Edição 220 | 21 Mai 2007

O delírio de autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral

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Na opinião do psicanalista e filósofo Mario Fleig, “o delírio de autonomia poderia ser descrito como a dissolução dos fundamentos da moral, à medida que a consistência da alteridade desaparece”. De acordo com ele, “a autonomia alcança o limiar do delírio quando o ideal se orienta pela abolição da dimensão do impossível, quer dizer, o ideal de vida perseguido pressupõe que tudo seja possível”.

Fleig ministra na terça-feira, 22-05-2007 o minicurso A autonomia na pós-modernidade. Um delírio?, a partir das 14h30min, dentro da programação do Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos? A entrevista a seguir foi concedida por e-mail à IHU On-Line.

Fleig é professor do curso de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia pela UFRGS, com a dissertação Os esquemas horizontais em Ser e Tempo, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese O tempo é a força do ser – Lógica e temporalidade em Martin Heidegger, e pós-doutor pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França, em Ética e Psicanálise. A edição 150 da IHU On-Line, de 08-08-2005, entrevistou Fleig sob o título As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Na edição 179, de 08-05-2006, Fleig concedeu a entrevista Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. Sua contribuição mais recente pode ser conferida na edição 185 da IHU On-Line, com a entrevista O declínio da responsabilidade, antecipando assuntos que apresentou no IHU Idéias sob o título “Ah! Não vai dar nada” Patologias da responsabilidade e delírio de autonomia na pós-modernidade, apresentado em 29-06-2007 no lançamento do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?

IHU On-Line - A autonomia na pós-modernidade é um delírio? Por quê?
Mario Fleig -
Autonomia, correlato do conceito de liberdade, é uma das maiores conquistas da modernidade, com já afirmara Hegel. Nossa proposta não é colocar em questão essa conquista, seja pela suposição de que ela seria a causadora dos infortúnios da vida coletiva atual e nem mesmo sugerir um retorno ao modelo de organização social pré-moderno. Contudo, os desdobramentos da autonomia têm produzido efeitos sociais e subjetivos inquietantes, em formas que se apresentam em novos ideais configurados em modo de vida em que não haveria limites para nada, em que poderia se gozar a qualquer preço etc. Enfim, a autonomia alcança o limiar do delírio quando o ideal se orienta pela abolição da dimensão do impossível, isto é, o ideal de vida perseguido pressupõe que tudo seja possível. Outro traço que caracteriza o que passou a ser denominado de pós-modernidade é, além da recusa de qualquer limite, a descrença generalizada em qualquer referência que seja transcendente ao contexto vivido. O delírio de autonomia poderia ser descrito como a dissolução dos fundamentos da moral, à medida que a consistência da alteridade desaparece (o outro já não conta como uma das referências que orientariam a vontade na busca do que seria bom para o próprio sujeito em seu convívio com o semelhante), assim como a dimensão da auto-recriminação. Esta problemática da expansão da descrença em ideais partilhados e no outro, além do apagamento da auto-recriminação e o advento do ideal de gozar a qualquer preço, requereria uma retomada cuidadosa da história da fundamentação da moral à luz da elaboração da noção de liberdade na modernidade.

Bases conceituais da autonomia

Sabemos que a noção de autonomia ganhou suas bases conceituais no século XVIII, especialmente com Kant  (1724-1804), calcado na definição de liberdade proposta por Rousseau  (1712-1778), em seu Contrato social, como “obediência à lei que nós prescrevemos”. Kant, na sua busca de uma fundamentação da moral, que não encontra na teoria aristotélica da prudência e das virtudes, transforma a noção de liberdade de seu antecessor em autonomia da vontade, no exercício da qual situa o imperativo categórico, princípio supremo da moralidade. Não vamos aqui desenvolver e discutir esta importante e complexa teoria.

Entretanto, neste mesmo período, Adam Smith  (1723-1790), em sua Teoria dos sentimentos morais, propõe um outro caminho para a fundamentação da moral. O pensamento de Smith, tanto em economia quanto em filosofia moral, traz a marca do esforço constante de formular a teoria a partir da experiência. Partindo, então, da experiência, o que implica situar-se já no horizonte da busca de uma fundamentação não transcendente da moral, ele procura responder a duas questões fundamentais. Em que consiste a virtude e a justiça e o que define a felicidade e a plenitude do ser humano? Como se formam os sentimentos morais e o que nos leva a considerar uma conduta como correta e outra como errada?  Sua hipótese é que a consciência moral não parte inicialmente de regras, nem de princípios, mas da experiência concreta do sentimento, especificamente do fato da simpatia, cujas implicações normativas se evidenciam gradualmente. Deste modo, a origem dos sentimentos morais, segundo Adam Smith, se encontra na operação espontânea de um hábito mental socialmente adquirido que é a simpatia. Ora, a simpatia supõe a capacidade de acompanhar afetivamente aos outros, constituindo o núcleo e a originalidade da ética de Smith. Trata-se da capacidade humana de se transportar na imaginação para o lugar e a situação dos outros, a começar pelos mais próximos afetivamente, e deste modo procurar ver e sentir as coisas como supomos que os outros estão vendo e sentindo. Isso se refere à abertura para os outros, para seus afetos e sua capacidade afetiva. Somente a partir do senso de conveniência é que se pode desenvolver a capacidade de julgar a propriedade e o mérito das ações, assim como olhar para nós mesmos de fora, ocupando um ponto de vista externo e neutro (espectador imparcial). Bem, não vamos ter como desenvolver todo o caminho proposto por Smith, mas apenas apontar para sua fina descrição do que resulta no sentimento de solidariedade com o outro. Deste modo, nossa hipótese é que o delírio de autonomia se instala pela suposição de que se pode dispensar o compromisso consigo mesmo e com o outro, correlato do novo ideal, que se desenha no social, de viver junto sem outrem.

Quais os determinantes disso? Podemos afirmar que estamos vivendo o advento de uma nova economia psíquica, assim denominada por Charles Melman, efeito da economia neoliberal globalizada somada ao impacto subjetivo das tecnologias digitais e das transformações no campo da biologia (novas formas de sexualidade e de reprodução etc.), é correlato de um progressivo declínio da dimensão do grande Outro (conforme a denominação de Lacan ) e da lógica trinitária, e da supremacia crescente da lógica binária (sistema de informação), correlacionada ao deslocamento da responsabilidade centrada no sujeito para a responsabilidade atribuída aos procedimentos e enunciados sem sujeito.

IHU On-Line - Quais são as razões que levam o ser humano a crer que tem poderes ilimitados nesse mundo?
Mario Fleig -
Uma das razões eu situaria no advento de uma nova economia psíquica. Hoje, a felicidade e a vida boa (eudaimonia para Aristóteles) já não resulta mais da harmonia com o ideal de cada um partilhado socialmente, mas do objeto que possa trazer satisfação, equivalente do objeto de consumo ofertado sem limites. São novos os modos de pensar, de ponderar, de fazer sexo, de conviver, de namorar, de constituir família, de viver os ideais etc. A nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e determina novos deveres, dificuldades e sofrimentos. Os novos sujeitos tendem a operar no puro registro da demanda, ou seja, se há um desejo ou carência, a satisfação do mesmo se torna legítima. A demanda é então de encontrar sua satisfação, tomada como um direito, exigível a qualquer preço. A posição da autonomia tradicional, orientada por princípios que marcavam os limites, está em falta, e em seu lugar se encontra o excesso como norma.

Uma outra razão, correlata da anterior, é que esta formidável liberdade é estéril para o pensamento, visto que este se organiza em torno daquilo que produz obstáculo. A queda dos obstáculos dispensa o pensar e apaga a condição de divisão própria do sujeito. Se o sujeito não é mais dividido, não há mais motivo para se interrogar sobre sua própria existência. E, na falta das referências que o pensar demarca, o indivíduo fica exposto, enfraquecido e deprimido, ansiando pela confirmação alheia, que busca nos objetos ofertados ao consumo, e precipitando-se com freqüência em estados depressivos diversos.

IHU On-Line - Em entrevista à IHU On-Line 185, o senhor menciona que “as patologias da responsabilidade aparecem como um efeito generalizado da progressiva impessoalização das relações de trocas, tendo assim um alcance globalizado”. Quais seriam essas patologias psicológicas e o que elas dizem a respeito dos limites e possibilidades da autonomia?
Mario Fleig -
Estas patologias novas, que tanto atingem os indivíduos quanto o social, podem ser detectadas em uma espécie de perversão social generalizada, na medida em que o princípio enunciado por Kant, de que jamais deveríamos tomar a pessoa como meio, mas somente como fim, parece que já não contar mais. Quando alguém se deixa tomar como objeto do saber técnico, onde fica a interrogação sobre o desejo e o que resta de sua própria enunciação? O apagamento da história, seja pela destruição das marcas diferenciais presentes nos monumentos, na arquitetura de cada época etc., seja a dissolução da relação com tempos descontínuos, reflete o sujeito deprimido contemporâneo, homogeneizado nos sem história. A autonomia como ideal da modernidade reaparece como um ideal de querer estar descomprometido com tudo, exceto gozar sem limites e a qualquer preço. A ponta nevrálgica desta cadeia emerge, em seus efeitos socialmente visíveis, nas formações paranóicas, nas alucinações tóxicas e nos surtos de violência incontida.

O declínio do Outro

O que ocorre é que o Outro, como referente da lei simbólica, entra em declínio e se inicia um crepúsculo do mundo, correlato da suspensão de toda imunidade psíquica, ficando o sujeito tomado em uma relação dual, com incidências mortíferas. Tais efeitos psíquicos e sociais se evidenciam no declínio das condições de enunciação, no incremento da impessoalidade (formações de massa) e em funcionamentos que pervertem as funções estruturantes da condição humana. Ao lado de um crescente mal-estar na subjetivação, ocorre a implementação de um mundo sem-limites, que se reflete em novos modos de desresponsabilização. Seus efeitos aparecem, em sua incidência subjetiva, nas patologias do espaço (fobias, síndromes de pânico), nas patologias da imagem corporal (hiperatividade, transtornos na relação com o outro), nas patologias da oralidade (demanda desmedida de direitos, disparidade na alimentação), nas patologias do tempo (homogeneização do tempo, apagamento das marcas históricas, fim das narrativas, depressão), no incremento da paranóia (lógica do um: ou eu ou ele, sem mediação possível) e nas formas de instrumentalização de si mesmo e do semelhante (o sujeito está convencido saber sobre qual é o objeto adequado para seu gozo).

IHU On-Line - A cultura do “não vai dar nada” é mais perceptível entre jovens ou adultos? O que essa postura implica em termos de amadurecimento do sujeito?
Mario Fleig -
O descompromisso consigo mesmo e com o outro, na adolescência, parece fazer parte do exercício de descoberta do lugar em que se encontra a borda fatal, e por isso mesmo encontra aí a expressão “não vai dar nada!”. A experimentação do extremo pode ensinar algo para o jovem, ou seja, ser uma vida de amadurecimento e autonomia responsável.

IHU On-Line – Atualmente, existe uma confusão entre os conceitos de autonomia e individualismo? Até que ponto o agir na pós-modernidade tornou ambos sinônimos?
Mario Fleig -
Autonomia e individualismo são conceitos que têm proximidade, mas não se confundem. O advento do individualismo é uma das marcas registradas da modernidade. Creio que se pode dizer que o excesso se tornou norma na pós-modernidade, retirando do sujeito a dimensão genuína de autonomia, sem conter seu individualismo. O traço básico do individualismo, isolado pelo antropólogo L. Dumont, é o paradoxo em que se vê constrangido o sujeito moderno, ao ter que renunciar à tradição que o funda. Este imperativo ele o recebe da própria tradição em que está referido. São seus próprios pais que lhe ordenam para não seguir aquilo mesmo que eles dizem: “Viva sem ter dívida com ninguém! Invente sua própria vida, seus valores!”.

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