Edição 220 | 21 Mai 2007

A modernidade fragmentou o campo religioso e fez emergir uma diversidade de religiões

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“A modernidade fragmentou o campo religioso e fez emergir uma diversidade de religiões dentro de um novo ordenamento e configuração do religioso”, disse em entrevista por e-mail à IHU On-Line o Prof. Dr. Carlos Steil, docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Segundo ele, “há dois movimentos religiosos principais que se direcionam no sentido de uma afirmação do indivíduo no mundo e que atravessam as religiões estabelecidas. Em termos empíricos poderíamos identificá-los como o movimento pentecostal e o movimento da nova era”.

Steil é o palestrante do minicurso Os novos movimentos religiosos e a sociedade de indivíduos, que acontece em 22 e 23-05-2007, dentro da programação do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?

Filósofo graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Steil é mestre em Teologia pela PUC-Rio e em Educação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Cursou doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a tese O sertão das romarias. Um estudo antropológico da Romaria de Bom Jesus da Lapa – BA e pós-doutorado na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Escreveu as seguintes obras: O sertão das romarias. Um estudo antropológico da Romaria de Bom Jesus da Lapa – Bahia (Petrópolis: Vozes, 1996); Globalização e religião (Petrópolis: Vozes, 1997); Maria entre os vivos. Reflexões teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003); e Cotas raciais na universidade (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006).

IHU On-Line - Em entrevista ao nosso site www.unisinos.br/ihu, em 12-05-2007, o senhor afirma que a religião de indivíduos é aquela na qual a pessoa tem uma relação com o sagrado a partir de um processo reflexivo. Como se dá essa relação? Qual a diferença do relacionamento do indivíduo com Deus na religião de indivíduos e na religião tradicional?
Carlos Steil –
A religião dos indivíduos surge concomitantemente com o aparecimento histórico da sociedade dos indivíduos. A possibilidade dos seres humanos de se pensarem como sujeitos autônomos e independentes frente ao social é um evento que surge de uma longa trajetória de ruptura com uma situação originária em que os seres humanos se viam como parte de um todo social e religioso que os englobava. Nestas sociedades originárias, também chamadas de sociedades holistas, a religião era instituída como o princípio  fundante da realidade e o mito como determinante para o comportamento e as relações dos humanos entre si e com os não-humanos. A relação com o sagrado era vivida de forma imediata dentro de uma situação de imanência do divino. Não há uma separação entre uma ordem natural e uma ordem sobrenatural, e a única ordem existente é a ordem sobrenatural. Os deuses habitam o mundo, determinam o seu curso e seu destino. Aos humanos cabia repetir em sua existência o que estava prescrito pelo mito, imitando e reproduzindo aquilo que seus antepassados viveram através das gerações. A história do ser humano no Ocidente é a história da ruptura com essa determinação do mito e da apropriação do fundamento religioso. Aos humanos não cabe mais apenas a repetição e reprodução, mas a responsabilidade pelo curso da história e seu destino neste e no outro mundo.

IHU On-Line - Como ocorreu esse processo de mudança na escolha da religião tradicional para a religião de indivíduos? A que o senhor atribui essa modificação?
Carlos Steil –
Há uma convergência de fatores que permitiu a passagem da experiência de proximidade em relação ao fundamento religioso para a experiência da diferença. Nesta passagem, duas figuras históricas ocuparam um lugar central: o “renunciante” no âmbito da religião e o “sábio” no âmbito do conhecimento. A renúncia ao mundo e a retirada dos ermitães e anacoretas para o deserto possibilitaram que os humanos pudessem se perceber distintos do mundo e estabelecer uma relação com uma divindade que se colocava fora da ordem natural. Da mesma forma, o “sábio” ou o filósofo, por meio da reflexão e do intelecto, foram construindo um distanciamento em relação ao princípio religioso como fundante do social. Estabelece-se, assim, pouco a pouco, uma dualidade entre o humano e o transcendente, o visível e o invisível, num longo processo de afirmação da autonomia humana que passa por dentro e por fora da religião e que poderia ser denominado de uma saída da religião.

IHU On-Line - Quais são os novos movimentos religiosos? Como o senhor os define e qual a sua importância na formação dos indivíduos na sociedade contemporânea?
Carlos Steil –
Há dois movimentos religiosos principais que se direcionam no sentido de uma afirmação do indivíduo no mundo e que atravessam as religiões estabelecidas. Em termos empíricos, poderíamos identificá-los como o movimento pentecostal e o movimento da nova era. O movimento pentecostal traz na sua origem a proposta de uma “rejeição do mundo”, reproduzindo a figura de um renunciante que, ao invés de se retirar para o deserto, se propõe a viver no coração do mundo como se não fosse do mundo. Poderíamos, na verdade, incluir nessa categoria todas as religiões de conversão, que apresentam essa característica de ruptura com uma ordem dada e de reflexão sobre o lugar e o papel do indivíduo no mundo. A religião deixa de ser uma herança que se recebe dos pais e uma repetição de rituais e costumes e se torna uma questão de escolha e de pertencimento institucional. Este movimento de conversão, no entanto, pode ser observado no interior do próprio catolicismo, tanto na experiência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) quanto na Renovação Carismática Católica, à medida que estas experiências incorporam em sua prática a rejeição de um mundo. Neste sentido, podemos afirmar que o pentecostalismo é um movimento de afirmação da autonomia do indivíduo no mundo.

A nova era também traz este elemento de reflexividade em sua prática, mas, diferentemente do pentecostalismo, sua rejeição do mundo não se situa na ordem social e moral, e sim na busca do “verdadeiro eu”. Ou seja, não se trata de se converter e viver conscientemente como um “santo” no meio de um mundo de pecadores, mas de se desvencilhar de todos obstáculos postos pelo “ego” para acessar o “self verdadeiro”, que se encontra no interior de cada indivíduo. A idéia de salvação é substituída pela de auto-aperfeiçoamento e pleno desenvolvimento das potencialidades humanas e divinas que se encontram em cada ser individual. Este movimento também atravessa as religiões tradicionais como um “espírito do tempo”.

IHU On-Line - Os novos grupos religiosos surgiram como um "protesto" às religiões preestabelecidas?
Carlos Steil –
Sim, surgiram como um protesto, entre aspas, como você colocou na pergunta. Porque, se na sua origem o pentecostalismo, por exemplo, fez parte de um movimento revivalista de afirmação de dimensões mais emocionais e corporais que se encontravam reprimidas pelo formalismo e intelectualismo presentes no protestantismo clássico, hoje o espírito pentecostal se apresenta como uma força que perpassa a sociedade e as religiões tradicionais. Da mesma forma, podemos pensar na nova era como um campo em que emergem, no campo religioso moderno, os sentidos mágico e imanente do sagrado que foram reprimidos por século de dominação da religião da transcendência no Ocidente.  

IHU On-Line - Não há mais uma tradição exclusiva das velhas ortodoxias institucionais religiosas (modelo Igreja). A estrutura do crer, da religião, não é mais exclusividade de tradições religiosas convencionais, mas é operacionalizada por indivíduos. Isso quer dizer que na sociedade contemporânea, cada indivíduo está criando sua própria religião? 
Carlos Steil –
Os processos sociais podem ser vistos sempre como pendulares. No momento em que as “velhas ortodoxias institucionais religiosas” perdem sua hegemonia na produção de valores e símbolos religiosos, abre-se espaço tanto para as religiões centradas no “self individual” quanto para a emergência dos fundamentalismos. Descolados de uma “igreja” ou de uma comunidade, os indivíduos podem construir uma síntese religiosa pessoal, criando um sagrado compósito, que vai recolher elementos de diferentes tradições religiosas, ou apegar-se a algum aspecto de uma tradição como seu porto seguro e “verdade absoluta” a ser imposta a todos. Assim como as religiões tradicionais foram capazes de produzir tanto a paz quanto a guerra, as novas formas ou movimentos religiosos que emergem na sua ausência também podem dar origem, contraditoriamente, a processos pessoais de “busca e cuidado de si” e a grupos fundamentalistas marcados por intervenções e práticas violentas.

IHU On-Line - As pessoas buscam, na seletividade de suas escolhas religiosas, compor para si um mundo com algum sentido. Assim sendo, é correto afirmar que a sociedade contemporânea está tentando revitalizar o universo religioso?
Carlos Steil –
A diferença fundamental entre a sociedade contemporânea e a sociedade tradicional é que hoje há uma diversidade muito maior de instâncias produtoras de sentidos e de valores. Não só a religião não é mais a única instância de produção de sentidos, mas também existem muito mais opções religiosas à disposição dos indivíduos. Mas, para responder se existe uma revitalização do religioso na sociedade contemporânea, é preciso, antes, definir o que estamos entendendo por religião. Se entendemos a religião como o princípio fundante do social, ou como um força capaz de influenciar efetivamente no nível da organização política e econômica de uma sociedade e na orientação dos comportamentos dos indivíduos no âmbito da reprodução humana, por exemplo, devemos dizer que não há uma revitalização do religioso. No entanto, se compreendemos a religião como formas de crenças e espiritualidades que se manifestam no espaço público e midiático, podemos dizer que a religião está viva e presente na sociedade contemporânea como uma força que seduz e engaja os indivíduos em rituais massivos e práticas cotidianas. Enfim, a modernidade fragmentou o campo religioso e fez emergir uma diversidade de religiões dentro de um novo ordenamento e configuração do religioso.

IHU On-Line - Nos últimos anos, as pessoas não têm seguido à risca os pensamentos e os discursos universais da igreja, baseando-se muito mais nas suas experiências de vida. Podemos dizer que o indivíduo que tem sua própria religião consegue ter mais autonomia na vida? Com a construção de uma sociedade autônoma, é possível o desaparecimento da religião formal nos próximos anos?
Carlos Steil –
O que se aplica à sociedade como um todo não se aplica necessariamente aos indivíduos enquanto tal. A autonomia da sociedade frente ao fundamento religioso não corresponde ipso facto à autonomia dos indivíduos na sociedade. A autonomia é um valor que precisa ser afirmado em todas as instâncias da vida social, pois as amarras da dependência podem atingir os indivíduos em qualquer situação. Em termos individuais, a religião pode ser tanto um elemento de dependência que prende os sujeitos a uma estrutura infantil quanto uma força libertadora que os conduz a aquisição de recursos psicológicos e identitários para se posicionar autonomamente frente aos outros e ao mundo. Não creio que a religião venha a desaparecer numa “sociedade autônoma”, mas, com certeza, ela não será mais a mesma nem ocupará o mesmo lugar que ocupou historicamente nas sociedades tradicionais. Mesmo porque a autonomia da sociedade se realiza pela saída da religião enquanto fundamento da vida social e a sua migração para o campo da cultura, sujeita à regulação e ao controle social.

IHU On-Line - Quais seriam os principais aspectos que podemos apontar sobre a metamorfose que a religião sofreu nos últimos anos tomando em consideração que o senhor afirma, no artigo Para ler Gauchet , que a religião não deixou de existir, mas se metabolizou, ou migrou, do dossel sagrado para a pluralidade polissêmica?
Carlos Steil –
Ao deixar de ser o princípio instituinte e organizador do social, a religião emerge no nível da cultura como uma instância produtora de sentidos entre outras. Esta transformação do lugar e do papel da religião na sociedade da autonomia nos permite pensar na possibilidade de uma “sociedade atéia composta e governada por uma maioria de crentes”. Ou seja, a religião ao deixar de ser o princípio estruturante da vida material, social e mental, passa a atuar em experiências singulares de sistemas de convicção. Enfim, não se trata de medir a perda da influência das religiões sobre as consciências dos fiéis, mas de se perguntar se as crenças e princípios, formulados e defendidos pelas religiões, exercem uma influência decisiva e real sobre a organização da sociedade em sua base política e econômica. O que estou procurando dizer é que a era da religião enquanto elemento estruturante do social parece ter terminado. No entanto, seria ingênuo e contrário à minha argumentação concluir que a religião esteja desaparecendo no âmbito da cultura ou mesmo que esteja recuando dentro da esfera pública.

IHU On-Line - A Igreja Católica vem sendo duramente criticada pela sua postura em relação ao aborto. Até que ponto um seguidor dessa religião consegue ter autonomia em suas decisões, contrariando o pensamento da igreja?
Carlos Steil –
Por toda a argumentação que procurei apresentar até aqui, creio que o aborto, uma vez definido como uma “questão política de saúde pública”, será instituído, apesar da posição contrária da Igreja Católica. Os católicos, no entanto, podem seguir em sua consciência a orientação da Igreja Católica contra a sua legalização e defendê-la como uma questão moral.

IHU On-Line - As igrejas devem “modernizar” algumas de suas teorias, ou ao menos proporcionar a discussão de assuntos polêmicos como uso de preservativos, por exemplo, para conseguir aumentar o número de fiéis?
Carlos Steil –
Neste aspecto, assim como em tantos outros pontos relacionados com questões de moral sexual e reprodutiva, a Igreja Católica tem pautado sua atuação muito mais por uma “ética da convicção” do que por uma “ética da responsabilidade”, para usar a distinção clássica formulada por Max Weber. E não creio que, a curto ou médio prazo, a Igreja Católica venha a subordinar os princípios relacionados a estas questões a uma ação estratégica de manutenção ou ampliação de fiéis.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição