Edição 217 | 30 Abril 2007

O divino em todas as partes do sistema

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IHU Online

“Pode-se dizer que no pensamento de Hegel o divino está presente em todas as partes do sistema”, salienta o filósofo alemão Walter Jaeschke, diretor do Hegel-Archiv, na Ruhr-Universität Bochum, Alemanha, na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à IHU On-Line.

Ele acrescenta que “até a lógica é para ele o mesmo que a representação de Deus antes da criação do mundo, e a natureza também não é uma esfera que está totalmente isolada do divino. Se houvesse uma esfera totalmente isolada de Deus, o divino teria nesta esfera o seu limite, o que não pode ser”. Na opinião de Jaeschke, a força sintética do pensamento hegeliano pode ser notada de modo especial na Fenomenologia do espírito: “é uma obra única, com caráter completamente diferente das antigas obras filosóficas. A sua função sistemática é a introdução ao sistema de filosofia de Hegel”. Não se trata, contudo, de uma “introdução no sentido de ensinamento didático, e sim com uma justificativa científica”.

Graduado em Filosofia, Ciência da Religião e Sinologia pela Universidade Livre de Berlim, Jaeschke doutorou-se em Munique em 1976 com a tese Die Suche nach den eschatologischen Wurzeln der Geschichtsphilosophie. Eine historische Kritik der Säkularisierungsthese (A procura das raízes escatológicas da filosofia da história. Uma crítica histórica da tese de secularização). É colaborador da Academia das Ciências de Brandemburgo. Desde 1998, leciona Filosofia na Ruhr-Universität Bochum, dirige o Hegel-Archiv nessa mesma instituição e coordena a edição Hegel: coletânea de obras.

IHU On-Line - Qual acredita ser a maior contribuição e legado da filosofia hegeliana, e em específico, da Fenomenologia do espírito? Quais são as proposições mais importantes dessa obra?
Walter Jaeschke -
A filosofia de Hegel é um dos últimos modelos de pensamento abrangente da grande tradição filosófica. Sua idéia, que, aliás, também é compartilhada pela filosofia daquela época e com Kant, de enquadrar o conhecimento filosófico em um sistema, traz como conseqüência, mesmo que hoje seja considerada predominantemente inadequada ou menosprezada, que da sua filosofia podem ser traçadas interligações independentes para as diversas disciplinas da filosofia atual: para a lógica, para a filosofia natural e, principalmente, para a filosofia do espírito.  Algumas destas áreas, como a filosofia do direito, a filosofia da história, a estética, a filosofia da religião e a história da filosofia receberam em sua fase de formação, por volta de 1800, forte influência da forma obtida na obra de Hegel. Naquela época não era nem um pouco comum serem realizadas leituras sobre a filosofia da história, estética ou filosofia da religião. E a visão da história da filosofia, não meramente contada, e sim com abrangência filosófica, também está relacionada principalmente ao nome de Hegel. Com isso, o efeito da filosofia de Hegel se faz presente ainda hoje, exatamente onde não se percebe como tal, e também onde é formulada claramente uma oposição ao seu sistema. Atualmente, porém, estas disciplinas estão dissociadas: elas perderam a ligação com a base comum, que antigamente era a filosofia do espírito de Hegel. Hegel compreende a história, a arte, a religião e a filosofia como formas objetivas que se explicam na sua objetividade, na qual o espírito está direcionado ao autoconhecimento. Só assim as áreas paralelas formam uma única unidade.

Força sintética do pensamento hegeliano
Porém, não é somente o vasto leque de disciplinas filosóficas que podem ser mais facilmente compreendidas através da filosofia de Hegel: o mesmo vale para a história da filosofia. Do sistema de Hegel é possível acessar quase todos os filósofos que o antecederam: tanto Platão como Aristóteles, Hobbes como Spinoza , Descartes  como Hume e, naturalmente, Kant e seus colegas daquela época, Fichte e Schelling . Resumidamente, o pensamento da tradição está focado no princípio de Hegel, não somente em suas leituras da história da filosofia, mas também no embasamento da sua filosofia, nos elementos específicos, transcendentais filosóficos e metafísicos que compõem o caráter da sua Ciência da lógica.

A impressionante força sintética do pensamento de Hegel pode ser observada de uma maneira especial já na sua Fenomenologia do espírito, a obra que apareceu há 200 anos e neste ano está sendo relembrada mundialmente. É uma obra única, com caráter completamente diferente das antigas obras filosóficas. A sua função sistemática é a introdução ao sistema de filosofia de Hegel. Desde os seus primeiros rascunhos de sistemas (do ano de 1801/1802), Hegel tinha a convicção de que o “pensamento especulativo” que ele desenvolvia na sua lógica e na filosofia da natureza e do espírito necessitava de uma introdução, primeiramente não uma introdução no sentido de ensinamento didático, e sim com uma justificativa científica. Ele possuía a convicção de que a “consciência natural” merecia que se abrisse o caminho para chegar a este conhecimento filosófico ou como formulou Hegel, em resposta a uma solicitação por parte do ceticismo da época: a consciência natural tem o direito de que se alcance a “escada” a ela, para que se possa subir ao conhecimento filosófico. Provavelmente, Hegel só tinha a intenção de mostrar isto através da experiência, o que a consciência natural individual fazia em seu pensamento, mas então, muito provavelmente no contexto da sua “leitura sobre a história da filosofia” no final de 1805 e início de 1806, teve a convicção de que a “consciência natural” não é meramente “natural” e sim muito mais “histórica” e que, portanto, uma introdução ao sistema de filosofia deve ter como base o longo percurso do desenvolvimento histórico do pensamento.

Com isto ele chegou à conclusão que todo o nosso conhecimento é transmitido historicamente: as expressões abstratas com que pensamos e falamos e os conceitos que utilizamos. Esta é uma compreensão que estava tão afastada do racionalismo dos séculos XVII e XVIII como do empirismo daquela época. Em outras palavras: devemos à Fenomenologia do espírito de Hegel o pensamento do aspecto histórico da razão, uma história de consciência, na qual o nosso mundo espiritual tem se desenvolvido até a forma que conhecemos hoje, passando pela fala, pelas nossas instituições até a religião, arte e ciência. Por isso, muitos vêem esta forma como a “única” e “natural”, mesmo que ao todo tenha sido transmitida historicamente. E Hegel entende este processo histórico de consciência não pela visão do historicismo posterior, como uma conclusão relativista, e sim como um desenvolvimento de todas as formas da vida espiritual, onde todas as formas estão baseadas e correlacionadas ao desenvolvimento da “subjetividade”.

IHU On-Line - Transpondo as idéias da Fenomenologia do espírito para nossos dias, como elas podem nos inspirar na busca de novos caminhos para o ser e o agir?
Walter Jaeschke -
É justamente esta concepção genealógica do pensamento mencionada há pouco que é de grande importância para entender o caráter natural dos nossos dias, mesmo que, diferentemente de Hegel, nós gostemos de utilizar nos dias de hoje a “genealogia” para a desconstrução das concepções que tiveram seu aparecimento descrito.  Aproximadamente um meio século após a morte de Hegel (1831), Nietzsche  escreveu a sua obra Sobre a genealogia da moral, que justamente nos dias de hoje desperta bastante interesse. Na Fenomenologia de Hegel estão incluídas, ao mesmo tempo, várias “genealogias”, inclusive uma “genealogia da moral”, do direito e do estado, da consciência e da ciência, da arte e da religião, obviamente apenas de modo subjetivo e não expresso, e também não com intenção destrutiva, e sim construtiva, para esclarecer como a percepção do mundo e de nós mesmos se desenvolveu historicamente durante um longo período.  Considerando este tipo de genealogia, falamos ainda hoje de uma “evolução cultural”, e a Fenomenologia do espírito de Hegel poderia ser considerada uma primeira forma deste tipo de “teoria da evolução cultural”, claro que não do período inicial da história da humanidade, mas para o desenvolvimento nas épocas, da antiguidade até a época de Hegel. A propósito, este aspecto foi o assunto central de um seminário que aconteceu no mês passado na Academia das Ciências de Berlim. E também nesta ocasião mostrou-se que os problemas abordados pela Fenomenologia não poderiam ter sido respondidos na época, pois com certeza os meios não eram suficientes, problemas estes que até hoje ainda não foram trabalhados de maneira adequada, mesmo que seja porque as suas respostas ultrapassem os limites hoje vigentes das disciplinas cientificas. Onde haveria uma teoria complexa que pelo menos tematizasse o desenvolvimento da subjetividade com o desenvolvimento de instituições sociais, assim como também com a visão do mundo caracterizada pela razão e ao mesmo tempo pela arte e pela religião? Atualmente, existe a expressão “pensamento inventivo de problemas”, ou seja, um pensamento que “cria” problemas, tirando a existência da latência e trazendo-a para a consciência. A Fenomenologia de Hegel é um destes “pensamentos inventivos de problemas” em grande estilo, e não se pode dizer que pelo menos uma parte dos problemas descobertos e tematizados por ela tenha sido trabalhada até os dias de hoje, quanto menos resolvido.

IHU On-Line - As obras de Hegel costumeiramente são tidas como herméticas em função de sua linguagem. Nesse sentido, como o senhor entende a iniciativa do filósofo brasileiro Cirne Lima  em traduzir para a lógica formal a Ciência da lógica de Hegel?
Walter Jaeschke -
Realmente, hoje a obra de Hegel é considerada pouco acessível. Isto, porém, não é assim uma característica específica da sua obra, e sim de várias obras da rica tradição filosófica. Nesta tradição é sempre necessário formar uma nova “linguagem” para apresentar cada problema tematizado. Isto é basicamente um fenômeno geral e típico, que hoje, com o grande espaço de tempo, temos a tendência de achar que este tipo de dificuldade de compreensão poderia ser evitado, e que a filosofia de Hegel (ou outra grande filosofia – eu cito, por exemplo, Spinoza, Leibniz  ou Kant) poderia ser entendida durante a leitura sem uma preparação adequada. Para se conhecer bem uma filosofia destas, é necessário não somente uma leitura intensa, mas também é preciso conhecer todo o meio que a cerca, pois os problemas que são tematizados nela, na sua própria linguagem, já foram desenvolvidos na história da filosofia e na linguagem filosófica. A conotação destes antigos contextos sistemáticos tem grande influência, como por exemplo, no discurso da “substância” ou do “sujeito”, citando somente dois exemplos.  No que se refere à possibilidade de facilitar o acesso à Ciência da lógica de Hegel através de uma tradução do conteúdo pensante para a lógica formal, infelizmente devo informar que não possuo competência para isto.  Este tipo de tentativa já existe há muito tempo. Eu penso, por exemplo, na obra de Gotthard Günther há mais de meio século. Não achei que este tipo de tentativa de tradução tenha sido uma facilitação para o acesso, e sim mais uma dificuldade adicional, mesmo que teoricamente seja muito sofisticada. Porém, eu sei muito bem que o colega Cirne Lima, com o qual eu há alguns anos, infelizmente, só tive um breve contato, é um excelente conhecedor da filosofia hegeliana, e assim, pode ser que as dificuldades que eu tenho com este caminho de acesso sejam devido à minha incompetência pessoal na área da lógica formal. O meu acesso pessoal é entender a Ciência da lógica de Hegel a partir dos seus programas filosóficos que depois foram formulados para Kant e para Spinoza (apenas para citar os dois pontos históricos de referência mais importantes entre vários outros), e entender também o concreto desenvolvimento do pensamento com os termos criados nesta tradição: em princípio como uma explicação completa de todas as definições de pensamento na sua inter-relação sistemática. Mas, com certeza, um bom caminho é tentar interpretar a lógica de Hegel na perspectiva da lógica moderna, até para se trazer esta lógica moderna à tona.

IHU On-Line - Como o “dever-ser” de Hegel pode auxiliar o sujeito contemporâneo na busca e construção de sua autonomia?
Walter Jaeschke -
Hegel possui lá suas dificuldades com o “dever”. Ele gosta muito de criticar! É um dever vazio apresentado como uma exigência moral, exigência esta que não se sabe em que se baseia e que também deve ser vazia para manter a sua generalidade abstrata, tudo o que ele critica no “imperativo categórico” de Kant. Porém, em relação ao contexto do problema “sujeito – autonomia”, sua filosofia oferece uma contribuição abrangente, mesmo que esta contribuição talvez não seja tão aparente como o termo autonomia na ética de Kant.

Hegel é, sem dúvida, o pensador que desenvolveu abrangentemente o campo dos termos “sujeito, subjetividade, consciência” e fez deles um problema central da filosofia, após o discurso de Fichte sobre o “eu”. Aqui parece que Hegel não foi propriamente original. Nós estamos acostumados a caracterizar a filosofia da idade moderna como uma “filosofia de subjetividade”, separando-a da filosofia antiga, o que em geral está certo. Porém, este ponto de vista comum de hoje desconsidera que esta imagem da filosofia do início da idade moderna só existe devido à interpretação de Hegel. Foi somente Hegel quem definiu o princípio do “ego cogito” de Descartes, do eu pensante como o pensamento central de Descartes e, ao mesmo tempo, como o início da filosofia moderna. Os termos “consciência” e “subjetividade” nem são encontrados em Descartes; foi Hegel quem mostrou que com a volta do pensamento de Descartes para o eu pensante, como fundamento de todos os conhecimentos, começava uma nova Era da história da filosofia. Para os antecessores de Hegel e seus colegas daquela época, Descartes não é um “filósofo da subjetividade” e sim, principalmente, aquele no qual se baseou o dualismo ontológico da substância pensadora e ampliada, de res cogitans e res extensa. Descartes também era considerado naquela época como aquele que desenvolveu a prova ontológica de Deus, a prova da existência de Deus a partir do termo do Ser perfeito. Esta interpretação de Descartes é predominante até Schelling, inclusive até a chamada “filosofia tardia” de Schelling, que é substituída pela interpretação de Hegel.

Com toda certeza, Hegel não teria tido condições de chegar a esta interpretação marcante da história da filosofia se o problema mostrado nela não fosse o problema central da sua própria filosofia. Naturalmente, Hegel não trata este problema da maneira como é tratado na filosofia transcendental de Kant, e também não na forma de uma “história da consciência”, que é explicado de maneiras diferentes por Fichte e Schelling, ou seja, como uma descrição da relação sistemática das “ações” internas do pensamento que constroem o Eu. Esta área de problema é até um pouco desprezada por ele. Talvez se olharmos para seus dois antecessores mencionados e colegas daquela época possamos achar o motivo. Hegel tematiza o “sujeito” por uma outra perspectiva: como base de todo o mundo espiritual. O sujeito, ou a “liberdade” como ele disse uma vez, é para ele “o mais interior, do qual toda a construção do mundo espiritual ascende”. Hegel trouxe pela primeira vez isto à consciência geral, e este é um aspecto que também deveria ter uma importância fundamental para a compreensão do sujeito dos dias de hoje: tudo que pode ser encontrado no mundo espiritual é uma manifestação da subjetividade, partindo-se das primeiras formas desta manifestação na fala, passando pelo mundo do direito com as instituições que dele se originam, até a arte, a religião e a ciência.  É claro que se pode contestar dizendo que isto é obvio de qualquer maneira, mas isto nunca tinha sido abordado desta maneira e nem tornado-se consciente, pelo contrário: o sujeito justamente não era reconhecido como fundamento deste mundo espiritual. Isto pode ser visualizado na história do direito, citando apenas um exemplo: quanto tempo levou para que a “personalidade do direito” fosse reconhecida como princípio do direito e o direito reconhecido como uma contribuição da subjetividade e a sua co-relação como parte da subjetividade! Eu penso que esta reconsideração de Hegel sobre a história do sujeito e sua contribuição também fazem parte da sua “produção” e têm muita importância para a melhor autocompreensão do sujeito e, conseqüentemente, da sua autonomia, também em contraste com o discurso comum dos dias de hoje de parte da filosofia sobre “a morte do sujeito”.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios em se traduzir e organizar criticamente a obra de Hegel?
Walter Jaeschke -
No que se refere à edição, a edição histórica crítica dos manuscritos e rascunhos de Hegel, a primeira parte da Coletânea das obras de Hegel está quase concluída. Com isso quase todos os manuscritos e publicações de Hegel estarão disponíveis, e neste ano também será publicada a edição com as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito de Hegel e vários anexos. Em aproximadamente dois anos será publicada a edição com os excertos de Hegel, principalmente da época de Heidelberg e de Berlim. Na maior parte dos casos, são excertos que Hegel fez durante a preparação de suas leituras; eles não são propriamente parte da sua filosofia, e sim provas da utilização das fontes. Infelizmente, temos que dizer que somente uma ínfima parte destes excertos e anotações foi repassada, a maior parte foi perdida ou mais provavelmente destruída pelos sucessores de Hegel, a fim de reduzir o abrangente legado. Um grande problema é que quase todos os manuscritos de leituras de Hegel têm que ser considerados como perdidos, exceto o seu manuscrito da leitura sobre filosofia da religião, assim como alguns fragmentos parcialmente mais detalhados sobre a filosofia da história do mundo e da história da filosofia. Já nos alunos de Hegel se perde o rastro destes manuscritos, que foram utilizados por eles para as edições das disciplinas correspondentes. É claro que não se pode excluir o fato de que algum destes manuscritos ainda apareça, mas é pouco provável.

A situação mais favorável é a das anotações das leituras feitas pelos alunos de Hegel. Aqui também foram perdidas várias anotações por estes alunos durante a publicação da primeira edição das disciplinas correspondentes, mas foram preservadas várias de grande importância, e no lugar das que foram perdidas foram colocadas novas, que antigamente eram desconhecidas. Estas anotações estão sendo editadas na segunda parte da Coletânea das obras: as leituras sobre lógica e metafísica, a filosofia da natureza, a filosofia do espírito subjetivo, a filosofia do direito, a estética e a filosofia da religião e a história da filosofia. Em princípio, aqui não há um problema: o problema é mais organizacional e financeiro, pois as mais de cem anotações repassadas precisam ser transcritas e os textos têm que ser retrabalhados criticamente, e isto leva tempo. Mas aqui também a edição já está bem adiantada. Pelo final deste ano será publicada uma primeira parte da edição Leituras sobre a filosofia do espírito subjetivo (GW 25/I).

A importância dos originais
Os problemas mais difíceis, ou seja, os de natureza primária, são os das traduções. É muito bom que sejam realizadas traduções em todo o mundo. Muitas vezes os tradutores já ficam à espera da conclusão das edições. Porém, por mais necessárias e nobres que sejam estas traduções, mesmo com toda a acribologia e dedicação, elas não podem substituir a leitura de um texto no idioma original. O que também não é diferente quando se trata de uma tradução de textos em latim do início da idade Moderna para o alemão ou para um outro idioma. Além disso, a linguagem de Hegel é tão marcada pela história da filosofia e por necessidades teóricas que os problemas já existentes são potencializados. Isto já começa com a tradução de uma palavra tão usada por Hegel e fundamental para a sua filosofia, a palavra “espírito”. Eu devo lembrar que o título Fenomenologia do espírito é traduzido para o inglês tanto como Phenomenology of spirit como também Phenomenology of mind, e o problema é que as duas traduções estão parcialmente corretas, mas não podem coexistir. Tenho certeza que em muitos outros idiomas há problemas semelhantes, porém não conheço estes idiomas tão a fundo para que possa falar sobre eles.

IHU On-Line - Podemos afirmar que Hegel tentou realizar uma síntese entre helenismo e cristianismo? Por quê?
Walter Jaeschke -
Uma “síntese entre helenismo e cristianismo”: pode-se descrever isto assim. Porém, precisamos levar em consideração que uma síntese deste tipo – ou, nas palavras do teólogo protestante Ernst Troeltsch , do início do século XX, uma “síntese de cultura” deste tipo já existe há muito tempo. Ela já se mostra no fato de que o texto sagrado do cristianismo, o Novo Testamento, foi escrito em grego. O topo da helenização do cristianismo é conhecido, e a discussão não gira em torno da pergunta se existe uma helenização destas, e sim apenas em que formas ela acontece: lentamente e mantendo o conteúdo original religioso ou na forma “aguda”, e por isso provavelmente violando este conteúdo. A helenização é realizada no trabalho pensante dos Pais da Igreja. Ela acontece até nos teólogos da Alta Idade Média, cujos pensamentos recebiam primeiramente os ensinamentos platônicos e mais tarde os aristotélicos. E mesmo assim: Hegel foi provavelmente o único filósofo que, pela sua compreensão do espírito e seus interesses correlacionados à história, incorporou na sua obra, mais do que qualquer outro, esta síntese de cultura.
As duas tradições não são somente “adicionadas” externamente por Hegel; sua obra é marcada pelas duas grandes tradições, tanto pela grega como pela cristã, e de uma forma tão íntima que não faz sentido isolar novamente estas duas tradições unidas na sua obra, ou até mesmo querer colocar uma contra a outra. Como exemplo, talvez possa ser útil o conceito de espírito: ele não pode ser nem atribuído totalmente à tradição grega e nem à cristã, e o que mais se destaca no conceito de espírito vale também no seu sentido abrangente para todo o sistema de Hegel.

IHU On-Line - O espírito finito e o espírito infinito reconciliado: o homem tomando consciência de sua divindade e o divino tomando no homem consciência de si mesmo, tal é o conteúdo que Hegel se esforça para conceitualizar. Como esse movimento perpassa o conceito de Absoluto hegeliano?
Walter Jaeschke -
O conceito de espírito é para Hegel o conceito do Absoluto, e para ele é impossível pensar em Absoluto além do espírito. Para Hegel o “espírito” não é nem algo adicional à “natureza”, um tipo de “epifenômeno” da natureza, e nem algo que vai totalmente contra a natureza, como o que acontece em concepções dualistas. Hegel pensa a realidade como uma unidade diferenciada; já a base da natureza é para ele algo espiritual “em si”, são as definições lógicas, e para ele só por isso o reconhecimento da natureza é possível. Com isso, o “espírito” é a realidade que se baseia nas definições lógicas, que entende a natureza como o outro do espírito e que então se desenvolve livremente da natureza e se reconhece espírito. Esta concepção, em todas os seus diferentes tipos, é totalmente contrária ao dualismo, principalmente o cartesiano; mas também não é puramente “monística” no sentido de um monismo do espírito e uma compreensão da natureza no espírito. Ela procura manter uma correlação entre as esferas da natureza e do espírito, nas quais, porém, a natureza é considerada como “o outro” do espírito. Hoje seria interessante se trilhar um caminho análogo entre o dualismo radical e um monismo radical (com características materialistas ou espirituais). Mas como para Hegel o “espírito” é uma realidade primordial, não temporal, mas objetiva, que predomina sobre a natureza, para ele o espírito é o Absoluto, o que realmente é real, e nós, como seres espirituais, fazemos parte deste espírito. Aquilo que é “espírito” é reconhecido no espírito final; onde mais poderia ser reconhecido? Com esta conotação do espírito como seu Ser, o espírito final é elevado à eternidade, na certeza de que será desenvolvido na arte, na religião e na filosofia.

IHU On-Line - Hegelianamente falando, a tarefa da filosofia e da religião seria a mesma, ou seja, superar o dilaceramento e a separação? Por quê?
Walter Jaeschke -
Hegel afirma ainda mais do que esta semelhança na tarefa; ele ensina que a filosofia e a religião, e também a arte, possuem o mesmo conteúdo, e que só se diferenciam pela forma específica – visão, imaginação e pensamento compreensivo. Muitas vezes, isto não era compreendido ou era até rejeitado, seja pelo comum interesse da religião em protestar contra o “relativismo” da religião, seja polemizando a religião por sentimento contrário a ela e à sua valorização que acontecia com isso, ou simplesmente por causa da unidade de reconhecimento e de objeto reconhecido de Noesis e Noema, se achava impossível que três diferentes formas de reconhecimento pudessem ter o mesmo conteúdo. Contudo, os ensinamentos de Hegel me parecem possuir um bom embasamento. Porém, não há unanimidade em relação à sua base: a rígida interpretação da arte, da religião e da filosofia pela filosofia do espírito. Hegel compreende estas três formas puramente como formas pelas quais a vida espiritual acontece, e a vida espiritual acontece na exteriorização do espírito e no auto-conhecimento que ele ganha nesta exteriorização. Isto pode soar um tanto estranho, ou até místico, mas é menos misterioso.

Arte, religião e filosofia, expressão do espírito
Vejamos em relação à arte: é uma propriedade do espírito que se reproduz nas obras de arte, desde as primeiras pinturas das cavernas (mesmo que elas possuíssem, além disso, uma função mágica) até as obras de arte dos dias de hoje. Obras de arte são diversas objetivações, manifestações do espírito, mesmo que elas só existam em uma montagem de materiais predeterminados. E é por isso que se reconhece nelas a natureza do espírito. Por isso Hegel explica esta tendência particular do espírito em criar obras de arte a partir da sua condição, que não pode ser mais deduzida, através da sua manifestação obter uma consciência de si mesmo através da sua objetivação. É ali que para ele se baseia o direito de se considerar a arte como verdade: ela mostra algo sobre a natureza do espírito.
O mesmo “mecanismo”, querendo-se usar este termo, também serve para a religião. Nas idéias religiosas, que são todas criadas pelo espírito, também se expressa a natureza do espírito; por isso, através da criação de um modelo de pensamento religioso, ele chega à consciência de si mesmo. Neste modelo de pensamento religioso, o espírito expressa o que para ele é o real, a sua relação com a natureza e principalmente o seu relacionamento com si mesmo.  E o mesmo vale também para a filosofia. A arte, a religião e a filosofia são, por isso, para Hegel, as três formas nas quais o espírito se expressa, se objetiva, por exemplo, em uma obra de arte, ou torna-se um modelo de pensamento religioso, retomando novamente esta expressão e reconhecendo que para o espírito esta expressão é familiar e, portanto, um tipo de relação consigo mesmo. Por isso é que Hegel inclui a arte, a religião e a filosofia no contexto do “Espírito Absoluto”: elas são as formas em que o espírito chega à consciência de si mesmo. A “alienação e a separação”, em cuja superação a filosofia e a religião são uma só, é uma “alienação e separação” feita pelo próprio espírito durante a sua objetivação e no interesse do autoconhecimento.

IHU On-Line - É correto entendermos o anorgânico como Tese, o orgânico como Antítese e o espírito como Síntese, ou seja, o homem como imagem de Deus? Seguindo essa mesma linha de raciocínio, qual é o seu ponto de vista sobre o entendimento de que Deus está em todas as partes do sistema e por isso não há que se seguir uma formalidade religiosa?
Walter Jaeschke -
Eu não descreveria isto bem assim. Primeiramente temos que deixar claro que o esquematismo “Tese – Antítese e síntese” não tem um papel muito importante na obra de Hegel. Assim como também raramente se pode atribuir a este esquematismo as três subdivisões que realmente são dominantes. E mesmo que nós nos orientássemos nas tríades o “orgânico” seria o terceiro em relação à “mecânica” e à “física” ou, dentro do “orgânico”, o organismo animal o terceiro em relação à natureza anorgânica e vegetal, mas jamais o espírito seria a síntese do anorgânico e orgânico, o que seria simultaneamente uma compreensão filosófica e natural do espírito e, portanto, inadequada. 

Pode-se dizer que no pensamento de Hegel o divino está presente em todas as partes do sistema. Até a lógica é para ele o mesmo que a representação de Deus antes da criação do mundo, e a natureza também não é uma esfera que está totalmente isolada do divino. Se houvesse uma esfera totalmente isolada de Deus o divino teria nesta esfera o seu limite, o que não pode ser. Nestas formulações não se pode perder de vista que o divino para Hegel está contido no espiritual. E como a lógica é algo espiritual “em si”, mas a natureza é o “outro” do espírito e ao mesmo tempo o espírito na forma de sua diferença, assim também, como eu já havia dito, não se pode diferenciar a natureza totalmente do espiritual, se não ela nem poderia ser reconhecida. Porém, Hegel jamais diria com Spinoza “Deus sive Natura”. E a dimensão específica na qual o divino se realça, para Hegel, está no auto-relacionamento consciente do espírito no “Espírito Absoluto”, ou seja, na arte, na religião e na filosofia. Por isso, com certeza, é imaturo dizer-se “que não é adequado seguir-se uma forma religiosa”, mesmo que para Hegel a filosofia com certeza seja uma forma mais elevada de auto-conhecimento do espírito do que a religião.

IHU On-Line - Quais são os maiores projetos e desafios do Hegel-Archiv na atualidade?
Walter Jaeschke -
Aproveito a oportunidade para comentar algumas associações incorretas que possam surgir no título “Hegel-Archiv”. “Hegel-Archiv” era o nome de uma revista do início do século XX, onde foram publicados manuscritos de Hegel que não tinham sido publicados. Por volta de 1950, foi criado então um local de pesquisa em Bonn, que recebeu este tradicional nome. Este nome foi mantido quando o local do “Hegel-Archiv” foi transferido para a Ruhr-Universität Bochum. Porém, não se trata realmente de um arquivo, e sim de um local de pesquisa mantido pela universidade Ruhr-Universität Bochum e pela Academia de Ciências da Renânia do Norte-Westfália. O legado de Hegel que poderia se imaginar que existisse em um “arquivo” destes sempre esteve na Biblioteca Pública de Berlim e no “Hegel-Archiv”, exceto alguns manuscritos, só há cópias para edições.

A edição da Coletânea das obras de Hegel é a principal tarefa do “Hegel-Archiv”, a respeito disso eu já havia falado antes. Paralelamente também será publicado o livro anual Estudos sobre Hegel no “Hegel-Archiv” – uma seqüência que inclui principalmente monografias e atas de reuniões. O “Hegel-Archiv” é também um local de pesquisa onde não só os funcionários se ocupam com a filosofia de Hegel, mas também um local onde sempre há muitos visitantes do exterior que o procuram para pesquisa, tanto da América Latina como do Japão ou de países europeus. O que atrai estes pesquisadores é principalmente a biblioteca especial, onde estão disponíveis não somente todas as obras de Hegel, mas também as traduções das obras utilizadas pelo próprio Hegel e com isso toda a literatura de pesquisa internacional. Por este motivo, nos últimos anos o “Hegel-Archiv” tornou-se um pequeno centro de pesquisa para a filosofia de Hegel e para a filosofia clássica alemã em geral, e eu fico muito feliz de já ter recebido muitas vezes pesquisadores e pesquisadoras do Brasil.

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