Edição 219 | 14 Mai 2007

“O aborto é um assunto de ordem plural, de saúde pública, um problema social e familiar”

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IHU Online

Elaine Gleci Neuenfeldt, professora da Cátedra de Teologia Feminista da Escola Superior de Teologia, possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia, e mestrado e doutorado em Teologia pelo Instituto Ecumênico de Pós Graduação (IEPG). Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa intitulado “Itinerários e errâncias da sexualidade, dos direitos reprodutivos e do aborto: abordagens bíblico-teológicas”. Elaine é também pastora voluntária na Igreja Evangélica de Confissão Luterana, assessora e diretora do Centro de Estudos Bíblicos, docente da Cátedra de Teologia Feminista do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia, da Escola Superior de Teologia. Tem experiência na área de Teologia e Bíblia, com ênfase em Estudos de Gênero, atuando principalmente com os seguintes temas: gênero, teologia feminista, estudos bíblicos, leitura popular da bíblia e hermenêutica feminista.

IHU On-Line - Como se formula a questão do estatuto do embrião, considerando sua implicação na questão do aborto?
Elaine Neuenfeldt -
Há diferentes posições sobre esta questão. A ciência não tem uma resposta única nem um consenso para dizer quando a vida humana começa. Talvez este também seja um viés equivocado de se introduzir o debate sobre a interrupção voluntária de uma gravidez indesejada. A discussão sobre a capacidade de decisão da mulher em assuntos envolvendo a sua vida reprodutiva não deveria ser reduzida a estabelecer um tempo oportuno em que se pode intervir no processo de gravidez.

Uma possibilidade é definir o embrião como pessoa em potencial, uma vez que este não tem desenvolvido uma unidade corporal que consiga uma viabilidade de vida. Na verdade, seria mais adequado se falássemos em processo vital em andamento, ou seja, entender que há momentos que vão sendo definidos na medida em que o tempo vai acontecendo, entre a concepção e a gravidez, no seu tempo de nove meses. Entre a concepção e o anidamento do óvulo fecundado no útero, são necessários em torno de 14 dias. Neste processo, o zigoto nem sempre completa o seu anidamento no útero, mas é eliminado “naturalmente”, resultando na menstruação. A viabilidade de vida só ocorre após 28 semanas de gravidez, quando a capacidade neurológica do feto já se encontra mais estabelecida.

Neste processo, em algum momento dos primeiros tempos de vida é que nos tornamos pessoas. Isto implica dizer que a noção de pessoa está construída a partir da responsabilidade nas decisões das partes envolvidas no processo de reprodução humana, bem como a partir da relação gradativa que o feto vai estabelecendo com a mãe e da comunicação com o meio em que se está sendo gestado. Algo que o embrião, embora geneticamente completo a partir da concepção e, portanto, a caminho de nascer como ser humano, desenvolve somente aos poucos.

IHU On-Line - Em que consiste a abordagem ética do aborto (bioética hermenêutica) que não reduz à abordagem jurídica ou sociológica (bioética casuística)?
Elaine Neuenfeldt -
É preciso inserir o debate em torno da capacidade de decidir com responsabilidade na interrupção de uma gravidez no campo da ética. De ética também se trata quando a hipocrisia salta aos olhos nas posturas que supostamente se dizem em defesa da vida, mas não demonstram o menor compromisso com pessoas que morrem de fome, na miséria, excluídas de qualquer dignidade. A perspectiva ética deve ser introduzida, pois assim vamos perguntar pela capacidade das mulheres de decidir com responsabilidade em assuntos referentes ao seu corpo/corporeidade, à sexualidade e à reprodução. Esta capacidade ou direito de decidir não deve ser visto de forma individualizada (ou seja, o problema ser considerado apenas das mulheres), mas este é um assunto que requer responsabilização dos homens também.

Atualmente, com a lei que penaliza as mulheres, os homens estão completamente desresponsabilizados. Se há uma gravidez não desejada, houve um homem envolvido antes com esta mulher. A pergunta é: “Onde se encontra este homem na hora de esta mulher tomar esta difícil e dolorosa decisão sobre a possibilidade de levar adiante ou não esta gravidez?”. A sociedade isenta o homem da responsabilidade, ao culpabilizar a mulher sobre a decisão que ela vai tomar na solidão. Nesta linha, ainda fica um desafio grande para as igrejas: quando levantam o assunto, raramente remetem para a responsabilização dos homens, para o compromisso dos homens de discutir a sua participação nos assuntos da sexualidade e reprodução. E aqui é mister discutir assuntos como a violência sexista, o estupro, o incesto e outras tantas formas de violência sexual que, segundo dados estatísticos, tem os homens como perpetradores.

Cobrar posturas éticas tem a ver com olhar o ambiente, o entorno e a realidade que cercam as mulheres que precisam decidir responsavelmente. Ética tem relação com cuidado e acolhida, e também com acompanhamento pastoral, capaz de ajudar nas decisões que envolvam assuntos da viabilidade de uma gravidez. Por mais doloroso que seja, muitas vezes interromper uma gravidez não desejada pode ser ainda uma possibilidade melhor disponível neste momento e nesta situação para a mulher envolvida.

IHU On-Line – O aborto é um problema para o qual é necessário encontrar uma solução ou é uma solução para outra questão não formulada?
Elaine Neuenfeldt -
Discutir a interrupção da gravidez no campo da ética implica primeiro reconhecer as mulheres como sujeitos capazes de tomar decisões éticas com responsabilidade. E, aqui, precisa-se desconstruir a idéia de que quem advoga pelo direito e capacidade de decisão das mulheres é pró-aborto ou tem uma mentalidade abortista. Esta é uma avaliação equivocada e, que na maioria das vezes, reflete um pré-julgamento sobre a situação. Não se trata de defender o aborto como solução.

O conflito de direitos ocorre entre a viabilidade de levar adiante uma gravidez não desejada, da capacidade de agüentar o desenvolvimento desta gravidez por parte da mulher, e o estatuto de ser humano, por causa da sua adscrição ao gênero humano, do embrião. A decisão se coloca, então, não num nível de escolher entre uma coisa boa e outra má, mas entre duas situações difíceis e dolorosas. Cabe aqui ao sujeito de direito a responsabilidade de seguir ou interromper com o processo de gravidez. Nunca será uma decisão fácil e ligeira, capaz de levar a um resultado de alegria. Sempre será um momento de solidão, de dor e sofrimento. Fantasia quem proclama o contrário. Não conhece o sofrimento e não ouviu de forma solidária o testemunho de mulheres que já passaram por esta situação quem diz que elas usariam o aborto de forma irresponsável e rápida demais se ele fosse descriminalizado.

A postura que levanta a necessidade de solidariedade ontológica humana, e, por isso, respeito pelo zigoto, para ser coerente, deveria remeter a mesma pergunta pela solidariedade com as mulheres e sua integridade psicológica, física e moral. Isto requer perguntar se ela tem condições reais de levar adiante esta gravidez. Nem sempre a gravidez é resultado de um engendramento acordado entre duas pessoas, de um ato de amor. Muitas vezes, há violência sexual, desconhecimento do corpo, incapacidade de gerir a própria vida de forma satisfatória que se atravessam como realidades constitutivas da vida sexual e reprodutiva das mulheres.

IHU On-Line - O problema do aborto poderia ter uma outra solução do que uma lei a favor ou essa é a única resposta?
Elaine Neuenfeldt -
Uma resposta que se limita a dizer a favor ou contra não consegue estabelecer uma agenda mínima para um diálogo. O desafio hoje se coloca em construir uma agenda que seja capaz de superar o embate das posições antagônicas. São pressupostos, para um diálogo, posturas de escuta ativa e participativa e  escuta solidária das mulheres que passam por situações onde precisam tomar decisões difíceis. Diálogo implica em escutar as vozes e reconhecer as mulheres como sujeitos capazes de tomar decisões éticas com responsabilidade.

Uma postura que promoveria reflexões capazes de abrir para um debate mais amplo, envolvendo diferentes sujeitos sociais em termos pedagógicos e pastorais, poderia ser: manifestar a opinião contrária à banalização do aborto, ir além de posições simplistas, extremistas ou fundamentalistas, e manifestar a contrariedade a uma lei que pune e criminaliza a mulher. O aborto é um assunto de ordem plural, de saúde pública, um problema social e familiar. Sendo plural, irá requerer manifestações e debates plurais e abertos. Posturas fechadas e condenatórias ou simplistas não ajudam para dar continuidade ao tema.

IHU On-Line - Em que medida se pode relacionar o fenômeno do aborto com a mentalidade abortista que banaliza a questão?
Elaine Neuenfeldt -
Em primeiro lugar, é preciso entender o que se quer dizer quando se formula a idéia de mentalidade abortista, conforme eu já disse acima. Entendo que advogar pela capacidade moral de mulheres tomarem decisões éticas com responsabilidade está longe de carregar em si o que se tem tentado chamar de mentalidade abortista. Banalizar o assunto seria, no meu entendimento, obviar a realidade brutal que faz com que no Brasil o aborto seja a quarta causa de mortalidade materna. E ainda pior é saber que se os dados estatísticos registrassem de forma correta os números, seriam ainda maiores. Estima-se que ocorram um milhão de abortos clandestinos no país a cada ano. Uma grande parte dessas mulheres são meninas com idade de até 15 anos, ou mulheres separadas ou solteiras. A maioria delas é pobre e sem condições financeiras para receber um atendimento adequado. Banalizar o aborto é não tomar em conta esta realidade, e seguir dizendo que se defende a vida.

IHU On-Line - É possível conjugar a defesa e a autonomia da mulher e a defesa do embrião?
Elaine Neuenfeldt -
É preciso situar a discussão da decisão de interrupção voluntária da gravidez com a mentalidade construída para as mulheres que as impele para a maternidade compulsória. A sociedade parece só reconhecer as mulheres em seu papel de mãe. Ampliar o entendimento, incluindo mulheres e a sua situação de gravidez, acontecerá na medida em que o sujeito social mulher seja colocado mais na roda do debate quando se trata dos direitos reprodutivos. Implica também entender que quando se fala em direitos reprodutivos quer-se dizer algo mais amplo que só debater sobre o aborto: discussões da sexualidade em geral, ou quando, com quem, quantos, em que época, e como se quer ter filhos e filhas.

É possível então, conjugar estas duas defesas, quando se trabalha pela educação sexual nas escolas, nos espaços comunitários, quando ações concretas para eliminar a ignorância em assuntos de saúde reprodutiva são desenvolvidas e propostas, em todos os âmbitos. Defesa de vida tem a ver com educação e apoio familiar, sensibilizando tanto homens como mulheres para atitudes conseqüentes e responsabilidade por seus atos. Defesa de vida, por sua vez, tem a ver com uma postura crítica a um sistema econômico que gera pobreza e exclusão. É fato que a maioria das mulheres que toma a decisão de interromper uma gravidez não desejada o faz porque está sozinha e não consegue vislumbrar possibilidades de ter uma criança nesta situação, como já disse.

Em termos de argumentação cristã, eu formulo minha postura com base na idéia bíblica do sacerdócio geral de todas as pessoas crentes e na abundância da graça de Deus para toda pessoa. A pessoa humana tem acesso direto a Deus e, diante desta realidade, tem a habilidade e a responsabilidade moral de conhecer e praticar a Sua vontade. É pretensão autoritária querer se colocar de agente moral intermediário único, que controla e limita o diálogo com Deus. As Igrejas têm papel fundamental na orientação de caminhos que levem a atitudes responsáveis. Contudo, não podem requerer para si a exclusividade do agenciamento moral e ético. A graça de Deus é ampla e acolhedora para aquelas que, com responsabilidade, fazem suas escolhas no campo da reprodução e da sexualidade. A graça se estende sobre as que decidem pela maternidade, mas também sobre aquelas que, em meio a ambigüidades e conflitos, a dores e temores, precisam tomar a difícil decisão de interromper uma gravidez inviável.

IHU On-Line - O aborto pode ser considerado um método de controle da natalidade?
Elaine Neuenfeldt -
Não. E vejo que dificilmente algum grupo de mulheres, feminista ou outro, discute nesta linha. Este é problema quando se reduz o tema do aborto a posições antagônicas, de ser contra ou a favor. Ou quando não se consegue estabelecer uma agenda mínima de diálogo e se pressupõe o que o outro lado está querendo dizer. Dialogar requer ouvir primeiro para depois emitir idéias e conceitos. Implica também, e fundamentalmente, desarmar-se de posições fechadas. Deve-se ouvir o testemunho de mulheres e permitir que a sua voz e sua experiência de vida construam argumentos visando a conceitos que não banalizem nem cristalizem posições.

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