Edição 218 | 07 Mai 2007

“Podemos encarar essa desindustrialização como um problema a ser enfrentado e revertido”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

A economista Liana Carleial, em entrevista exclusiva à IHU On-Line, por telefone, afirma que a desindustrialização no País não pode ser entendida apenas como uma desindustrialização clássica. Para ela, o que ocorre atualmente no Brasil é uma “desindustrialização acelerada”, a qual ela atribui à diferença histórico-estrutural.

Liana Carleial é professora titular da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora do CNPq.
Tem graduação e mestrado em economia pela Universidade Federal do Ceará, com a tese intitulada Salários e desemprego: o caso brasileiro e doutorado em teoria econômica pela Universidade de São Paulo, USP, com a tese Acumulação capitalista, emprego e crise: um estudo de caso. Liana Carleial também cumpriu estágio de pós-doutorado em Economia Industrial na Université Paris XIII (Paris-Nord), U.P.XIII, Villetaneuse, França. Foi diretora-presidente do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) e professora-convidada, na Faculté d´Économie et Gestion da Université de Picardie Jules Verne, em Amiens-France. Entre outros artigos, a professora publicou “Subdesenvolvimento globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos 1990” e “Economia Solidária: utopia transformadora ou política assistencialista de controle social?”

IHU On-Line - No artigo “Firmas, flexibilidade e direitos no Brasil: aonde vamos?”, a senhora diz que o Brasil passa por um lento e inconteste movimento de relocalização industrial. O que isso significa?
Liana Carleial –
Nesse texto eu procuro discutir as mudanças que o País sofreu de forma mais intensa nos anos 1990, em conseqüência da abertura comercial, da privatização das empresas estatais e, fundamentalmente, da reestruturação capitalista. Esse é um processo que a indústria e os demais setores da economia sofreram para se “adequar” ao modelo imposto pela mundialização. A reestruturação pode ser entendida como um conjunto de mudanças organizacionais, tecnológicas e de gestão da força de trabalho num ambiente de mudanças institucionais importantes (desregulamentação dos mercados de trabalho,financeira etc) e de instalação de um novo paradigma tecnológico centrado, na microeletrônica. Eu estudei também o processo de desverticalização de várias grandes empresas e da conseqüente constituição de suas redes de subcontratação nos setores da metal-mecânica, eletro-eletrônica e confecções.

Já a relocalização industrial iniciou-se como um processo de transferência de alguns investimentos das regiões Sul e Sudeste em direção ao Nordeste, como no caso dos calçados, em busca de menores salários; atualmente já é possível constatar uma tendência de interiorização da indústria brasileira. Recentemente estive na Unicamp, para a banca de defesa de dissertação de mestrado de Tiago Oliveira , na qual ele aponta exatamente essa relocalização industrial como uma tendência mais geral. Veja que, segundo os dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), em 2005, as regiões metropolitanas abrigavam 32% dos estabelecimentos industriais de grande porte, enquanto, no final dos anos oitenta do século passado essas mesmas regiões detinham 50% desses estabelecimentos. 

IHU On-Line - O processo de desindustrialização, que muitos especialistas afirmam estar acontecendo no País, tem gerado muitas controvérsias. O que ocorre é uma desindustrialização precoce no País?
Liana Carleial –
Hoje, a gente tem que ter muito cuidado ao discutir a desindustrialização para não gerar mal entendidos. Eu acho importante estabelecer essa discussão tendo presente a condição do subdesenvolvimento brasileiro. A desindustrialização, entendida como perda de participação da indústria no valor adicionado do país, ou seja, no PIB e ainda no emprego total, é um conceito clássico. Agora, contemporaneamente, ele assume um determinado formato. Nas economias desenvolvidas, isso começou a acontecer nos anos 1970, e foi acompanhado pelo processo de “terciarização” do emprego nestas economias. “Terciarização” no sentido da migração do emprego industrial para um emprego no setor terciário moderno, mais dinâmico e ligado, por exemplo, à informática e ao setor financeiro. Esse, no entanto, não é o caso dos países subdesenvolvidos.
Na realidade, se consideramos os casos latino-americano e brasileiro, em particular, vamos constatar que quando a industrialização avança por aqui, o mundo desenvolvido tinha conseguido construir seus núcleos de inovação, já estava dominado por grandes empresas e já era povoado por sociedades mais igualitárias. Essa defasagem tem implicações importantes, nunca superadas, no que se refere à tecnologia e à capacidade de absorção de força de trabalho pela indústria. Mesmo assim, o Brasil, como sabemos, conseguiu construir uma importante estrutura industrial, complexa e diversificada, dos bens de consumo leves aos bens de capital. No entanto, essa diferença original vai implicar que o processo de desindustrialização clássico ocorre por aqui mais cedo, relativamente ao mesmo processo nos países desenvolvidos, porém sem que os efeitos da industrialização tivessem ainda atingido parcelas significativas da população. Então, é como se a gente tivesse uma aceleração desse processo, por um lado, e por outro, com conseqüências também diferenciadas. 

IHU On-Line – Não é possível comparar o crescimento do Brasil com o de países desenvolvidos?
Liana Carleial –
Não vivemos a mesma situação, porque sempre tivemos um significativo emprego no setor terciário, só que um terciário de baixa produtividade e de baixos salários. Então esses movimentos não são comparáveis. É importante ter isso claro, porque se não fica a impressão de que o Brasil está simplesmente seguindo o caminho dos países desenvolvidos, logo não haveria qualquer problema! Eu quero marcar bem que há uma diferença. Uma diferença histórico-estrutural. Essa diferença vai se aprofundar depois dos anos 1980 e 1990. Nos anos 1980 do século passado, o País teve a crise da dívida externa, a natureza da nossa vulnerabilidade externa complicou-se e, adicionalmente, o modelo de financiamento desse desenvolvimento que se tinha tido até então entrou em crise. Tudo isto gerou uma grande crise industrial e, eu diria que, até hoje, nós não saímos verdadeiramente dela porque nós não conseguimos construir novamente um modelo de desenvolvimento, um projeto de desenvolvimento e, digamos assim, juntar a nação em torno dele. Eu não sou pessimista; estou apenas mostrando as dificuldades que hoje são maiores, mas que foram sendo constituídas ao longo do tempo.

IHU On-Line – Se considerarmos o movimento de privatização, o movimento de internacionalização da economia, associado à abertura comercial financeira pelas flexibilizações do mercado de trabalho, podemos dizer que esses fatores tiveram um impacto na estrutura produtiva industrial, levando a desindustrialização no Brasil?
Liana Carleial –
Tudo isso teve um impacto muito forte na estrutura produtiva, especialmente a industrial. Eu começaria dizendo que, quanto à desindustrialização, naquele conceito clássico discutido anteriormente, há praticamente um consenso entre os estudiosos. Quando a gente analisa o quadro brasileiro, a partir do conceito de desindustrialização como perda de participação relativa no produto industrial, no PIB e no emprego, há um consenso em todos os estudos. Isso não é apenas uma tendência, já permite uma constatação consubstanciada nas seguintes evidências: no auge da industrialização do País, em 1980, a participação da indústria no PIB brasileiro era de 30%; chega a 33% em 1986; recua para 19% em 1998, e, após a desvalorização do real, em 1999, começa a reverter a sua posição, chegando a 22% em 2004.

Dependendo dos períodos analisados, há vários estudos que evidenciam esse ponto. A Unctad divulgou em 2003, um documento mostrando que havia uma diferença muito grande de comportamento da indústria dos países em desenvolvimento, quando são comparados, por exemplo, América Latina, China e Índia, identificando entre nós (latino-americanos) uma perda de dinamismo industrial, sinalizando para uma desindustrialização negativa. O IEDI, do qual retirei os dados acima, aponta na mesma direção e os meus colegas de UFPR, Fábio Scatolin  e Gabriel Meirelles  também apontam essa desindustrialização no sentido clássico, para citar apenas alguns trabalhos.

A pergunta que se abre a partir dessa constatação é: qual o seu significado no contexto do subdesenvolvimento globalizado? Isto sinaliza um problema a ser enfrentado ou não? Eu faço parte daqueles que acham que há um problema e um problema grave. Primeiro porque não é comparável ao que está acontecendo nos países desenvolvidos. Veja que, por exemplo, ainda hoje, a França e a Inglaterra possuem uma participação de seus produtos industriais no PIB maior do que a nossa.

Em segundo lugar, esse processo também pode ser visto num contexto mais amplo como aquele de desindustrialização, como mudança na estrutura industrial. Já em 2002, o Ricardo Carneiro, da Unicamp, mostrava uma certa especialização da indústria em determinados setores, impondo uma perda ao País daquela diversidade e complexidade industrial adquiridas no período de 1949 a 1980; do mesmo modo, já identificava a ampliação do componente importado dessa indústria. Hoje, esse dois movimentos se ampliaram e estão agravados também em conseqüência da política econômica em curso, que induz à valorização do real e subordina todas as demais variáveis à dominância da política monetária. Eu gostaria de reforçar o argumento de que a nossa desindustrialização não pode ser entendida meramente como a desindustrialização clássica do capitalismo avançado. Nós temos, sim, uma desindustrialização acelerada pela diferença histórico-estrutural e agravada pelo processo de ajuste dos anos 1990, pois tivemos inserção na globalização pelo lado financeiro e não pelo lado produtivo e, finalmente, pela natureza da política econômica. Agora, isso não é tudo, porque quando a gente joga essa discussão na atualidade contemporânea, neste ano de 2007, há muitas questões que a gente precisa incorporar e que dão outro conteúdo ou outro significado a essa constatação da desindustrialização num contexto de subdesenvolvimento globalizado.

IHU On-Line - Qual é a principal diferença entre a desindustrialização que ocorre nos países desenvolvidos e a que ocorre no Brasil? Nosso país foi influenciado pela desindustrialização dos países de primeiro mundo?
Liana Carleial –
Os países desenvolvidos também sofrem um processo de desindustrialização em decorrência da reestruturação capitalista e dessa “nova” fase da globalização, uma vez que alguma parte do emprego industrial deles foi transferido para outros países. Ou foram para a Ásia, para a América Latina e para a Europa Oriental. Entretanto há uma especificidade nessa deslocalização industrial no mundo que atinge muito a América Latina. É que esse processo de deslocalização, tomando como exemplo, o caso da automotiva, não foi acompanhado por processos de transferência de conhecimento e de aprendizado local. Em junho do ano passado, eu participei de um congresso do GERPISA , no qual havia pesquisadores sobre a indústria automobilística de vários países e só no caso brasileiro não havia práticas consistentes e continuadas de transferência de conhecimento entre as empresas-sede e as suas montadoras. Mais uma vez, a China e a Índia mostram que pode se fazer diferente. Então, existe em curso um processo de constituição da firma-rede que representa, em certo sentido, o lugar (o locus) privilegiado da divisão internacional do trabalho que, por si só, já faz uma diferença entre a indústria que temos e a que os desenvolvidos têm lá.

Mas voltando ao ponto que eu comecei a argumentar na minha resposta anterior quanto ao significado dessa desindustrialização. Acho muito importante que coloquemos essa questão com mais destaque e com maior aprofundamento, pois a economia mundial globalizada oferece, neste momento, novos riscos para o mundo subdesenvolvido. Um deles é como se encara a vigorosa entrada da China no comércio mundial, alterando os preços relativos e impactando diferentemente sobre produtos agrícolas e produtos industriais.  Ela deslocou muito fortemente a demanda por produtos primários e isso atinge não só o Brasil, mas a África também, favorecendo a exportação de outros países como a Argentina e a África do Sul. Isso gera um efeito positivo sobre as rendas agrícolas e penaliza a indústria. Fica mais difícil num momento de perspectivas positivas para as receitas agrícolas e para a manutenção/ampliação de superávits comerciais agrícolas dar-se a devida atenção aos efeitos desse mesmo fenômeno sobre a indústria. Mais delicada é a situação se adicionarmos o esforço que a indústria precisa fazer para ganhar competitividade internacional para compensar a perda imposta pela valorização do real. Em suma, qual tem sido o custo para manter e ampliar as exportações tanto agrícolas como industriais diante desse “tsumani” chinês e desta política econômica viesada? Parece que a saída tem sido reforçar o papel de exportador de produtos primários para os países subdesenvolvidos.
 
IHU On-Line – O Brasil tem condições de reestruturar a indústria, ou, como a senhora diz, é possível reindustrializar-se a partir da exportação dos produtos gerados com a cana-de-açúcar?
Liana Carleial –
O Brasil já perdeu várias oportunidades de inverter a tendência e de entrar numa trajetória de reversão do subdesenvolvimento. Eu considero que nós estamos num momento crucial dessa natureza que é capitaneada por essa euforia com um novo ciclo da cana-de-açúcar e do pretenso papel do Brasil enquanto redentor da economia mundial naquilo que se refere à energia renovável.  Acho que essa é uma questão que a gente precisa olhar com muito cuidado, porque pode ser um novo risco que a economia mundial oferece e que, dependendo da forma como o País e a política econômica capturam esse momento, o resultado pode ser positivo ou negativo. Neste contexto da desindustrialização e diante do “sucesso” dos produtos primários no mercado mundial, corre-se o risco de ganhar força o entendimento de que o Brasil encontrou uma “nova” porta de saída. Vamos agora nos consolidar enquanto um país primário exportador, mas com uma função importante, que é ser um pouco o redentor dos problemas da energia não renovável, por exemplo. Esse é um grave problema porque é possível analisar o mesmo fato de outro ângulo, ou seja, constituir no País uma alcoolquímica e desenvolver industrialmente tudo que é possível fazer na cadeia da cana-de-açúcar. E assim reduzir a dependência dos produtos químicos que o País tem dos mercados externos. Eu acho até que ainda daria para recuperar um artigo antigo da Carlota Perez, acho que de 1985, quando ela fala da necessidade dos países subdesenvolvidos interpretarem bem a realidade mundial, compreenderem bem a sua posição relativa no mundo e aproveitarem “as janelas de oportunidade”. De um lado, nós, brasileiros, podemos escolher consolidar a nossa posição de periferia do capitalismo, enquanto um país primário-exportador. Não é mais o café, a borracha, o açúcar ou a soja. Mas será o álcool! De outro lado, porém, podemos encarar essa desindustrialização como um problema a ser enfrentado e revertido, pois interessa a todos nós por todas as repercussões positivas sobre a estrutura produtiva, sobre o mercado de trabalho e ainda sobre a autonomia do país. Um país como o Brasil, com o setor industrial que ele foi capaz de criar, não há porque optar pela exportação de commodities. Podemos transformar isso numa grande oportunidade de formação de pessoal, de constituição de programas voltados para a cadeia de produtos químicos a partir da cana e do álcool e constituir uma nova força industrial ao lado da produção da cana e da exportação do álcool.

IHU On-Line – Alguns especialistas têm uma relativa descrença em relação à eficácia e à  necessidade da política industrial. Qual a sua avaliação?
Liana Carleial –
Essa descrença, num ambiente de constatação da desindustrialização, é desastrosa. Alguns economistas e políticos consideram que os fundamentos da economia bem ajustados, leia-se fundamentalmente o controle inflacionário, associado a indicadores positivos de aceitação pelos mercados do rumo da política econômica do país A ou B, são o suficiente. E, na verdade, não é suficiente para um país com as características das do Brasil. Eu acho que, diante da tendência da desindustrialização, num país com forte concentração de renda e mercados de trabalho restritos, no que se refere à capacidade de geração de postos de trabalho qualificados e com salários acima de dois salários mínimos mensais, é imprescindível o estabelecimento de uma “contra-tendência”. No entanto, essa descrença também poder ter origem na incapacidade que o Brasil tem demonstrado em mudar a natureza da política industrial, o que é um imperativo. Eu me explico. O governo Lula criou a Política Industrial de Comércio Exterior e Tecnológica, em 2003, integrada ao Comércio Exterior, logo bem concebida. Priorizou os setores deficitários no comércio exterior: fármacos, software, bens de capital e semi-condutores. O que aconteceu de lá para cá? Eu diria que muito pouco. O que eu defendo, naquele artigo sobre o subdesenvolvimento globalizado, de 2004, é que dada a natureza das mudanças ocorridas a partir dos anos 1990 e da presença maciça das firmas-rede em diferentes setores da indústria, não adianta apenas montar uma política industrial centrada na atração de novos investimentos e limitada à produção. A natureza da política industrial precisa mudar e ir além da produção. Isso porque dada essa correlação de força entre os países subdesenvolvidos e desenvolvidos discutida acima, o fato agravante de o conhecimento ter se transformado num ativo que você vende e aluga, o que na realidade subordina ainda mais os países subdesenvolvidos, faz com que seja preciso mudar a natureza da política industrial. É preciso que ela seja capaz de ampliar a capacidade de o país sediar projetos industriais e desenvolver produtos, por mais simples que sejam. Certamente, torna-se necessário incorporar uma dimensão da política pública voltada para a indústria. O país tem os instrumentos institucionais para fazer isto, pois ainda tem o BNDES, por exemplo. É a isto que chamo mudança na natureza da política industrial. Naquele artigo discuto melhor esse ponto.

IHU On-Line – Quais as implicações da desindustrialização sobre o mercado de trabalho no país?
Liana Carleial –
A desindustrialização tem implicações violentas sobre o mercado de trabalho porque se nós temos uma indústria com baixa capacidade de sediar projetos e desenvolver produtos, você não tem como qualificar os postos de trabalhos, melhorar a estrutura salarial e melhorar a formação profissional dos engenheiros, químicos, técnicos em geral. Se conversarmos hoje com um engenheiro formado há 30 anos e que seja professor, ele vai confirmar que, na média, há uma tendência de redução do conteúdo da disciplina que ele ensina hoje, em relação ao conteúdo que ele recebeu na mesma disciplina. É isto que interessa ao futuro do País e ao futuro do mercado de trabalho brasileiro?

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição