Edição 220 | 21 Mai 2007

A contribuição de Charles Taylor à autonomia na Modernidade

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Para o filósofo brasileiro Paulo Roberto Monteiro de Araújo, docente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, especialista em Charles Taylor, “talvez o aspecto mais importante da Ética do Reconhecimento seja a idéia de que não há um centro gravitacional que possamos definir o homem por meio de um único prisma. A maneira que temos para solidificar a autonomia pode ser compreendida por meio dos chamados referenciais significativos culturais e de valores, cujos núcleos estão na vivência comunitária”. As afirmações foram feitas na entrevista que Araújo concedeu por e-mail à IHU On-Line na última semana, antecipando aspectos que irá abordar em seu minicurso A ética e a crise da modernidade. Uma leitura a partir da obra de Charles Taylor, a ser ministrado nas tardes de 22 e 23-05-2007.

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cursou mestrado em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) com a dissertação A fragmentação da eticidade na sociedade civil burguesa na Filosofia do Direito em Hegel. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cursou doutorado em Filosofia com a tese Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. É autor de Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento (São Paulo: Editora Loyola, 2004) e Identidades Contemporâneas: criação, educação e política (Porto Alegre: Editora Zouk, 2006).

IHU On-Line - Como a obra de Charles Taylor pode nos auxiliar a compreender a ética e a crise da modernidade?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Taylor compreende a ética não como dever no sentido kantiano, mas como modo de realização do agente humano por meio de ações no espaço público, que expressem os seus valores. Daí a importância de sabermos quais são as nossas fontes valorativas, pois são elas que possibilitam a elaboração e construção da nossa identidade ético-cultural. Ao sabermos das nossas fontes, podemos nos posicionar de forma mais crítica nos espaços públicos, onde ocorrem os conflitos humanos. Quanto à crise da modernidade, na verdade, Taylor salienta que, primeiramente, é preciso elaborar uma espécie de mapa para podermos perceber inicialmente as diversas fontes culturais e filosóficas que contribuíram para a formação do Ocidente moderno e contemporâneo. Taylor se preocupa em mostrar, principalmente em seu livro As fontes do self, que a construção do Ocidente moderno não se limitou somente às fontes filosóficas e culturais fundadas em uma razão procedimental, isto é, auto-suficiente, que tenta dar conta das ações dos indivíduos de modo pontual, sem qualquer caráter incorporador dos significados que vivenciamos em nossas existências humanas. A intenção de Taylor é recuperar aquelas fontes culturais e filosóficas vinculadas à expressão das identidades humanas. Daí a importância de Herder  para compreendermos que o homem está lançado nas diversas formas de expressão lingüística como formas múltiplas da elaborar as identidades humanas.

IHU On-Line - Quais aspectos destacaria sobre a ética do reconhecimento de Taylor e como eles podem ajudar a solidificar a autonomia do sujeito moderno?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo –
Talvez o aspecto mais importante da Ética do Reconhecimento seja a idéia de que não há um centro gravitacional que possamos definir o homem por meio de um único prisma. A maneira que temos para solidificar a autonomia pode ser compreendida por meio dos chamados referenciais significativos culturais e de valores, cujos núcleos estão na vivência comunitária. Cabe lembrar que Taylor não vê a autonomia como um conceito desenvolvido por meio do indivíduo isolado, que possui uma capacidade mental para discernir racionalmente a si e o mundo. A autonomia se desenvolve no indivíduo no plano dialogal das suas práticas lingüísticas comunitárias. É claro que Taylor não nega a razão como elemento que funda o processo de autonomia, mas o que ele quer dizer é que a razão limitada a si mesma, isolada e abstrata, não possibilita que o agente humano incorpore significados de valores culturais que lhe permitam criar uma rota de ação de acordo com tais valores incorporados. Ser autônomo é agir impulsionado por uma configuração moral e cultural provenientes de um modo de ser comunitário. A modernidade desenvolve o conceito de autonomia, embora só a perspectiva de uma autonomia fundada em uma racionalidade isolada seja considerada entre nós ocidentais. Eis o motivo de Taylor se preocupar com formas de autonomia fundadas nos diversos modos de ser dos chamados agentes humanos.

IHU On-Line - A ética do reconhecimento seria a mais desejável para fundamentar o agir autônomo do sujeito? Por quê? Há nela um dever-ser que possa embasar esse agir?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Temos que lembrar que desde Hegel essa dicotomia “númeno/fenômeno” foi superada. Hegel em sua Fenomenologia do espírito faz um enorme trabalho conceitual para mostrar que a essência (o famoso em si – an sich) está internamente vinculada à consciência (o famoso para si – für sich). Para Hegel não há esta separação essência e consciência, sujeito e objeto. Não é por acaso que Hegel diz que Kant faz uma filosofia do entendimento e não da razão, pois é o entendimento que tende a fazer tais separações entre sujeito e objeto. É na linha de Hegel, pelo menos inicialmente, que Taylor desenvolve o seu pensamento. Daí Taylor não seguir uma base kantiana para elaborar as suas concepções éticas. Para ele, falar em determinismo, e aqui cabe também lembrar, que nem Hegel e nem Kant são deterministas, é cair em modelos cientificistas. 

IHU On-Line - A que você atribui a crise da modernidade: a uma ética individualista ou essa ética individualista é resultado da crise da modernidade? Qual é o contexto em que surge essa crise?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Na verdade, o individualismo nega qualquer forma de ética, pois a ética pressupõe o outro. No entanto, o individualismo é resultado da fragmentação da vida comunitária moderna. O próprio Hegel em sua Filosofia do Direito já apontava tal problema, na parte que ele trata da sociedade civil burguesa. A crise que a modernidade traz em sua temporalidade existencial se vincula ao desenvolvimento da subjetividade, não daquela em que o homem se desenvolve como sujeito dos seus desejos, em um sentido psicanalítico, mas daquela em que o homem constrói fins particulares, esquecendo assim completamente do outro.

IHU On-Line - Segundo Taylor, a sociedade democrática atual está enferma de três males éticos: o individualismo, o desencanto do mundo, relacionado com uma racionalidade tecnológica e instrumental e, por último, uma perda da liberdade. Como a democracia pode ser revitalizada a partir das idéias desse filósofo?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Taylor diz que quando não possuímos a consciência das nossas fontes morais, nos sentimos como náufragos, sem rumo. Para que as democracias não se tornem simples formalidades políticas no que se referem às ações humanas em busca da realização do bem comum, é preciso que os cidadãos desenvolvam autenticamente as suas identidades humanas. O problema da autenticidade da identidade está vinculado ao próprio modo de vida moderna, em que o grau de instrumentalização da existência humana bloqueia qualquer avaliação por parte dos homens em relação à sua configuração moral. Sem formas de configuração moral, não há como os cidadãos se posicionarem politicamente frente aos problemas que ocorrem no espaço público. Daí a idéia de naufrágio de Taylor. Para que haja práticas democráticas no interior das sociedades, é preciso que os seus cidadãos desenvolvam aquilo que Taylor chama de Avaliação Forte, isto é, julgamentos fundados em concepções morais (isto não quer dizer moralistas).

IHU On-Line - Nesse sentido, há uma equiparação entre individualismo e autonomia? Quais são os limites e as possibilidades entre essas duas opções?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Nesta linha de raciocínio que estamos seguindo, individualismo não combina em nada com autonomia, pois esta pressupõe, aliás graças ao próprio Kant, sempre o outro. O individualismo, apesar de ser algo enraizado em nossas práticas cotidianas, não tem a capacidade, e isto me parece evidente, de compreender as premissas antropológicas dos valores humanos. Daí a sua incapacidade de sair do seu plano egocêntrico. Fechado em si mesmo, o homem contemporâneo não encontra motivação para buscar o seu real self, isto é, a sua autenticidade como pessoa. O domínio dos processos de racionalização das ações humanas também contribui para a mecanização da vida dos indivíduos, que se limitam a reproduzir formas comportamentais sem qualquer fundamentação significativa na instância dos valores morais. Não é por acaso que Taylor vê no utilitarismo e no naturalismo os modelos de pensamento que contribuíram para o desencantamento em relação à procura por articulações significativas do bem humano. Eis o motivo da preocupação do homem passar a ser a relação entre o custo e o benefício, e não mais as suas ações como humano. Daí buscar formas mais eficazes por intermédio das ciências e das técnicas é o que motiva as ações humanas nas sociedades contemporâneas.

IHU On-Line - Taylor está a quase meio século defendendo que problemas como a violência ou a intolerância só podem ser resolvidos considerando tanto sua dimensão secular como espiritual. Como esse processo seria possível frente aos fundamentalismos religiosos e a radicalização da secularização?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Esta é uma excelente pergunta! Na realidade, o problema está na compreensão dessas duas dimensões humanas. A violência e a intolerância ocorrem porque falta a preocupação com a interpretação de nós mesmos. Os radicalismos, sejam eles seculares ou religiosos, são frutos de sentimentos confusos, não interpretados por meio de referências valorativas. São essas referências valorativas que possibilitam que as nossas ações sejam pautadas por meio de um conjunto articulado de sentimentos e de discernimentos que nos direcionam para a realização de determinados bens, considerados os mais elevados. Esses bens Taylor chama de Hiperbens. Daí tanto alguém que se diz ser secular como alguém que se diz ser religioso tem o compromisso, na esfera ética, de realizar tais Hiperbens. O problema, então, está na interpretação dessa realização dos Hiperbens. Eis o motivo da importância de avaliar as ações que os agentes humanos realizam, sejam eles seculares ou não. Por isso, quando se avalia uma forma de Hiperbem, não pode haver simples formas subjetivas para tal avaliação. A busca do bem é o que dá o caráter moral às nossas ações; portanto, o que está em jogo, para o pensamento de Taylor, é como se guiar para realizar o bem a partir de pressuposições básicas de valores, que se caracterizam com aquilo que Taylor intitulou de Configurações. São elas que possibilitam o contexto em que as nossas ações e reações morais ganham um significado específico, além de constituírem um modo de orientação essencial à nossa identidade. Deste modo, reconhecer as fontes morais como formas de bens é compreender que elas possuem um papel fundamental na estruturação das articulações significativas que expressam o valor forte de um bem para o agente humano. Daí os radicalismos precisarem voltar para as formas interpretativas que considerem realmente os Hiperbens. Só assim podemos superar a intolerância e a violência dos radicalismos tanto seculares como religiosos.

IHU On-Line - Taylor propõe uma interpretação da modernidade que deve levar em conta a grandeza e a miséria dessa modernidade. Em seu ponto de vista, quais seriam essas grandezas e misérias? Como a globalização está imbricada nesse processo?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo –
Primeiramente, precisamos ter a clareza que a modernidade tem um modo próprio de ser, por isso não cabe enquadrá-la em categorias como grandeza ou miséria, mas o que eu diria é que há certas dificuldades na modernidade para a construção das identidades humanas. Daí as formas de Mal-Estar que Taylor fala. A vida socioeconômica, desenvolvida nas sociedades modernas e contemporâneas, leva a modelos de ações calcadas em estruturas racionais instrumentais que não possibilitam o homem avaliar a sua própria existência. Por isso, a instrumentalização da vida tira a possibilidade de o homem ser livre para poder projetar as suas ações em direção àquilo que ele considera digno para a sua realização existencial. Daí a perda do horizonte moral e, conseqüentemente, o desenvolvimento do atomismo individualista na Era Moderna. A globalização, por incrível que pareça, contribui não para sairmos desse mal-estar individualista, mas o radicaliza, pois as conexões globais são feitas somente na dimensão técnica e instrumental e não humana. Por outro lado, a modernidade nos trouxe para a responsabilidade de pensarmos nós mesmos. Não é por acaso a famosa frase de Heidegger, em Ser e tempo (parágrafo 9), que diz: “O ente que temos como tarefa analisar somos nós mesmos”. Neste aspecto, a modernidade tem a sua grandeza.

IHU On-Line – Qual seria a principal contribuição de Taylor para o pensamento contemporâneo?
Paulo Roberto Monteiro de Araújo -
Uma das principais contribuições de Taylor para o pensamento contemporâneo está na sua guinada epistemológica no que se refere à não-consideração lingüístico-emocional-expressiva das ações morais. Taylor chama a atenção para a necessidade de o sujeito moral se conhecer internamente, não em um plano somente inteligível, mas principalmente emocional. Contudo, a sua proposta não pode ser compreendida como uma simples psicologia dos sujeitos, que agem moralmente, até porque não se trata da particularidade emocional das suas personalidades, mas de desenvolver uma espécie de consciência de si dos sentimentos valorativos que o agente tem ao tomar uma determinada posição no espaço público.

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