Edição 220 | 21 Mai 2007

O destino do ser na era do individualismo

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“A pós-modenidade revela, no plano individual, o confronto com os limites, a glorificação do risco pelo risco, a vida submetida a técnicas, o domínio da perversão nas relações humanas, a fadiga de ser si mesmo no fenômeno da depressão, a perda de valores, o fim do sentido biográfico do trabalho. Pode-se descobrir em tudo isso o individualismo? Tem ele só um sentido negativo? ". O questionamento é do filósofo gaúcho Ernildo Stein e faz parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ele prossegue: “Numa sociedade de pobres (famintos, subnutridos, analfabetos, doentes, etc), a autonomia kantiana não tem nada a dizer. O que pode ser autodeterminação para quem segura a frágil vida a lhe escapar das magras mãos? Penso sempre que temos que libertar nosso conceito de ser humano de uma filosofia da história que aprisiona nossos esforços para pensar o homem desde uma antropologia aberta e generosa. Ma a ética e a filosofia da história de Kant nos proíbem escrever uma antropologia (este expediente numênico é a maior armadilha!)”. Mais adiante, destaca que “o axioma fundamental da ciência se mostra sem fundamento enquanto os seres humanos morrem de fome. Mais importante que uma biblioteca de moral, talvez seja uma cozinha com a dieta alimentar básica para o desenvolvimento do neo-córtex de todo o ser humano”. Confira a entrevista na íntegra, a seguir.

Stein é um dos palestrantes do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, com o mini-curso O destino do ser na era do individualismo, que acontecerá em 22 e 23-05-2007.  Graduado em Filosofia e bacharel em Direito pela UFRGS, Stein é doutor em Filosofia pela mesma instituição com a tese Compreensão e finitude - estrutura e movimento da interrogação Heideggeriana. Cursou pós-doutorado nas universidades de Erlangen, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt, Munster e Wüppertal, todas na Alemanha. Atualmente leciona no Departamento de Filosofia da PUCRS. Stein publicou dezenas de livros, entre eles Seminário sobre a verdade: lições introdutórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser e tempo (Petrópolis: Vozes, 1993); A caminho de uma fundamentação pós-metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997); Diferença e metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000); Compreensão e finitude (Ijuí: Unijuí, 2001); Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002); e Seis estudos sobre Ser e Tempo (3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005). Na edição 185 da IHU On-Line, de 19-06-2006, O século de Heidegger, Stein concedeu a entrevista A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. Na edição 59 da IHU On-Line, de 12-05-2003, concedeu a entrevista Pe. Vaz: uma resposta aos problemas de nosso tempo.

IHU On-Line - A pós-modernidade é a era do individualismo? Por quê?
Ernildo Stein –
Dentro dos meus limites, devo primeiro pensar o que é pós-modernidade. Talvez se possa afirmar que a pós-modernidade se define por contraste com a modernidade. Se a modernidade lutou para encontrar uma normatividade, a pós-modernidade é a era da desregulamentação. Se a modernidade procurava projeto e sentido para o futuro, a pós-modernidade se entrega ao acaso e ao presente. Se a modernidade lutava por uma homogeneidade, a pós-modernidade acontece no fluxo da dispersão e da heterogeneidade. Se a modernidade se caracteriza pela consolidação do político, do espaço público, a pós-modernidade é a era da despolitização dos nichos domésticos. Se a modernidade sonhou com uma unidade no âmbito da cultura, da política, do saber, a pós-modernidade é a época da desintegração, da multiculturalidade, do recolhimento ao privado, é o tempo dos saberes. Se a modernidade se apoiava na ideologia como convocação para engajamento, na pós-modernidade desaparece a ideologia. Se na modernidade o tecido social era sustentado pelas instituições, na pós-modernidade as instituições se tornam fluídas e o tecido social se esgarça. Se a modernidade confia nas grandes instituições, a pós-modernidade é móvel, nômade. Disso tudo se pode concluir que a pós-modernidade procura a diferença, a miniaturização das idéias, o descompromisso social, o tribalismo conivente, o presenteísmo imediatista, o hedonismo do carpe diem, o normatismo das emoções, o império da imagem e, como conseqüência, a onipresença do corpo, para cultivo, para uso, para propaganda através da hiper-erotização de toda presença humana, a produção de uma proximidade que não comunica. Ao dizer tudo isto, faltam-me elementos de medida, padrões de juízo e nisso tudo talvez se engendre o novo, o positivo, a ainda não claramente definida felicidade humana.
Mas, por ora, a pós-modenidade revela, no plano individual, o confronto com os limites, a glorificação do risco pelo risco, a vida submetida a técnicas, o domínio da perversão nas relações humanas, a fadiga de ser si mesmo no fenômeno da depressão, a perda de valores, o fim do sentido biográfico do trabalho. Pode-se descobrir em tudo isso o individualismo? Tem ele só um sentido negativo? As sociedades e os indivíduos na era da globalização estão em busca de “sobrevivência psíquica em tempos de crise” (Ch. Lasch). Como fugir do narcisismo na afirmação de sua identidade pela busca da identidade? Certamente todos temos que ser muito mais fortes para suportar o esgarçamento dos laços sociais e a banalização do amor e dos afetos. Certamente o ser humano saberá frear o individualismo e o egoísmo no ponto de virada para esse complexo mundo novo!

IHU On-Line - E qual é o destino do ser nessa era de individualismo?
Ernildo Stein -
A segunda pergunta beira o enigma, mas, como aponta o jeito de um filósofo falar (Heidegger ), merece algumas considerações. “O destino do ser” é uma expressão que deve ser desconstruída, primeiramente. O filósofo disse uma vez: “Tão finitos somos nós que precisamos do conceito de ser para pensar”. Não sei quantos sentidos pode ter uma frase assim. Em todo o caso, dela se conclui que pensar e ser acontecem juntos. Se o pensar se limita à ciência e aos objetos da técnica, ele limita. Calcula, manipula, objetifica ou como diz o mesmo pensador: “a ciência não pensa”. Ser, portanto, não é um objeto; ser é uma dimensão, um mundo, um horizonte, um acontecer em que se move o ser humano, já sempre operado quando nos compreendemos, nos encontramos conosco e com os outros. Se no pensar passamos tudo isso por alto, então nosso pensar encobre algo fundamental: nossa contingência, nossa necessidade de totalidade, nossa existência, não com um sentido fixo, mas nós como “formadores de mundo”.

O individualismo poderia nos fazer esquecer este “sentido” do ser? Ser não é um ente ou objeto que pode ser um fim ou uma entidade que nos fizesse alvo de alguma mensagem. Nós podemos cair numa falsa autonomia ilusória, num individualismo, numa negação da diferença que sempre fazemos, da diferença ontológica entre ser e ente, enquanto somos. A ciência descobre objetos, os manipula e os multiplica, enquanto se multiplica em mais ciências, ficando paralisada diante do ser, que é “intransponível e incontornável”. Isso deve ser levado em consideração quando nos relacionamos com objetos, eventos, processos e pessoas. Enfim, o nosso mundo não pode ser confinado no deserto da subjetividade e da objetificação. Mundo é encontro. Caso contrário Fernando Pessoa tem razão:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma.
Grandes são os desertos.

IHU On-Line - Como fica a questão da autonomia frente a essa constatação? As pessoas têm noção do que significa autonomia ou confundem-na com egoísmo?
Ernildo Stein -
Penso que não é fácil saber o que é autonomia. Ela não é uma entidade abstrata. Necessita sempre todo um universo ético que nos vincula com regras morais de uma comunidade. Posso seguir regras feitas para mim que nos põe a questão da linguagem privada. Mas num mundo solitário, sem comunicação solidária, afetiva, sem interlocução, não faz sentido falar em moral. Saber o que é autonomia não é uma questão de razão e liberdade apenas. Autonomia é uma aprendizagem e liberdade é a principal ferramenta na prática. Gosto muito do livro de meu amigo Peter Bieri, professor da Universidade Livre de Berlim, A ferramenta da liberdade – Sobre a descoberta da vontade própria, certamente o melhor livro de moral ou ética (?) da segunda metade do século XX e inícios deste século ou dos últimos 50 anos. O livro se compõe de três partes com belos capítulos cada uma: 1. A liberdade condicionada. 2. Liberdade incondicionada. 3. Liberdade apropriada (conquistada). Kant complicou a moral com seu conceito de autonomia e não encontrou resposta ao como a lei moral determina a liberdade (veja-se Crítica da razão prática). Gosto da primeira parte da Fundamentação da metafísica dos costumes (mas também só!) Não gosto da moral do dever. Escolhi com boas companhias a moral do querer. A moral do dever parte de uma liberdade numênica (que não pode ser objeto do conhecimento). A moral do querer pode trabalhar com a liberdade como experiência.

IHU On-Line - Até que ponto se pode falar em autonomia numa sociedade em que milhões de pessoas morrem de fome e estão “presas” à sua própria vida? A liberdade e a autonomia estão destinadas apenas ao mundo numênico?
Ernildo Stein -
É verdade, numa sociedade de pobres (famintos, subnutridos, analfabetos, doentes, etc), a autonomia kantiana não tem nada a dizer. O que pode ser autodeterminação para quem segura a frágil vida a lhe escapar das magras mãos? Penso sempre que temos que libertar nosso conceito de ser humano de uma filosofia da história que aprisiona nossos esforços para pensar o homem desde uma antropologia (veja-se Ernest Tugendhat em seu livro Anthropologie statt Methaphysik (2007)) aberta e generosa. Mas a ética e a filosofia da história de Kant nos proíbem escrever uma antropologia (este expediente numênico é a maior armadilha!). Para fazer justiça ao ser humano, temos que seguir o seguinte silogismo: para civilizar o ser humano, o Ocidente introduziu a retórica do humanismo e do iluminismo.  Ora, este humanismo do homem domesticado fracassou. Logo, devemos substituir os abstratos discursos humanistas por uma antropologia que leve à verdade do homem. O axioma fundamental da ciência se mostra sem fundamento enquanto os seres humanos morrem de fome. Mais importante que uma biblioteca de moral talvez seja uma cozinha com a dieta alimentar básica para o desenvolvimento do neo-córtex de todo o ser humano.

IHU On-Line - Se autonomia, como Kant propunha, é a lei que damos a nós próprios e cumprimos, como pensar numa ética coletiva, categórica, frente à disseminação de éticas individuais e, no máximo, de pequenos grupos, como o que ocorre atualmente?
Ernildo Stein -
Pelas coisas que disse na questão anterior, não posso aceitar uma ética da forma kantiana do imperativo – seu conteúdo sim. Uma moral universal na forma kantiana não é exeqüível. Portanto, não surgirá uma ética coletiva, social ou outro adjetivo da fórmula kantiana. O esforço de pensar elementos de uma moral mínima a partir da antropologia filosófica não é utópico. Podemos expor as estruturas do pensamento, da vontade, da liberdade, da emoção, que sustentam regras morais. Mas disso não se pode encarregar somente a filosofia. Precisamos das ciências humanas e das conquistas empíricas que nos ajudam a descrever a complexidade do ser humano e a articulação das regras morais. Não aceito a idéia de “éticas individuais”. Mesmo a expressão “ética individualista” me parece autodestituir-se.

IHU On-Line - Na entrevista concedida à edição 185 da IHU On-Line, em 19-06-2006, o senhor afirma que “estamos sós no planeta e nele somos um acontecimento que se espanta consigo mesmo”. Como o homem pode superar esse espanto e se colocar afirmativa e autonomamente diante da tarefa de construir seu próprio destino?
Ernildo Stein -
Não sei se minha entrevista deveria ter-me comprometido com uma frase tão grandiosa, ainda mais se vocês me vêm perguntar por uma saída. Mas vamos lá. É claro que minha afirmação é fenomenológica e não metafísica. Isto em primeiro lugar! De enunciados fenomenológicos não me atrevo deduzir respostas para nossa perplexidade. Minha frase vale mais pelo que ela não diz. Isto é, filosoficamente, não podemos construir pontes “desde fora” para encontrar o sentido da existência. Isto não significa que não possamos ser sensíveis aos sinais que nos cercam em nosso modo de ser-no-mundo, e apontam para o sagrado e todos os fenômenos que constituem a sensibilidade para a fé e a religião. Romano Guardini deu-nos na primeira antropologia heideggeriana, escrita em 1939, uma bela perspectiva em que define o Dasein como a totalidade da existência e em função deste enunciado surgiu a supressão da espacialização de todo o pensamento quando se trata de religião (dentro, fora, em cima, embaixo etc.) e o recurso às dimensões existenciais. (Guardini, R. Welt und Person, 1939).

IHU On-Line - Como o senhor relaciona a tendência irresistível de transformar tudo em dispositivo (Gestell), conforme Heidegger, com a globalização e o esfacelamento das certezas e dos fundamentos nos quais se assentavam o ser e o pensamento?
Ernildo Stein -
Grande parte do pensamento de Heidegger se preocupa com a questão da técnica. Mas isso não constitui uma postura romântica. Ele procurou, já nos anos 1930, analisar o fenômeno do gigantismo, do empresamento e outros fenômenos do século XX como resultado da “europeização do Planeta”. É verdade, o filósofo liga a este acontecimento o esquecimento do ser na história da metafísica. Mas isto exigiria um desvio de análise muito grande aqui. Um dos elementos muito explorados pelo filósofo é o vínculo da técnica com a ciência na invencível compulsão de o homem converter o Planeta em fundo inesgotável para a transformação.  O filósofo gostaria de encontrar no dispositivo a característica da técnica que mostra a nossa relação com os entes, não levando em consideração o ser. E a relação com ele nos levaria ao respeito diante do mundo. Heidegger falava de um pensamento que medita contra ou além do pensamento que calcula. As primeiras conferências em Bremen Einblick in das Was ist (1949) incluem uma conferência sobre o dispositivo (Gestell) e outra sobre a técnica. Do mesmo modo, a Carta a um professor japonês (1963) analisa a questão e se concentra na europeização do mundo.

IHU On-Line - O que o senhor quer dizer com a idéia de que não é possível negarmos a importância da teoria heideggeriana de “que, com a modernidade, surgiu a questão da subjetividade e com isso a questão de método”, conforme a entrevista A superação da metafísica e o fim das verdades eternas, publicada na edição 185 da IHU On-Line?
Ernildo Stein -
Toda a obra heideggeriana é uma crítica à idéia da modernidade enquanto nela domina a subjetividade e esta está vinculada à questão do método. A analítica existencial se apresenta com a idéia do ser-no-mundo, já sempre de modo prático, do Dasein como o novo paradigma que substitui a subjetividade como condição de possibilidade do conhecimento. A crítica à modernidade é feita na notável conferência e ensaio Die Zeit des Weltbildes – O tempo da imagem do mundo – nos anos 1930.

IHU On-Line - Recuperando outra de suas idéias desenvolvidas nessa entrevista, o senhor destaca que o ser humano liberado das amarras metafísicas e da tradição é o mesmo que considera possível manipular os recursos do Planeta sem limites. Como o senhor explicaria esse comportamento: através do individualismo, da autonomia? Estaria aqui a raiz da catástrofe ecológica que já se faz notar?
Ernildo Stein –
Certamente, há um vínculo entre a crítica ao dispositivo e a questão da ecologia. Nos anos 1960 e 1970, o filósofo fazia análises explícitas sobre a conversão da natureza em indústria. Periodicamente se reuniam os prêmios Nobel na Suíça e Heidegger participava dos debates com esta preocupação. Para o filósofo, a preocupação com o Planeta é certamente uma tarefa para a filosofia.

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