Edição 213 | 26 Março 2007

Liberte, Égalité e Fraternité

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“A liberdade é aquela que se constrói na solidão e diante da morte; a igualdade emerge na descoberta de que todos somos seres do sofrimento; e a fraternidade está na ultrapassagem que ela pode propiciar as traições que os parceiros podem nos fazer”, explica o crítico de cinema, Enéas Costa de Souza.

Souza vai falar sobre o filme A fraternidade é vermelha (Krzizstof Kieslowski ) no dia 26-03-2007, no evento Páscoa 2007 - Cultura, Arte, Esperança. O professor da UFRGS é economista, ex-secretário de estado de Ciência e Tecnologia, psicanalista e estudioso de questões brasileiras. Nos dias 14 e 20, foram apresentados os filmes A Liberdade é Azul  e a Igualdade é Branca, no IHU, respectivamente. 
Entrevista com Enéas Costa de Souza

IHU On-Line - Como o senhor classifica o cineasta Kieslowski?
Enéas Costa de Souza -
Kieslowski é um cineasta da interrogação, mas da interrogação concreta. Na Trilogia das cores, parte da história idealizada da Revolução Francesa. Ela definiu para nós, como gênese do mundo moderno: "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", simbolizadas, na proposta cinematográfica, pelas cores azul, branca e vermelha. E como é que essa idealização nos atinge? Como é que se dá a relação entre esses ideais e o cidadão comum, hoje, posto nas mais diversas condições cotidianas da vida? A interrogação chega sempre com a presença constante e inquietante da morte. E do jeito que a interrrogação é feita, ela nos encaminha para o tema do sentido das coisas, do sentido da vida, do sentido da relação entre os homens. Mas, cabe notar, esta interrogação de Kieslowski não é a interrogação de um filósofo, que se arma através de um discurso conceitual, encadeando argumentos, pesando os prós e os contras. Nada disso. Trata-se de um pensamento que se origina nos dramas cotidianos em imagem. Um pouco como Nelson Rodrigues : a vida como ela é. Ou seja, temos uma imagem que parte das pessoas comuns, submetidas a alguma situação constrangedora: a mulher que se acidentou e perdeu no acidente o marido e a filha; o casal que passa pelo sofrimento que um causa ao outro, em momentos distintos; e a descoberta da fraternidade na dor de ser traído. Porém, o que importa em Kieslowski é o trato sombrio de seus filmes, o leve tom de uma certa energia crítica, atrevidamente dura, mas de um humor negro saltando da tela,  emergindo com sabores de comédia. Levantando o tapete da tristeza, vem junto a vassoura do humor. Melhor seria dizer da ironia, por meio da qual se cruzam o lado melancólico e a mordacidade suave. Diria que basicamente Kieslowski é um cineasta que tenta construir no espectador uma visão crítica e amorosa (sim, amorosa) da vida. Porque, uma das coisas chaves é que o seu cinema trabalha com os paradoxos da existência.

IHU On-Line - Quais as particularidades da Trilogia das cores?
Enéas Costa de Souza -
A liberdade é aquela que se constrói na solidão e diante da morte; a igualdade emerge na descoberta de que todos somos seres do sofrimento; e a fraternidade está na ultrapassagem que ela pode propiciar às traições que os parceiros podem nos fazer. A verdade dos dois sempre é o três, para que nos descubramos um. Embora a abordagem de um filme privilegie um tema, todos os demais estão presentes em cada qual. Ou seja, a fraternidade e a igualdade estão envolvidas nas questões da liberdade, e vice-versa. Em todas há algo das outras. Como diz o autor, sempre se faz o mesmo filme. Então, a questão fundamental do cinema é como o pensamento está inscrito na imagem. O que quer dizer isso? Quer dizer que tudo no filme é importante: como se escolhe um ator; como se faz este ator, já personagem, atravessar ou existir num cenário; como se constrói a iluminação e as sombras das cenas - o velho tema bíblico da luz e das trevas -, criando a atmosfera de um lugar; como os personagens se movem e agem diante dos objetos e seres: casas, telefones, mesas, copos de bebida, dinheiro, carros, cães, ruas etc.; enfim, como eles atravessam as zonas dramáticas dos enredos. Agora, saltando para o ato de filmar, percebemos que uma película traz nas imagens a presença invisível do cineasta, e da sua direção nasce uma energia que ele administra em cada tomada de cena, que atravessa a filmagem e que se concentra e se dinamiza na montagem. E o filme, como energia transformada, chega para atingir o espectador. Com isso, ele mergulha num diálogo com a ficção e consigo mesmo. E daí, tu me perguntas, qual o meu filme preferido da trilogia? Para mim, todos os filmes das cores assumem uma envergadura semelhante, vejo-os como um tríptico, no qual cada obra completa a outra. Agora te pergunto: a gente gosta mais do vermelho, do azul ou do branco na bandeira francesa? De nenhuma cor em particular. A gente gosta do todo. A beleza da trilogia de Kieslowski está na combinação dos três filmes.

IHU On-Line - Por que os filmes chamados de arte têm dificuldade de serem aceitos pelo grande público? Por que eles são considerados difíceis de entender?
Enéas Costa de Souza -
O mundo é hoje visto pelo computador. Procuro a mim mesmo nos sites, nos chats, nos blogs. Se não gosto do que está a minha frente, ou deleto ou desligo o meu acesso à rede. Na verdade, o computador é como a letra da música americana: "me, mylsef and I". Enrolo-me em mim mesmo. Quando vou ao cinema não quero saber das fraturas da vida, quero meu gozo de todo o dia. Quero o consumo que me é necessário. A arte não é consumo, não tem um menu para achar o seu significado, para abrir um programa. A arte não é um software e o cinema e os filmes em DVDs não são um hardware no qual eu vou surfar. O cinema, como arte, é um desafio, uma resistência, um poema que eu não sei como se fez e o que quer dizer. Um filme de arte me provoca a sensibilidade e o pensamento. Preciso trabalhar para descobrir o que está ali naquela jóia, naquele segredo. Trabalhar a mim e o filme. Quem gosta de arte evita a coisa mecânica e as imagens gastas e repetidas da publicidade, do cinema de diversão, da mídia sombria e do medo. Vivemos o mundo do espetáculo do falso brilhante. Uma imagem de um filme é algo novo, é uma energia que inventa uma outra imagem. E o ritmo da sucessão das imagens e da história narrada exigem que o espectador entre em contato com este mundo. O cinema de arte não é um sorvete que consumimos ou um café que bebemos, falando de casualidades ou seduções. Exige o pensar. Por quê? Porque a vida, o mundo, a sociedade requerem compreensão e reflexão. O grande público consome, não pensa. E o cinema é um dos lugares privilegiados do pensar. O grande público vai ao cinema para consumir emoções, gestos, ações, vibrações, como uma mulher ou um homem que entram numa loja para comprar uma bijuteria da moda. O pior é que, muitas vezes, acham que é jóia a bijuteria que compraram. O cinema nos fala de outra coisa: fala-nos do sentido da vida, nos diz do sentido do amor, nos traz as considerações sobre as traições, sobre o crime, a inveja, o ciúme, sobre o que é ser jovem, sobre o que é a morte, a velhice, o valor das coisas, inclusive do dinheiro. Por isso, o grande público foge da arte, porque ela incomoda. Pensar, já dizia Fernando Pessoa , dói. E o grave é que pensando em deletar um filme de arte, o que grande platéia deleta é a si mesma. A arte é necessariamente difícil porque ela é sempre criação, no caso do cinema de uma imagem nova e essencial da nossa época. E esta não sai do espetáculo, sai da construção inovadora de um filme. Portanto, é preciso saber e estudar como isso foi feito. E é o que Kieslowski requer dos seus espectadores. 

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição