Edição 219 | 14 Mai 2007

A história recontada pelos descendentes de escravos

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INTERPRETAÇÕES DO BRASIL: DOS CLÁSSICOS ÀS NOVAS ABORDAGENS

Discussão da obra Memórias do Cativeiro, Família, Trabalho e Cidadania na Pós-Abolição, de Ana Lugão e Hebe Mattos
    Profa. Dra. Ana Maria Lugão Rios – UFF/UFRJ
    Interpretações do Brasil: dos clássicos às novas abordagens
    Sala 1G119 – IHU – 19h30min às 22h

Para a Profa. Dra. Ana Maria Lugão Rios, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a história é feita por cidadãos e pode ser contada por eles, tornando-se, assim, uma construção democrática. Segundo ela, as famílias descendentes de escravos têm maneiras particulares e específicas de contar a própria história. “São relatos que muitas vezes escapam da história que os historiadores oficiais tentam contar.” Para registrar esses depoimentos, Ana, juntamente com a professora Hebe Mattos, escreveu o livro Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005). A obra está associada a um conjunto de ensaios sobre a memória da escravidão e da abolição nas antigas áreas cafeeiras do Sudeste e de história social do pós-emancipação na região. Com base no livro, foi produzido, pelo Laboratório de História Oral e Imagem, da Universidade Federal Fluminense, um filme documentário intitulado Memória do cativeiro.

Ana Maria Lugão Rios é graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre na mesma área pela Universidade Federal Fluminense. Doutora em História pela University of Minnesota, atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em Interpretações do Brasil: dos clássicos às novas abordagens, Ana Maria Lugão Rios abordará as maneiras como o tema da abolição e pós-abolição foram tratados pela História. O evento é gratuito e está marcado para às 19h30min, na sala 1G 119, na Unisinos. A entrevista que segue foi concedida à IHU On-Line, por telefone.

IHU On-Line - A obra Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição apresenta depoimentos de negros descendentes de escravos africanos. Como foi o processo de coletar esses depoimentos?
Ana Maria Lugão Rios –
As entrevistas foram coletadas entre 1994 e 1995. Esse trabalho foi uma experiência que mudou a minha maneira de viver e ver a história. Antes de produzir esse trabalho, eu tinha um projeto que era mais demográfico e acabei mudando para compilar mais as trajetórias familiares, porque os depoimentos me mostram uma dimensão humana dessas trajetórias. A passagem da escravidão para a liberdade foi marcante na memória familiar dos descendentes de escravos. Eles passaram a contar o tempo familiar com essa posição. Então, é muito freqüente ouvir depoimentos de netos de escravos descrevendo se sua avó era ou não escrava, se viveu antes ou depois da abolição. Essas vivências familiares permitiram que eles tivessem uma clara idéia sobre a lei abolicionista e a história da escravidão no Brasil.

Essas diferenças, remetendo a trajetórias familiares, lembrando de avós, bisavós, foram o que me empurrou a tentar compreender a dimensão dessas diferentes trajetórias nesse quadro das histórias familiares a partir do período pós-abolição. Os descendentes de escravos tiveram trajetórias de vida, ao saírem do cativeiro, muito diferentes e construíram suas vidas familiares de modos diferentes também. Alguns de maneira muito violenta, precários e dramáticos, enquanto outros com uma memória familiar do sucesso relativo, de não terem passado fome, de terem tido acesso à educação.

IHU-On-Line – O que mais lhe surpreendeu nos depoimentos?
Ana Maria Lugão Rios –
Muita coisa me surpreendeu, mas principalmente a maneira como as famílias tentam contar a própria história. Os dados da memória familiar mais marcante com relação à escravidão apontam para aspectos que as pessoas consideravam muito humilhantes. A imagem da escravidão era aquela de que os negros comiam em cocho, como os animais, e não tinham a própria casa. Há depoimentos de avós que se ressentiam muito por não terem amamentado seu próprio filho para amamentar o filho do senhor. Por outro lado, esses relatos mostram outros aspectos de pessoas que conseguiram desenvolver camaradagens com o próprio senhor, a ponto de fazerem parte de uma aposta e de um jogo um pouco jocoso, mas com um diferencial: alguns eram mais escravos do que outros, e isso ficou na memória familiar. Então, o fato de essas pessoas e essas famílias terem uma maneira particular e específica de contar a própria história internamente surpreendeu-me bastante, pois são relatos que muitas vezes escapam à história que os historiadores oficiais tentam contar. 

IHU On-Line – De que maneira esse trabalho mudou sua maneira de ver a história?
Ana Maria Lugão Rios –
Passei a ver a história como uma construção muito democrática. Todo mundo pode contar e construir a própria história a sua maneira. Além, disso, a história pode ser algo que todo mundo vê e vivencia. No entanto, muitas vezes não nos damos conta de que essa é uma dimensão do passado recontada e que se desdobra. Eu viajava muito pelo interior do Estado, mas nunca tinha prestado atenção em todas as sutilezas que, pelo menos no Rio de Janeiro, se apresentam. Toda a cultura popular, por exemplo, na maioria das vezes é levada adiante por comunidades ou famílias que vêm fazendo isso desde a época da abolição, ou até antes. A paisagem rural, formada por comunidades de remanescentes, de descendentes de escravos, apresenta uma historicidade bastante presente, mas nós, infelizmente, nem sempre nos damos conta de que nelas podemos encontrar a história.

IHU On-Line - Como a historiografia da escravidão e da pós-abolição contribui para resgatar e registrar a luta dos descendentes de escravos por seus direitos?
Ana Maria Lugão Rios –
Toda essa discussão em torno dos remanescentes de quilombo e mesmo das cotas é uma politização que tem sido levado adiante pelas associações políticas representativas dos negros no Brasil. E isso é perfeitamente legítimo. A história é feita por cidadãos. Nós precisamos ter uma honestidade com os métodos e práticas com a academia e com o que ela exige. Entretanto, não podemos apagar o historiador como cidadão que tem uma intervenção política que se reflete no seu trabalho. A cobrança, por exemplo, de um trabalho deve passar pelo rigor acadêmico, independente do perfil expresso por posição política. Da mesma forma, deve existir um respeito ao trabalho das associações políticas, ao mesmo tempo que se espera que as associações tenham um respeito, mesmo na discordância sobre o trabalho acadêmico. 

IHU On-Line - Embora a escravidão tenha sido extinta em 1888, a senhora acredita que sua herança permanece até hoje na sociedade brasileira com a discriminação racial, social e econômica de negros e pobres?
Ana Maria Lugão Rios –
Eu não gosto de pensar em termos de herança da escravidão. Nesses mais de 100 anos, existiram tentativas, lutas ou posições oficiais que devem ter sido omitidas. O mundo é dinâmico e a situação do negro hoje se deve a muitas coisas que vão além do fato de a escravidão ter existido há 100 anos atrás. Então, nessa trajetória, o pós-abolição é interessante porque estuda se os grupos discriminados tinham acesso à cidadania, se não tinham e por que esse dado de discriminação era tão violento ou não. A história do negro deve ser analisada no seu contexto, na sua trajetória histórica. Caso contrário, a discriminação fica como algo que não pode ser nunca resolvida, considerando-se que é uma herança ou, então, que só agora se pode retomar o passado, visando a reparações. Então, precisamos pensar que todos os cidadãos necessitam ter acesso, constitucionalmente, a tudo que é dado pelo estado. Portanto, é preciso que estejamos cientes de que o problema existe e deve ser combatido, de maneira participante, eficiente, democrática, com os instrumentos políticos que temos hoje.

IHU On-Line - O que a senhora acha das cotas reservadas para negros em universidades? Isso não aumenta ainda mais o preconceito racial?
Ana Maria Lugão Rios –
Essa é uma questão que tem várias facetas. Eu poderia dizer que sou contra cotas raciais para a universidade pública, o que não significa dizer que eu sou contra essa iniciativa legal de se dirimir o preconceito. Os dispositivos que nós tivemos, até agora, proibindo o racismo não foram eficientes, por exemplo, para situações onde visivelmente existe uma discriminação por cor. Não acho que isso seja o caso da universidade. A universidade discrimina quem teve acesso a um ensino péssimo, como tem sido os ensinos fundamental e médio da rede pública. Então, eu sou a favor da formulação que privilegia cotas para o ensino público. Agora, veja bem, essas cotas destinadas a uma grande parcela de negros surgiram para tapar o buraco de um erro mais grave, exatamente o da má qualidade dos ensinos fundamental e médio. Não podemos fechar os olhos e apenas dizer que somos contra as cotas. Precisamos nos sensibilizar com as dificuldades. No meu entendimento, a melhor maneira é diagnosticar corretamente o problema e perceber onde o preconceito está prejudicando. Mas o mais importante disso tudo é fazer a sociedade discutir o assunto, ajudando a reflexão sobre essas injustiças.

 

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