Edição 216 | 23 Abril 2007

Há muita informação genética codificada nas raças tradicionais

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IHU Online

“Linguagem, racionalidade e discurso da ciência”. Com esse título, o casal de filósofos canadenses Ian Hacking e Judith Baker ofereceu um seminário de 19 a 23-03-2007 no curso de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, sob a coordenação dos professores doutores Adriano Naves de Brito e Anna Carolina Krebs Pereira Regner.

Em entrevista concedida à IHU On-Line em Porto Alegre, viabilizada pela Profª. Anna Carolina, Hacking falou sobre inúmeros aspectos que tratou em suas conferências: pessoas como alvos móveis de classificação; Raça, genética e identidade biossocial; Nietzsche: “Assombrosamente, mais depende do como as coisas sejam chamadas do que do como as coisas sejam”. De acordo com Hacking, “há muita informação genética codificada nas raças tradicionais ou [na] origem geográfica. Não é só negro, branco e amarelo. Você pode distinguir com probabilidade genética significativa, olhando para a origem genética, se o legado genético, ou a maior parte dele numa pessoa, vem da Itália ou da Noruega. Se a pessoa é européia, vão poder te dizer se ela é "nórdica" ou "mediterrânea", a não ser que tenha havido muitos casamentos mistos. Precisamos nos dar conta de que isto simplesmente é um fato e dissociá-lo de toda e qualquer implicação de racismo”. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa com Hacking.

Filósofo da ciência, Hacking graduou-se na Universidade de Columbia e na Universidade de Cambridge, onde estudou no Trinity College. Doutorou-se em Cambridge e lecionou por vários anos na Universidade de Stanford, e mais tarde na Universidade de Toronto. Em 2001 foi apontado para a cátedra de Filosofia e História dos Conceitos Científicos do Collège de France. De sua vasta produção acadêmica, destacamos: Representing and intervening. Cambridge: Cambridge University press, 1997; Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: UNESP, 1999; The social construction of what? Cambridge: Harvard University Press, 1999; e Historical ontology. Cambridge: Harvard University Press, 2002. É mundialmente reconhecido como um dos mais importantes e originais filósofos contemporâneos. Sua vinda à Unisinos repercutiu amplamente no meio filosófico como um dos eventos mais importantes de 2007.

IHU On-Line – O senhor afirma que nós mudamos assim que conhecemos mais sobre nós mesmos. Como o conhecimento pode nos dar condições de nos tornamos um novo tipo de pessoa? Em que sentido as pessoas são “alvos móveis”?
Ian Hacking -
Antes de mais nada, eu não disse que pessoas são alvos móveis. Eu disse que classes ou tipos de pessoas são alvos móveis. Falo de um tipo específico de ciência que vai da sociologia, passando pela psiquiatria, até a medicina clínica. Quando um sociólogo ou psiquiatra clínico ou fonoaudiólogo quer saber mais, por exemplo, sobre o autismo, é claro que talvez queiram saber mais sobre esta criança específica, ou aquele adulto. Mas, no fundo, o que querem saber é o que causa o autismo, como posso tratar o autismo. Então o alvo móvel não é a criança nem o adulto, mas todo o tipo da pessoa, como costumo dizer: a criança autista ou o adulto autista pensado como um tipo de pessoa. A postura costumeira é a de pensar que existe aquela "coisa" chamada autismo, que é uma deficiência nos indivíduos, e queremos descobrir mais sobre ela. É claro que ali existe algo, mas o que ela é, evolui ao longo do tempo, à medida que a redefinimos, que a conhecemos melhor e na medida que pessoas autistas se conformam a certos estereótipos sobre como deveriam ser. Pode-se compreender isto melhor no caso de assim chamados autistas "de alto funcionamento", os quais desenvolveram um modo de vida, em parte à luz do que se supõe saber a seu respeito, mas em parte também resistindo a isto. E os médicos mudam então sua opinião sobre o que são autistas. Portanto, não são os indivíduos que são alvos móveis, o que naturalmente podem ser em outro sentido, mas sim o tipo de pessoa, algo que não é tão fixo como, por exemplo, um tipo de metal o é na mineralogia: se você se interessa por níquel, você saberá quando estará lidando com níquel, mas se estiver interessada em autismo, ele poderá não continuar sempre igual. Tomemos um exemplo da vida real: eu me interesso pelo mineral jade , mas a gema para jóias na verdade é um mineral bem distinto. Na China, costumavam trabalhar com um tipo de jade, até que em 1784 descobriu-se um novo tipo de jade na Birmânia, agora chamado de jadeíta , que então se tornou o mais valioso. Bem, estou falando de um mineral bem definido, na verdade de dois minerais. O nome "jade“ surgiu quando os espanhóis vieram para a América do Sul e viram os nativos usando o jade como remédio, usado no lado das costas, e o chamaram de "iade“  em espanhol, que se tornou jade em inglês e algo parecido em português. Portanto, estou falando de uma substância química muito bem definida. Sabemos muito mais a seu respeito: a análise química da jadeíta verde brilhante chinesa foi feita em 1846. Podemos enunciar todos os fatos a seu respeito – mas continua sendo a mesma substância.

O historiador da medicina, ao lidar com autismo, se deparará com muitos problemas reais: não conseguimos identificar autismo no passado com clareza, porque as pessoas não eram reconhecidas como autistas. Alguns especialistas em autismo querem identificar no passado certos indivíduos como autistas. Com efeito, em novembro de 2008 haverá um congresso muito grande da Sociedade Real e da Academia Britânica em Londres, onde discutirão casos históricos de autismo e talento. Eu irei a essa conferência, mas discordo totalmente de suas premissas, porque não acredito que se possa projetar autismo para o passado da maneira como posso projetar aquelas duas substâncias jade e jadeíta para o passado.

IHU On-Line - Quer dizer que apenas com as características é impossível identificar esse problema no passado?
Ian Hacking -
Não é impossível, mas é muito difícil, porque autismo não é "apenas“ um distúrbio neurológico, mas é um modo específico de se comportar numa comunidade e numa sociedade. Autista "de alto funcionamento" - suponhamos que seja (não sabemos se é) um tipo de má programação genética que produza estruturas neurológicas diferentes no cerébro. Pode ser que alguém em 1840 tenha tido esse tipo de defeito genético, talvez até  consigamos identificá-lo. Então, mesmo assim, tal pessoa não terá sido autista da mesma forma como uma pessoa é autista hoje. Esta é uma das razões pelas quais digo que o tipo de pessoa, o autista, é um alvo móvel. Mas não que indivíduos sejam alvos móveis. Claro, todos somos [alvos móveis], mas isto é outra coisa. Eu uso [essa formulação] como uma metáfora bem específica.

IHU On-Line – Recuperando outro de seus tópicos de suas conferências aqui na Unisinos, em que medida podemos ser conhecidos por nossos genes ou pelas companhias que escolhemos?
Ian Hacking -
Eu não sei. É uma questão que o futuro dirá. Estive conversando com o professor Salzano  na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele é um dos especialistas brasileiros em estrutura genética, particularmente dos povos ameríndios no Brasil. Não temos a menor idéia de como essa gente quererá identificar-se no futuro: se pelo entorno social ou se pela origem genética, e até que ponto haverá uma interação, se vamos nos realinhar. As pessoas estão começando a formar grupos de pessoas com as mesmas características genéticas. Isto é mais típico atualmente entre pessoas que apresentam fatores de risco para certa doença: elas querem juntar-se, elas se reúnem quintas à noite, e, aos poucos, vão formando grupos sociais e mantêm companhia genética. Isto está acontecendo atualmente, mas não sei o que vai acontecer no futuro. Estou falando de um movimento, algo realmente novo na história da raça humana. Acabo de dizer à Professora Ana Carolina Regner – isto eu não contei nem para minha esposa – que decidi enviar minha saliva para várias empresas de genética diferentes para que determinem minha história racial, não porque isto me importe, de forma alguma, mas apenas como experimento, para ver se todos dão a mesma resposta. Atualmente, há três empresas principais online em inglês, uma inglesa e duas americanas, de alto gabarito, que por uma soma considerável, cerca de R$ 750, te darão um print-out genético – na verdade não é muito, daqui a um ano baixará para cerca de R0, e as empresas baratas o farão por R0. Então posso me dirigir a quinze empresas diferentes. Não custa tanto assim, e vou receber todos esses resultados e descobrir até que ponto concordam entre si. Isto não poderia ser feito cinco anos atrás. Muita gente, por diferentes razões, está muito interessada em descobrir algo sobre suas raízes.

IHU On-Line - O senhor poderia falar um pouco sobre como os novos eventos médicos mudaram as antigas concepções de raça? Quanto eles afetam os grupos sociais que formaremos ou reconheceremos?
Ian Hacking –
Preciso dizer novamente que não posso predizer o futuro. Querendo ou não, ao falar de raça ou de grupos geográficos, costumava-se afirmar com a maior certeza, até recentemente, durante 30 anos, que duas pessoas de uma mesma raça tradicionalmente não têm geneticamente nem mais nem menos em comum que duas pessoas de raças completamente diferentes. É o que se costumava dizer, em função de um artigo muito influente, de um geneticista e biólogo molecular muito importante, Richard Lewontin. Ele afirmou que se você tomar meus genes e os genes de outro canadense com ancestrais escoceses e do norte da Grã-Bretanha (no Canadá há muitos deles), e comparar meus genes com os de alguém que vive no noroeste da China, meus genes não serão mais similares aos do anglo-canadense do que aos do habitante do noroeste da China. Isto não é verdade! Com efeito, foi somente nos últimos três anos que as pessoas encararam a realidade de que isto realmente não é verdade. Em certos casos específicos, por razões práticas, algo que na palestra na Unisinos abordei, no caso de um antígeno humano para leucemia, as pessoas estão tendo os assim chamados registros raciais de medula óssea por aproximadamente 20 anos agora. Então, estamos começando a perceber que os tradicionais agrupamentos geográficos ou de ancestralidade também portam consigo muita informação genética. Por um tempo dizíamos que esse negócio de raça não existia, idéia apoiada pelos cientistas. Agora estes estão dizendo que existe, efetivamente, uma grande quantidade de marcadores genéticos para a origem geográfica. Isto obviamente tem que mudar a forma como temos pensado sobre raças. Racistas – refiro-me a autênticos racistas loucos, que falam da nação ariana e esse tipo de coisa; é muito fácil encontrá-los na internet – costumam dizer que isto prova que eles estavam certos desde o princípio, de que Hitler estava correto desde o começo. Isto é besteira. Essas identificações geográficas não têm implicação alguma para qualquer diferenciação em termos de habilidades, qualidades ou qualquer outra coisa. Ao mesmo tempo, na minha opinião, a estratégia correta é ser bem explícito e claro, e dizer que há muita informação genética codificada nas raças tradicionais ou [na] origem geográfica. Não é só negro, branco e amarelo. Você pode distinguir com probabilidade genética significativa, olhando para a origem genética, se o legado genético, ou a maior parte dele numa pessoa, vem da Itália ou da Noruega. Se a pessoa é européia, vão poder te dizer se ela é "nórdica" ou "mediterrânea", a não ser que tenha havido muitos casamentos mistos. Precisamos nos dar conta de que isto simplesmente é um fato e dissociá-lo de toda e qualquer implicação de racismo.

IHU On-Line - Quais podem ser as maiores dificuldades éticas que esses novos eventos médicos podem nos trazer?
Ian Hacking -
De certo modo, a nova medicina sempre cria novos problemas éticos. Um problema ético é simplesmente que estão obtendo uma noção clara das novas conseqüências da genética para nossas noções antigas de raça, parando com as insinuações de pensamento racista nisso tudo. Há três anos, nos Estados Unidos, houve testes com um medicamento especificamente – como diziam – baseado em raça, ligado ao tratamento de insuficiência cardíaca congestiva, problema este muito mais freqüente entre afro-americanos do que em americanos com ancestrais europeus. Havia um medicamento projetado para ser particularmente bom para afro-americanos com insuficiência cardíaca congestiva, que mostrou ser especialmente bom para eles, a ponto de o FDA (Food and Drug Administration) norte-americano o liberar como medicação específica para um grupo racial – algo que ocorreu pela primeira vez. Isto provocou um clamor geral e muito forte, houve todo tipo de reunião a respeito. Haverá um congresso para esclarecer todo esse tipo de coisa, inclusive as questões éticas pertinentes ao assunto – penso que será em junho deste ano. Algumas pessoas dizem que realmente não deveríamos ter medicamentos baseados em raça porque isto estimula raça e racismo. Já outras dizem que isso ajuda as pessoas!  Portanto essas questões estão ligadas a aspectos éticos e morais. Outras têm uma atitude mais sutil. Elas dizem que é quase certo que isto não é algo que está específica e profundamente na estrutura química e biológica dos afro-americanos, e sim, muito pelo contrário, está ligado ao estilo de vida e à pobreza; na verdade, a pesquisa seria sobre pessoas de determinada classe social, em vez de sobre pessoas de determinada classe de cor. Talvez tenham toda a razão, e este é um dos grandes problemas da sociedade americana: não há dinheiro para se investigar desigualdades sociais. Isto eu descobri muito cedo, quando meu interesse estava voltado para a questão do abuso de crianças, por volta de 1970, mais ou menos, ou um pouco mais tarde, quando a política e as leis norte-americanas sobre abuso de crianças passaram por uma mudança radical. Temos um registro por escrito sobre essas discussões, quando elas se deram. Um dos principais políticos envolvidos nessa mudança das leis foi o vice-presidente dos Estados Unidos, Walter Mondale. Temos isto registrado: quando quiseram introduzir aspectos como "muitas vezes os pobres abusam e batem em seus filhos porque vivem em condições horríveis, por isso toda a sua vida familiar desmorona" – aí ele disse, categoricamente, que abuso de crianças não é um problema social! Abuso de crianças não é um problema ligado à pobreza! Não admitam nenhuma pesquisa sobre esta questão, senão as pessoas ficarão confusas! – Isto é um disparate! Asneira total! É dificílimo introduzir investigação social ou de classe nos Estados Unidos. Você pode fazer pesquisa sobre raça, mas não sobre as consequências da pobreza. Então uma das questões éticas que surgem é que talvez toda essa assim chamada medicina baseada em raça seja uma conseqüência da negativa americana em encarar de frente a desigualdade social. Eu vejo isto como uma questão ética. É uma questão muito prática, e como todas as questões da vida real ela é muito complexa, diferenciada, política etc. etc.

IHU On-Line - O senhor poderia mencionar alguns aspectos sobre sua última conferência aqui na Unisinos? Quais são suas principais críticas ao aforismo nietzscheano “Há algo que me causa a maior dificuldade e continua a causá-la sem descanso: assombrosamente, mais depende do como as coisas sejam chamadas do que de como as coisas sejam”. Seria ele uma espécie de nominalismo ?
Ian Hacking -
Bem, ele diz que os nomes que se dá às coisas são imensamente mais importantes do que aquilo que elas são. Isto com certeza enfatiza nomes. Nominalismo abrange muitas coisas. É um termo filosófico usado desde 1492, não na Antigüidade, é um termo da escolástica. Com certeza, é nominalismo em algum sentido simples. Não penso que seja literalmente verdade que aquilo que as coisas são chamadas seja inefavelmente mais importante do que aquilo que elas sejam em si. Existe essa idéia de que denominar uma coisa determina o que ela seja. Penso que isto vale mais em relação a seres humanos do que em relação a minerais ou pedras preciosas como o jade. Pode ser importante no mercado, no qual o nome de uma pedra pode representar alguma coisa, mas ao fim e ao cabo o que ela é em si é mais importante. Entretanto, não penso que isto valha para muitas das nossas classificações de pessoas. Estou profundamente impressionado com o aforismo de Nietzsche , mais especificamente pela seção 58 de A gaia ciência . É realmente um problema, e que sempre volta à tona no pensamento humano. Nessa conferência de 22 de março, introduzi alguns textos de um antigo pensador taoísta na China, de 2300 anos atrás. Ele parece dizer quase a mesma coisa. As pessoas parecem perplexas, freqüentemente confusas com a relação entre nomes e coisas – por pelo menos 2300 anos, neste caso.

 

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