Edição 221 | 28 Mai 2007

“Cem anos de solidão é uma espécie de microcosmo da América Latina”

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IHU Online

Nos livros de García Márquez, afirma o Prof. Dr. Eduardo F. Coutinho, “encontramos lado a lado episódios que poderiam ser chamados de “realistas” no sentido tradicional do termo e que poderiam estar presentes em qualquer romance realista ou naturalista do século XIX”. Para ele, García Márquez se diferencia dos outros escritores de sua época por empregar “lado a lado o real e o sobrenatural transitando normalmente de uma categoria para a outra”, explica.

O objetivo do autor ao escrever, expressa Coutinho, é mostrar que o universo cultural latino-americano não costuma separar o real e o irreal “como se fossem compartimentos estanques, mas, ao contrário, as vê como elementos que convivem e se complementam”. Graduado em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Literatura Comparada pela University of North Carolina e doutor em Literatura Comparada pela University of Califórnia, atualmente Eduardo F. Coutinho é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou as obras Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993) e Literatura comparada na América Latina: ensaios (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003). Organizou também os livros Fronteiras imaginadas: cultura nacional/teoria internacional (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001) e Literatura Comparada: textos fundadores (Rio de Janeiro: Rocco, 1994), este em colaboração com Tania Franco Carvalhal. É autor ainda dos Cadernos IHU Idéias de número 73, intitulado Tradição e ruptura na obra de Guimarães Rosa. Essa publicação está disponível no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu). Confira abaixo a entrevista concedida por Coutinho à IHU On-Line por e-mail.

IHU On-Line - García Márquez, em crônica publicada em 1979, disse que os escritores latino-americanos deviam reconhecer que a realidade é melhor escritora que eles. O senhor acha que, através de suas histórias de ficção, García Márquez tenta contar a história do seu povo e a realidade colombiana?
Eduardo F. Coutinho -
Com certeza. García Márquez em suas obras está o tempo todo falando de sua realidade, e não apenas da realidade colombiana, mas latino-americana como um todo. E, o que é interessante, para falar da realidade ele emprega uma técnica que se tornou conhecida como “realismo mágico” ou “maravilhoso”. Isso porque a sua preocupação era apreender a realidade em tantos de seus aspectos quanto possível, e a realidade latino-americana tinha para ele uma feição múltipla que incluía um lado lógico-racionalista, proveniente da colonização européia e um lado mítico-sacral, oriundo da tradição cultural indígena e dos africanos trazidos para o continente como escravos. Assim, em seus livros, encontramos lado a lado episódios que poderiam ser chamados de “realistas” no sentido tradicional do termo e que poderiam estar presentes em qualquer romance realista ou naturalista do século XIX – como, no caso de Cem anos de solidão, a greve e o massacre dos operários da companhia bananeira – e episódios que seriam vistos como mágicos – como, ainda na mesma obra, os casos de ressurreição (Melquíades) ou de levitação (Remédios a Bela ou o Padre Nicanor Reyna). Mas o ponto fundamental é que García Márquez relata todos esses episódios tão distintos num mesmo tom, neutralizando a oposição tradicional entre “real” e “irreal”. Não é à toa que ele declarou em uma de suas entrevistas que levou dezesseis anos para escrever Cem anos de solidão, não pela narrativa em si, que ele já havia concebido de antemão, mas porque estava buscando o tom exato de narrar, tendo-o encontrado finalmente na maneira com que sua avó relatava episódios de caráter sobrenatural com a naturalidade de alguém que acreditava piamente em tudo. 

IHU On-Line - Com a tradução do romance Cem anos de solidão para o inglês, Gabriel García Márquez se tornou a voz mais proeminente do movimento denominado “realismo maravilhoso”.  Especialistas dizem que autores desse movimento, como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa retratam a América Latina de maneira mágica e, ao mesmo tempo, misteriosa. Especificamente em Cem anos de solidão, qual é o objetivo do autor?
Eduardo F. Coutinho -
O que esses autores têm em comum é o fato de terem pertencido a uma geração que projetou a narrativa latino-americana no panorama internacional, mas, na realidade, suas obras são bastante distintas. Todos eles, é verdade, apresentam um ponto em comum, o questionamento da lógica racionalista européia, que havia sido incorporada pelos escritores latino-americanos de gerações anteriores, mas a maneira como realizam esse questionamento em suas obras é bastante distinta. Borges  e Cortázar, por exemplo, servem-se com mais freqüência da categoria do “fantástico”, que fica numa linha divisória entre o real e o sobrenatural, mas sem extrapolar, a não ser em algumas situações especiais, completamente para o plano da sobrenaturalidade; já García Márquez emprega lado a lado o real e o sobrenatural, transitando normalmente de uma categoria para a outra. Seu objetivo, entre outros, é mostrar que o universo cultural latino-americano não costuma separar essas categorias como se elas fossem compartimentos estanques, mas, ao contrário, as vê como elementos que convivem e se complementam, não sem certa dose de tensão. 

IHU On-Line - O escritor mexicano Sergio Pitol disse certa vez que, se não fosse por García Márquez, milhares de leitores de todo o mundo não teriam tocado em algum livro latino-americano e nem sequer saberiam que em nosso continente existe uma cultura. O senhor concorda com essa afirmação? García Márquez exerce, enquanto escritor, um papel tão fundamental para a divulgação da literatura da América Latina?
Eduardo F. Coutinho -
A afirmação de Sergio Pitol contém certa dose de hipérbole, uma vez que já muitos de nossos autores eram conhecidos na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, e já tinham obras traduzidas em diversos idiomas, mas eu compartilho de seu entusiasmo a respeito do impacto que teve a obra de García Márquez, e, em especial, o livro Cem anos de solidão. O sucesso desse romance despertou o interesse dos editores europeus e norte-americanos pela literatura latino-americana e fez com que eles começassem a publicar suas obras. O resultado foi a projeção internacional de toda uma produção literária de qualidade, mas ainda muito restrita ao seu contexto de origem. Na esteira de Cem anos de solidão, muitas obras de autores latino-americanos contemporâneos passaram a ser lidas e apreciadas no exterior, mesmo algumas que já tinham sido inclusive traduzidas e premiadas. Nesse sentido, García Márquez constitui um marco na história da literatura latino-americana. Sua obra, além disso, passou a influenciar escritores em todas as partes do mundo, principalmente com questões como a do emprego do “realismo mágico” ou “maravilhoso” a que nos referimos antes e que esteve no início associado à busca de identidade cultural. 

IHU On-Line - Partindo do princípio de que a maioria das obras de García Márquez narram histórias fictícias, e no caso de Cem anos de solidão, em específico, a história de uma pequena cidade, é possível que sua produção tenha sido influenciada pelo cinema ou pelas teledramaturgias, ou, ao contrário, sua obra acabou influenciando a produção de documentários, filmes e novelas?
Eduardo F. Coutinho -
 É sempre uma questão delicada e bastante complexa dizer-se que obra influenciou a outra, principalmente quando se trata de formas distintas de expressão, mas não há dúvida de que a obra de García Márquez tem forte apelo popular, máxime pelo resgate que ela faz da velha técnica de narrar histórias, vinda já desde As mil e uma noites , e do uso do “realismo maravilhoso” com o qual o autor, ao narrar ao mesmo tempo episódios realistas concretos e sobrenaturais, busca expressar, de maneira mais próxima, o imaginário do homem comum latino-americano. Assinale-se ainda o fascínio que o livro exerce pela questão da saga familiar, pelo relato do cotidiano de uma comunidade que constituía uma espécie de microcosmo da América Latina. Todos esses aspectos aproximam a obra de um gênero popular como a teledramaturgia e de um meio de expressão como o cinema, voltado para um público amplo. 

IHU On-Line - Poderíamos estabelecer uma aproximação entre García Márquez – sobretudo na construção do “realismo maravilhoso” de Cem anos de solidão – e Guimarães Rosa, este com seu cenário de dualismo e linguagem aproximada à de Joyce em Grande sertão: veredas ou em contos de A terceira margem do rio?
Eduardo F. Coutinho -
A aproximação entre os dois autores reside no fato de que ambos questionam a lógica racionalista como única forma de apreensão do real e enveredam por uma literatura que busca substituir a visão excludente da produção canônica tradicional por outra marcada por uma perspectiva mais ampla ou inclusiva que contemple ao mesmo tempo diversas possibilidades. Só que eles o fazem por caminhos distintos. Em Rosa, por exemplo, não há “realismo mágico” ou “maravilhoso”, e mesmo o fantástico é raro; ele fica no plano do insólito ou da mera indagação, sem passar para o plano do sobrenatural, tão presente em García Márquez.  No Grande sertão: veredas, por exemplo, que foi a obra citada, o elemento sobrenatural é insinuado com grande freqüência, mas não aparece em momento algum como entidade concreta.  A figura do demônio é mostrada como parte integrante da visão de mundo do homem do sertão, mas ela não toma forma concreta na narrativa. Sua presença chega a ser sentida pelo protagonista Riobaldo, mas ela não toma corpo. Do mesmo modo, no conto que dá título ao volume A terceira margem do rio, a situação narrada é insólita – a de um homem passar o resto da vida numa canoa para cima e para baixo de um rio –, mas não ultrapassa para o plano da sobrenaturalidade, uma vez que as condições básicas de sobrevivência (alimentação e agasalho) lhe são supridas pelo filho. No que diz respeito à linguagem, as duas obras são bastante distintas. García Márquez se serve em geral de uma linguagem fluida, corriqueira, de cunho jornalístico, em que predomina grande preocupação com o relato, com a velha técnica de narrar, embora utilize recursos por vezes bastante sofisticados, como as antecipações e recuos da narrativa, mas não há nada em sua linguagem que se aproxime do labor de ourivesaria que Rosa constantemente realiza e que o aproxima de Joyce. Creio que a aproximação mais justa no caso de García Márquez seria com a linguagem de Faulkner, por exemplo. 

IHU On-Line - García Márquez escreveu, com Vargas Llosa, o livro A novela na América Latina.  Poderia nos dizer qual é a importância de ambos para a concepção de uma literatura latino-americana?
Eduardo F. Coutinho -
A importância de ambos é enorme. Tanto um quanto o outro tiveram um papel bastante significativo na projeção da literatura latino-americana no plano internacional.  Antes do sucesso de Cem anos de solidão, Vargas Llosa já havia conquistado um prêmio importante com a publicação de La ciudad y los perros (Batismo de fogo)  e já estava tornando-se conhecido na Europa, e García Márquez foi quem deu o passo decisivo nessa direção.  Eles foram figuras de destaque na chamada geração do boom da narrativa latino-americana e despertaram, com o sucesso de seus livros, o interesse por outros autores, também de excelente nível, mas ainda menos conhecidos. Além disso, com o livro citado, A novela na América Latina, chamaram atenção para os aspectos comuns de suas obras, bem como da de outros autores latino-americanos do momento, mostrando que a literatura de qualidade que se produzia no continente àquela época não era um fenômeno restrito a um ou outro autor, mas algo coletivo, de toda uma geração. A obra de ambos é vasta e continua agradando tanto ao meio intelectual quanto ao leitor comum. Ela é hoje amplamente estudada no meio universitário e a fortuna crítica de ambos os autores é das maiores da literatura hispano-americana contemporânea. O número de edições se sucede de maneira extraordinária e cada vez há mais traduções para idiomas distintos.

IHU On-Line - Cem anos de solidão tende a organizar sua narrativa em torno de grandes teorias acerca da identidade cultural e política latino-americana. O que García Márquez tentou transparecer por meio de sua obra?
Eduardo F. Coutinho -
Foi preocupação de García Márquez produzir uma obra que estivesse voltada para a realidade cultural latino-americana, marcando suas diferenças com relação à produção literária européia e norte-americana que integravam o chamado cânone ocidental.  Daí a sua crítica tão veemente à lógica racionalista, cartesiana, que ele considerava própria dos colonizadores europeus, e seu uso do “realismo mágico” ou “maravilhoso”, que via como uma reação à tirania daquela lógica. Segundo ele, o continente latino-americano não podia ser moldado por parâmetros próprios da visão de mundo do conquistador europeu, uma vez que era formado por componentes distintos do ponto de vista histórico, cultural, étnico, social, político, religioso etc., e foi isso que ele tentou mostrar em Cem anos de solidão, obra que por isso mesmo foi vista como um microcosmo da América Latina. A obra relata a saga de uma família, e, por extensão, de toda uma comunidade, latino-americana, durante cem anos, que corresponde a um percurso do gênesis ao apocalipse, traduzindo, metonimicamente, as etapas por que passou o continente, e refletindo criticamente sobre a sua história.

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