Edição 220 | 21 Mai 2007

“Igreja que deseja ser ouvida numa cultura pós-cristã precisa ter um testemunho forte, crível e consistente, que acompanhe o discurso”

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IHU Online

Assim que chegou em Aparecida, para a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, a teóloga Maria Clara Bingemer respondeu, por e-mail, as questões que a redação da revista IHU On-Line havia lhe enviado e durante a semana enviou comentários complementares sobre a conferência.

A professora do departamento de teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da mesma universidade, acredita que “o Papa tem razão ao apontar a ditadura do relativismo. Vivemos numa sociedade que privilegia a cultura de sensações e que relativiza e desabsolutiza a tudo em nome do prazer dado ao eu”. E dispara: “A mulher carrega a Igreja nas costas”. Bingemer é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia e doutora em Teologia Sistemática. Ela concedeu uma entrevista sobre os jesuítas na edição número 183 da IHU On-Line, de 5 de junho de 2006.

IHU On-Line - É possível relacionar, no contexto da sociedade brasileira, os momentos preparatórios às Conferências do Rio de Janeiro, em 1955, e a V Conferência do CELAM, em Aparecida? Que semelhanças e diferenças podemos sublinhar?
Maria Clara Bingemer -
A Conferência do Rio de Janeiro, em 1955, era uma primeira tentativa, ainda antes do Concílio Vaticano II, de reforçar a colegialidade episcopal no continente. Havia toda uma expectativa e o ensaio de fazer algo novo, ainda não tentado nestas latitudes, mas algo que já existia na Igreja como realidade latente. A prova é que a colegialidade episcopal foi uma das tônicas do Concilio, que vai terminar dez anos depois da Conferência. Hoje estamos a mais de quarenta anos após o Concílio. A colegialidade episcopal foi proclamada como necessária, foi experimentada e implementada em várias conferências episcopais pelo mundo inteiro, mas infelizmente temos que constatar que houve um recuo na mesma. Reforçou-se o poder dos ordinários locais e somente algumas conferências episcopais latino-americanas, como a brasileira, ainda procura vivê-la, mas já sem o vigor e a visibilidade de antes. Creio que isso é o que eu mais gostaria de salientar entre uma conferência e outra. 1955 era o ano de eclodir de uma novidade que iria alimentar os próximos passos do episcopado continental. 2007 já recolhe um caminho andado, mas constatando dolorosas perdas que aconteceram pelo caminho. Esperemos que Aparecida resgate o espírito que havia em 1955 e se expressou de forma tão excelente em Medellín, sendo continuado por Puebla. O interregno que representou Santo Domingo deixou um vácuo que vai custar trabalho preencher.
  
IHU On-Line - O Papa, em várias ocasiões, incentiva a apresentar a verdade de Jesus Cristo frente à ditadura do relativismo. Entre relativismo e apresentação da verdade, como podemos lidar com o pluralismo religioso vigente em nossa realidade latino-americana?
Maria Clara Bingemer -
Pluralismo não necessariamente tem que rimar com relativismo. Creio que o Papa tem razão ao apontar essa ditadura do relativismo. Vivemos numa sociedade que privilegia a cultura de sensações e que relativiza e desabsolutiza a tudo em nome do prazer dado ao eu. Nesse sentido, a verdade que o Evangelho apresenta – a do amor como o de Jesus Cristo, amor gratuito, radical e oblativo, - pode fazer contraponto a esse relativismo que acaba dissolvendo as referências, as convicções e transformando o ser humano em um consumidor de tudo que existe. Nesse sentido, os livros do sociólogo Zygmunt Bauman , Amor líquido , Vida líquida  etc., fazem uma fina análise sobre a situação que vivemos. Porém, como disse a princípio, relativismo não quer dizer negação do pluralismo e do diálogo com o diferente. Ao contrário, o diálogo com o diferente, o viver em um mundo plural, exigem uma identidade bem ancorada e respaldada por valores claros e consistentes. Creio que o pluralismo religioso vigente em nosso continente terá muito a ganhar com um diálogo sério, honesto e objetivo que se abra à diferença do outro sem fazer concessões fáceis naquilo que constitui sua verdadeira identidade.
   
IHU On-Line - O documento que orienta a V Conferência Latino-Americana apresenta uma identidade de discipulado com amplas conseqüências sociais, éticas. Você considera que esta realidade está sendo vital na vida dos cristãos ou é uma proposta que ainda está muito longe?
Maria Clara Bingemer -
Não há um documento que orienta a V Conferência. O documento de síntese não é um documento de trabalho. Apenas recolhe todas as observações das diversas conferências episcopais sobre o documento de participação que não agradou muito. No entanto, como sempre acontece em ocasiões em que há um volume muito grande de observações, as contribuições da CNBB, por exemplo, que foram muito boas e corajosas, não foram aproveitadas em sua integralidade. E justamente elas é que traziam mais contribuições na linha da ética social. Portanto, acredito que com relação a Aparecida, tudo está ainda por fazer, há que se esperar a reunião para ver o que acontecerá. Creio que hoje vivemos uma realidade em que a preocupação social não é central na vida dos cristãos. Foi substituída pela gratificação pessoal de experiências de cunho fortemente afetivo e, às vezes, alienante. A estratégia para resgatar as duas vertentes – a experiencial e a social – creio que será o grande desafio para a Igreja católica na América Latina hoje.

IHU On-Line - A cultura de hoje é pós-cristã. Tratando-se da evangelização, quais são os caminhos para dialogar em contextos tão diferentes? 
Maria Clara Bingemer -
Creio que a primeira coisa é tomar consciência e aceitar esse fato de que a cultura é pós-cristã. Aceitar que o momento áureo de difusão, penetração e hegemonia do cristianismo histórico passou. Hoje temos uma outra realidade e diante dela a evangelização deve posicionar-se. A meu ver, ainda vige o grande documento do Papa Paulo VI , "Evangeli Nuntiandi", que diz que "o homem de hoje não escuta mais os mestres. Escuta as testemunhas. E se escuta os mestres, é porque são testemunhas". Creio que uma igreja que deseja ser ouvida numa cultura pós-cristã precisa ter um testemunho forte, crível e consistente acompanhando seu discurso. Não um discurso cheio de palavras que não têm credibilidade porque não se traduzem em práticas concretas. Por que Madre Teresa  pode ser criticada como conservadora, mas é unanimemente considerada uma santa? Por seu testemunho e nada mais. Portanto, acho que chegamos a uma época onde a Igreja precisa, por um lado, facilitar a que as pessoas tenham a experiência de Deus e, por outro, fazer com que o testemunho da Igreja tenha credibilidade. Caso contrário, ela falará no vazio, porque não há campo de aterrissagem nem para as normais morais nem para as verdades dogmáticas que ela enuncia.
  
IHU On-Line - A recente notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre duas obras de Jon Sobrino  influencia a V Assembléia da Conferência Episcopal Latino-Americana em Aparecida?
Maria Clara Bingemer -
Certamente foi um grande baque a notificação a Jon Sobrino. Ainda mais que foi interpretada como um tiro final, de misericórdia, na Teologia da Libertação. No entanto, depois do discurso do Papa na abertura da V Conferência, onde foram abordados temas sociais e políticos, creio que fica claro que não é essa a intenção de Bento XVI. Creio que a atitude de Jon Sobrino, discreta, dialogando com o Vaticano sempre através de seu superior geral, será o melhor recurso para que a verdade venha à tona e verifiquem que seus escritos não têm nada de herético nem contrário à fé católica, como, aliás, afirmam expressamente trinta teólogos consultados por ele mesmo.
  
IHU On-Line - Um ponto muito importante, que precisa de avanços concretos e efetivos, é o reconhecimento da presença da mulher na Igreja, do significado eclesial e da dimensão ministerial de sua atuação, e de sua imprescindível participação na vida e na missão da Igreja. O tratamento dado a estas questões nos documentos preparatórios estão contribuindo para isto? 
Maria Clara Bingemer -
Não. Porém o Papa em seu discurso de abertura falou do mal do machismo. Foi em um contexto um pouco limitado: a família. Mas acho que desde aí se pode pegar um gancho bom para prosseguir a reflexão e a contribuição. Creio que é patente para todos os bispos que, sem a mulher, a Igreja se esvazia irremediavelmente. Mais de 90% dos coordenadores de comunidades de base são mulheres. Igualmente o são cada vez mais as catequistas, as teólogas, as mestras espirituais. Ou seja, a mulher carrega a Igreja nas costas. É um absurdo que participe tão pouco nos níveis de decisão. Sei que o Brasil quer intervir neste sentido. Tomara que consiga contagiar os demais países com sua reflexão.
   
IHU On-Line - Como está hoje a questão do protagonismo dos leigos e leigas, tão enfatizado em Santo Domingo?
Maria Clara Bingemer -
Creio que também é patente para todos que se não houver um laicato adulto que assuma a tarefa da evangelização, essa tarefa chegará a muito poucas pessoas. A missão não será continental se um laicato adulto não a assumir. A questão do protagonismo dos leigos de Santo Domingo avançou um pouco, mas não o suficiente para isto. Esperemos que seja fortemente sublinhada em Aparecida.
 
IHU On-Line - A V Conferência, por sua vez, prevê um encaminhamento posterior à realização da Conferência: ou seja, de uma grande missão continental para os anos de 2007 a 2011. O que podemos esperar?
Maria Clara Bingemer -
Podemos esperar ver uma Igreja em estado de missão. Mas, para que isso aconteça, é necessário ver uma Igreja discípula, que escuta e aprende, que dialoga e observa, que rumina o que observou. Assim estará anunciando a Jesus Cristo e não a si mesma, o que é condição sine qua non para que aconteça a missão universal que todos esperam.

IHU On-Line - Qual o impacto do discurso do papa na abertura da conferência? Quais as luzes e as sombras?
Maria Clara Bingemer -
O discurso do Papa na abertura da Conferência superou as expectativas. Há alguns pontos que ele tocou que são pistas preciosas para que a Conferência trabalhe nos dias que seguem. Destaco:

1. A denúncia do machismo. Embora tenha ficado restrita à família, abre espaço para se discutir o machismo em sentido mais amplo. Nesse sentido, espera-se que o silêncio que pesa sobre a mulher seja dissipado pelo menos em alguma medida. A CNBB foi corajosa e fez propostas concretas nesse sentido. Espera-se conseguir recolher algo dessa riqueza.

2. A Bíblia. A ênfase dada pelo Papa de que a formação para o discipulado tem que ser feita a partir da palavra de Deus foi impressionante. Deteve-se longo tempo nisso. A meu ver, foi uma abertura importante que vai dar muito de si, sobretudo quando se cheguem às pistas pastorais. Todo o esforço de leitura popular da Bíblia, que já acontece há décadas no continente, poderá ser resgatado a partir daí.

3. A continuidade com outras conferências. O Papa mencionou explicitamente essa continuidade, o que significa que vê Aparecida dentro do fio condutor da caminhada da Igreja do continente.

4. Falou também dos leigos como atores prioritários da missão continental. Referiu-se, sobretudo, aos leigos dos movimentos, deixando de lado as CEBs e outras realidades laicais.

5. Como sombra principal fica o início do pronunciamento, com a referência pouco pluralista às culturas indígenas e às outras religiões. Muitos estão criticando essa posição que consideram um tanto pré-conciliar.

6. Finalmente, é de se ressaltar com extrema alegria o pronunciamento explícito do Papa sobre a injustiça estrutural e da opção pelos pobres. Foi algo extremamente positivo que vai dar margem a que apareça no documento o resgate e o desagravo a isso, que é a marca da América Latina e que pareceu ficar escondido em Santo Domingo.

IHU On-Line - Na primeira semana da conferência, por onde ela vai? O que é possível perceber? Que caminhos abre e que caminhos fecha?
Maria Clara Bingemer -
Há esperança. Apesar da grande heterogeneidade, há um clima de escuta e atenção fraterna, sem posições tomadas previamente e com abertura respeitosa. Espera-se que possa sair um documento que atenda às esperanças do povo de Deus na América Latina.  Há alguns consensos, como a posição crítica diante da globalização e a priorização da Amazônia como tesouro de todo o Continente e não só do Brasil. Creio que se pode esperar um documento aberto, pelo menos extra-eclesialmente. Intra-eclesialmente a coisa já é mais complicada. Creio que algumas das propostas da CNBB não serão assimiladas, notadamente as que dizem respeito à nova ministerialidade laical e à privação em que vive o povo de Deus com relação à Eucaristia por falta de clero.

IHU On-Line - Qual é a participação e a contribuição dos teólogos/as da Teologia da Libertação?
Maria Clara Bingemer -
Creio que a Teologia da Libertação permanece como o grande pano de fundo de elaboração da opção pelos pobres, que seguramente será retomada e mencionada com destaque no documento final. Há contribuições da Teologia da Libertação que já são patrimônio da Igreja, e é bom sentir que não serão descartadas. Pelo menos na delegação brasileira, há um significativo número de bispos que certamente se pronunciarão nesse sentido.

IHU On-Line - A notificação a Sobrino tem impacto na Conferência?
Maria Clara Bingemer -
Não vi nada explícito.  É um assunto que só se menciona nos corredores. Seria excelente que algum bispo ou grupo de bispos mencionasse a questão diretamente. Mas isso é difícil, parece-me, pois é abrir um confronto direto com Roma, coisa que me parece que os delegados e a organização da Conferência não desejam de modo algum. Em todo caso, a contribuição da Teologia de Sobrino certamente se fará presente na cristologia do documento.  Pelo menos assim esperamos. Enquanto assessores, faremos todo o possível para isso.

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