Edição | 10 Agosto 2021

Como um monumento barroco – belo e trágico – sobre nossas alegrias e fracassos, a obra de Caetano Veloso lança seu olhar sobre o Brasil

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Ricardo Machado

Guilherme Wisnik traz à tona a personalidade movediça deste artista que atravessa gerações numa obra sempre reveladora e provocativa sobre o Brasil

Experimente jogar o nome de Caetano Veloso em algum buscador digital e selecionar a opção de “imagens”. Pronto, em instantes você estará diante de uma miríade de fotos que exprimem visualmente a diversidade de corpos que habitam a personalidade deste artista. “Caetano é uma pessoa múltipla, muito escapadiça, polimorfa, um mico-leão, um ‘sexo equívoco’ como ele mesmo gosta de dizer. Ao contrário de uma explicação fechada, eu queria dizer ali que ele é uma personalidade artística que abarca muitas visões de forma aberta”, destaca o professor doutor e pesquisador Guilherme Wisnik, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

“É muito significativo que a canção [Tropicália] que nomeia o movimento tenha sido uma canção com um olhar tão forte para a arquitetura e urbanismo. Essa Brasília não é a Brasília modernista do Niemeyer e do Lucio Costa, mas uma Brasília de papel crepom e prata, uma Brasília terrível onde os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis, uma Brasília onde o golpe militar aconteceu e todo o sonho de emancipação modernista foi revertido. É um olhar, como diz o próprio Caetano, um olhar barroquizante, que ostenta as nossas próprias falências e com isso inverte toda a perspectiva do desenvolvimentismo, da Era JK, da própria Bossa Nova, que era progressista”, descreve.


 

O tom sebastianista de muitas das obras de Caetano, que aposta em um Brasil da generosidade, da mistura, da não violência, é, ao mesmo tempo, colocado em contraste com suas sombras. “Exatamente essa aposta que ele cultivou ao longo de toda a Tropicália e culminou no livro Verdade tropical é a aposta que está mais em xeque no Brasil de hoje, com esse destino tão canhestro, tão mesquinho, tão horroroso que o país demonstra”, pontua Wisnik. “Ele [Caetano] dizia que o mais dolorido era saber que a ditadura no Brasil não tinha se abatido sobre nós como se fosse um extraterrestre. Ao contrário, diferentemente do que seus companheiros de esquerda pensavam, a ditadura era, sim, a expressão do ser profundo do Brasil, um país extremamente violento e conservador”, complementa.

Guilherme Wisnik é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP. Graduado e doutor em Arquitetura e Urbanismo, fez mestrado em História Social, com todas formações na USP. É autor de livros como Lucio Costa (São Paulo: Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (São Paulo: Publifolha, 2005), Estado crítico: à deriva nas cidades (São Paulo: Publifolha, 2009), Oscar Niemeyer (São Paulo: Folha de S. Paulo, 2013), Espaço em obra: cidade, arte, arquitetura (São Paulo: Edições Sesc SP, 2018, com Julio Mariutti) e Dentro do nevoeiro: arte, arquitetura e tecnologia contemporâneas (São Paulo: Ubu, 2018).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido Caetano Veloso é, como você cita em seu livro Caetano Veloso, uma das “mais inexplicáveis personalidades brasileiras”?

Guilherme Wisnik – Essa coisa de “personalidade inexplicável” é uma brincadeira, porque o livro que publiquei estava na Coleção Folha Explica. Supõe-se que é uma coisa didática em que é possível explicar uma pessoa do princípio ao fim. Mas Caetano é uma pessoa múltipla, muito escapadiça, polimorfa, um mico-leão, um “sexo equívoco” como ele mesmo gosta de dizer. Eu não quis dar conta de, em um pequeno livro, explicá-lo e já eliminar a ilusão de que ele pudesse ser inteiramente explicado. Além disso, tem o fato de que ele se explica muito, é um dos artistas que está sempre falando, o que é visto muitas vezes como narcisismo, de modo que está sempre se referindo às suas origens, suas opiniões e àqueles que estão a sua volta. Isso conturba a ideia de uma explicação fria, distanciada, externa de um olhar crítico. E, por complemento, ele também sempre “explicou” muito à Folha, então quis fazer uma brincadeira porque ele e a Folha de São Paulo entraram em rota de colisão durante muito tempo. Ao contrário de uma explicação fechada, eu queria dizer ali que ele é uma personalidade artística que abarca muitas visões de forma aberta.

IHU On-Line – Até que ponto a obra de Caetano transcende a dimensão artística e alcança implicações políticas?

Guilherme Wisnik – Caetano sempre diz que tudo é biográfico, de certa maneira, e que não existe essa coisa da lírica como um mundo paralelo, um pouco assim como talvez faz Chico Buarque , que se coloca na voz feminina, como se tudo fosse uma criação. Não é o caso de Caetano, que diz “tudo sou eu”. Essa arte é sempre política em uma dimensão alargada e não exatamente partidária. Uma política do corpo. Uma política do estar no mundo quebrando tabus, quebrando consensos. Ele afirma sempre o que quer fazer e o que não quer fazer, não precisa se encaixar nos estereótipos. A implicação política sempre foi a de estar na contracorrente, de não se identificar com uma esquerda tradicional, desde 1968 com o proibido proibir, com o embate com o público estudantil e buscando uma outra forma de esquerda, que tem a ver com o Maio de 1968 , mais a ver com Freud que com Marx , com as questões existenciais, comportamentais, a desidentificação com o marxismo estrito. Trata-se da invenção de um novo paradigma, porque ele e o Gil acabam, em grande medida, sendo os artistas presos e exilados, mas ao mesmo tempo os alvos da esquerda que os acusava de alienados.

IHU On-Line – Como compreender a mistura entre música popular e erudita na obra de Caetano Veloso? De que maneira isso o torna um cantor e compositor difícil de ser classificado?

Guilherme Wisnik – Caetano é muito difícil de ser classificado, mas não é, exatamente, por conta de que é um erudito. Ele é um artista do popular, claramente. Ele sequer tem formação erudita, diferentemente do Tom Zé , por exemplo, que foi aluno do [Hans-Joachim] Koellreutter, fazendo dodecafônica, música experimental etc. Contudo, Caetano incorpora o dodecafonismo na música Doideca. Ele sempre trouxe coisas do eletrônico, desde muito cedo, na música Jasper, do LP Estrangeiro, por exemplo. Caetano sempre foi muito atento a essas questões e incorporou referências cruzadas como Gregório de Matos , Sousândrade , poetas do mundo erudito que ele acaba musicando. Com isso ele explode gêneros, pois não faz a música popular dentro dos cânones tradicionais do pop, embora ele seja um artista pop, por excelência, porque a linguagem pop é a mescla e a mistura desses gêneros todos.

IHU On-Line – O senhor é arquiteto de formação e professor de arquitetura. Como interpreta a canção Tropicália e como em seus aspectos descritivos e urbanísticos esta música exprime uma certa consciência política do cantor?

Guilherme Wisnik – A canção Tropicália se ambienta em Brasília, no planalto central do país. Isso, lançado em 1968, ainda antes do AI-5, mas em um momento de grande efervescência política e cultural, é muito significativo. Como também é muito significativo que a canção que nomeia o movimento tenha sido uma canção com um olhar tão forte para a arquitetura e urbanismo. Essa Brasília não é a Brasília modernista do Niemeyer e do Lucio Costa , mas uma Brasília de papel crepom e prata, uma Brasília terrível onde os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis, uma Brasília onde o golpe militar aconteceu e todo o sonho de emancipação modernista foi revertido. É um olhar, como diz o próprio Caetano, um olhar barroquizante, que ostenta as nossas próprias falências e com isso inverte toda a perspectiva do desenvolvimentismo, da Era JK, da própria Bossa Nova, que era progressista. Os movimentos da contracultura do final dos anos 1960 são heterodoxos e muito mais ligados ao pop que ao Modernismo. Como dizia Hélio Oiticica , uma diarreia Brasil, uma ideia de pegar o Brasil e mostrá-lo por suas vergonhas, seus aspectos terríveis, o que a geleia geral brasileira tropicalista faz de uma maneira potente e por isso se torna extremamente política.

IHU On-Line – Em que sentido a prosa poética de Caetano é, como o senhor diz em seu livro, “essencialmente antinarrativa”? O que isso significa?

Guilherme Wisnik – Talvez fosse melhor dizer uma prosa “antilinear”, de uma narrativa não linear, que é o caso do Caetano. Eu escolhi fazer aquele livro – Caetano Veloso (2005) – porque o pensamento do Caetano não é aquele teleológico, progressivo, que avança de uma forma homogênea e vai se construindo passo a passo. Não é o caso deste artista que tem idas e vindas, voltas, espirais, é muito mais barroco neste sentido.

Há canções que tratam disso, com dois cortes sincrônicos ao mesmo tempo, como Joia, por exemplo, onde na beira da praia de Copacabana “um selvagem levanta o braço, abre a mão e tira um caju, em um momento de puro amor”. Quinhentos anos depois a “menina muito contente toca a Coca-Cola na boca, um momento de puro amor”. Quer dizer, essa é a antilinearidade, como se aquilo se manifestasse independente do tempo, como em Manhattan, a estátua com a tocha na mão e a menina que morde a polpa da maçã depois. São ideias semelhantes.

IHU On-Line – De que maneira a trajetória de Caetano atualiza o sentido do Modernismo brasileiro?

Guilherme Wisnik – Bem, fica muito evidente o sentido da Antropofagia. Caetano e os tropicalistas em geral são antropofágicos, retomam Oswald de Andrade na veia. Isso significa o quê? Que só interessa o que não é meu, como diz o Manifesto [Antropófago] de Oswald. Pegar as referências que vêm de fora e deglutir desde um ponto de vista próprio e devolver assimilado. Não ser nacionalista é antropofágico, mas não é como Mário de Andrade , pois quem recusa o nacionalismo se volta para uma miríade de referências, incorpora a guitarra elétrica do rock e quer fazer alguma coisa que seja muito brasileira, que tenha a ver com certas características nossas que estão ligadas ao samba – e no caso dos baianos ao samba de roda – e uma interpretação do país. Deste ponto de vista, Tropicália é uma canção extremamente antropofágica, Joia também. Uma outra que pode ser lembrada, nesse sentido, é Um índio que “virá numa velocidade estonteante”, “Um índio preservado em pleno corpo físico (...) Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico/ Do objeto-sim resplandecente descerá o índio”, esse retorno no futuro de alguém exemplar do povo destruído que retorna como miragem e redenção. É uma atualização do modelo brasileiro do Modernismo, mas décadas depois.

IHU On-Line – Que Brasil é expresso no livro Verdade tropical, lançado em 1997? Qual a originalidade da interpretação de Caetano nesta obra?

Guilherme Wisnik – A grande aposta de Caetano e que está sintetizada em Verdade tropical (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), embora não seja um livro sintético, é a ideia de que o Brasil tem uma originalidade a dar o seu recado no mundo. Mesmo em um tempo de globalização onde as diferenças culturais se nivelam, é uma aposta na grandeza brasileira – um povo mestiço. Caetano sempre teve (e ainda tem) um discurso que deve muito à importância da mestiçagem. Um povo mestiço misturado com a língua portuguesa, que não é uma língua hegemônica no mundo, com uma cultura indígena e afrodescendente importantíssima, sem renegar as matrizes europeias e que, portanto, em um país de dimensões continentais, formado desse jeito, que tem todas suas divisões internas e os problemas da desigualdade e da colonização, ele está, ao mesmo tempo, predestinado à grandeza. Essa grandeza tem a ver com generosidade, com não violência, com abertura para arte. Tem aí um componente, claramente, sebastianista que Caetano declara o tempo inteiro no livro. Há uma vocação de grandeza portuguesa mirada no Brasil, como se o sebastianismo todo apontasse para esse destino grandioso da colônia portuguesa na América. Exatamente essa aposta que ele cultivou ao longo de toda a Tropicália e culminou no livro Verdade tropical é a aposta que está mais em xeque no Brasil de hoje, com esse destino tão canhestro, tão mesquinho, tão horroroso que o país demonstra.

Por outro lado, eu gostaria de ressaltar – e é como eu abro o meu livro sobre o Caetano – no show Circuladô, em 1992, quando ele fazia 50 anos, logo antes de cantar Debaixo dos caracóis, de Roberto Carlos , feita para ele, que pela primeira vez falava da prisão e do exílio, ele dizia que o mais dolorido era saber que a ditadura no Brasil não tinha se abatido sobre nós como se fosse um extraterrestre, um Alien que veio do nada. Ao contrário, diferentemente do que seus companheiros de esquerda pensavam, a ditadura era, sim, a expressão do ser profundo do Brasil, um país extremamente violento e conservador. Essa percepção que ele tinha, hoje é muito reveladora e acaba colocando em dialética essa posição mais positiva da Tropicália.

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