existam inúmeros saltos na linha cronológica e vaivéns temporais, eles se aglutinam em volta de um sentido lendário da trama que avança sempre na direção de seu final. Ora, esta espécie de volta à simplicidade da forma, combinada com uma crescente complexidade do argumento, à medida em que o romance avançava,  fazendo confluir mito e história política do continente e retirando de seu espectro ideológico qualquer redenção religiosa, teve um efeito tão insólito que, ao longo de toda a década de 1970, foi leitura obrigatória de todo e qualquer jovem adulto que se julgasse moderno.  Hoje, esse efeito foi neutralizado pela banalização do procedimento e certamente o romance não produz mais o impacto que teve naqueles anos. Muitos dos best sellers das décadas seguintes se utilizaram de fómulas similares; dentre eles, os romances da chilena Isabel Allende, como La casa de los espíritus, para citar só um caso.   

IHU On-Line - García Márquez teria desejado compor um retrato do povo latino-americano através da obra em questão?
Laura Hosiasson -
Podemos pensar que cada micro-história, cada pequeno drama desenvolvido entre os seres que giram em torno à saga da família Buendía, é alegoria da evolução de uma História maior, a Historia de América Latina. Uma das formas interessantes desse movimento da alegoria está na relação entre crendice, superstição e poder. A força dos poderosos está cimentada sobre formas de manipulação da credulidade dos oprimidos. A própria concepção binária do romance, entre Aurelianos e José Arcadios, na seqüência das gerações Buendía, determina oposições que se estabelecem como manifestações de crenças e de estruturas cíclicas e fechadas. Se pensarmos na origem bipartidária na história da política colombiana, nas décadas de 1840 e 1850, especialmente a partir de 1848, podemos estabelecer os paralelos diretos entre liberais (de certa forma, os José Arcadios) e os conservadores (os Aurelianos). De fato, já foi apontada a greve colombiana da companhia bananeira, entre 1884 e 1902, como o evidente antecedente histórico no episódio da chacina de 300 mil operários que simplesmente somem e que José Arcádio Segundo lembra ter testemunhado, mas cujo relato ninguém quer escutar e que, portanto, se perde no túnel do esquecimento.

IHU On-Line - Em Cem anos de solidão, é contada a saga de várias gerações da família Buendía-Iguarán. Em O amor nos tempos do cólera, que Neruda considera seu melhor livro, por sua vez, apresenta seus pais por meio das figuras de seus personagens principais, Florentino Aziza e Fermina. Que importância tem a figura da família na composição da obra de García Márquez?
Laura Hosiasson -
A estrutura familiar é, sem dúvida, um dos suportes formais de Cem anos de solidão. As entradas e saídas das personagens, nos múltiplos episódios, estão muito marcadas pelos laços de parentesco, sejam eles sangüíneos ou por aliança. A árvore genealógica é tão complicada e emaranhada que vários estudos sobre o romance apresentam-na diagramada em um esquema aparte, para ajudar na compreensão. Trata-se de quatro gerações que partem do casal primordial, José Arcádio Buendía e sua prima e mulher, Úrsula. Essa matriz incestuosa está no epicentro da trama que irá concluir com o acasalamento entre o último Aureliano e sua tia, Amaranta Úrsula. O próprio García Márquez afirmou em certa oportunidade que seu livro tratava justamente da questão da maldição do incesto. Lembremos que a saga se fecha com o nascimento de um menino com rabo de porco. Nas repetições dos nomes se inscreve uma idéia da história em espiral, reiterativa, que é também um dos vértices da narrativa. Quando os netos ou bisnetos repetem os gestos e hábitos de seus antepassados, a longeva Úrsula confirma sua impressão de que o tempo está voltando ao princípio: “Isto eu já sei de cor”, diz ela. Aqui também podemos pensar na significação mítica de toda essa engrenagem, que já foi longamente discutida a respeito do livro.

IHU On-Line - Cem anos de solidão é considerada uma obra literária enquadrada no “realismo maravilhoso”. Podemos dizer que o “realismo maravilhoso” é ainda uma estética literária valorizada?
Laura Hosiasson -
O “realismo maravilhoso” é, na verdade, um conceito teoricamente muito problemático hoje em dia, como ferramenta efetiva para a análise literária. Isto porque, se tirarmos dele os elementos pitorescos e exóticos, que são sua marca registrada, só sobram formas de representação do real muito variadas e, sobretudo, já de alguma maneira exploradas pela literatura desde os primórdios. Obras como o Ubu rei de Alfred Jarry, por exemplo, ou Os cantos de Maldoror de Lautréamont contém elementos sobrenaturais ou extraordinários que contaminam o texto com total intensidade e naturalidade. A questão está na combinação desses procedimentos com uma idéia de identidade cultural latino-americana, tal como está definida por Alejo Carpentier, no prólogo do seu romance O reino deste mundo . Neste sentido, se pensarmos no “realismo maravilhoso” como uma terminologia específica para falar de uma série de obras que se estruturaram em torno de uma vontade de incorporação do ‘autóctone’ da identidade latino-americana dentro de um espectro universal, essa categoria serve. Cem anos de solidão é uma obra do “realismo maravilhoso”, assim como o é também El reino deste mundo, mas, embora a fórmula seja sedutora, ela se esgota com uma meia dúzia de livros. Ela se torna insuficiente para dar conta de outras obras do período, de escritores como Vargas Llosa, Cortázar, Jorge Luis Borges, Roa Bastos ou o próprio Carpentier, em que a aparição de elementos cosmopolitas ou a carência do pitoresco já as lançam em outro âmbito de repercussões.

Em 1996, um grupo de jovens escritores hispano-americanos, encabeçados pelo chileno Alberto Fuguet, decidiu compor uma antologia visando, justamente, a armar uma frente contra o que eles enxergavam como uma estratégia editorial européia e norte-americana para a publicação de livros hispânicos no exterior. O episódio desencadeador teria se dado quando uma prestigiosa editora dos Estados Unidos teria descartado duas dentre três obras selecionadas por não serem suficientemente ‘real maravilhosas’. Agora, com a publicação de McOndo  (evidente paródia de Macondo), estes jovens escritores iriam selecionar unicamente aquelas obras sem nenhuma pretensão de identidade latino-americana nem de expedientes exóticos ou rurais. Em McOndo “os temas e estilos são variados e muito mais próximos da aldeia global ou da mega rede”.

O que interessa aqui é ressaltar que o rótulo do “realismo maravilhoso” se transformou em possibilidade atrativa e eficiente de grandes sucessos editoriais. Mas, no que diz respeito à compreensão de um sistema das literaturas da região, esse rótulo fica longe de prestar algum serviço.

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