Edição 549 | 10 Agosto 2021

Contra o coro dos contentes, uma estética e política artísticas do delírio consciente

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Ricardo Machado

Júlio Diniz debate os múltiplos encontros de Caetano com um Brasil diverso e rico em possibilidades

O que havia de latente na cultura brasileira ganhou corpo, som e vida com o Movimento Tropicalista, do qual emergiram grandes nomes da música brasileira, dentre eles Caetano Veloso. “A Tropicália, para mim, já existia em estado latente. Necessitava que dois jovens antenados e inquietos, formados na efervescência cultural da Bahia, acendessem o fogo que iria incendiar a cultura brasileira na metade final dos anos 1960”, avalia o professor e pesquisador Júlio Diniz, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

A Tropicália “opera a tradução das tradições de uma maneira radical e inegociável para aquele momento histórico tão difícil, a ditadura militar. Ou seja, ela engoliu tudo, devorou tudo, degustou tudo, e se livrou de tudo com a mesma ousadia”, complementa. Para Diniz, “Caetano, Gil e tantos outros propuseram uma postura estética e política dentro de uma tradição filosófica, artística e existencial do delírio como contranarrativa a desafiar o coro dos contentes e a narrar a vida dos argonautas latino-americanos”.

 

 

Caetano, como sustenta o entrevistado, é um ponto de convergência, um local de encontro com os povos e as vozes periféricas do Brasil. “Ele é um dos vagalumes de que falava Pasolini, uma espécie de criatura pequena, delicada, potente, que sobrevive às luzes poderosas que nos querem cegar na contemporaneidade”, sustenta.

Júlio Cesar Valladão Diniz (foto) é doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, com pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidad de Salamanca, Espanha. Foi diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde é professor associado na Área de Estudos de Literatura. Desde 2016 exerce a função de Decano do Centro de Teologia e Ciências Humanas - CTCH. Realiza consultorias e coordena projetos para instituições públicas e privadas, ONGs e empresas. Publicou inúmeros artigos, ensaios e livros no Brasil e no exterior. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro (2004-2006), é assessor da Diretoria de Relações Internacionais da Capes e bolsista de produtividade do CNPq.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor vê Caetano Veloso no panorama cultural brasileiro?

Júlio Diniz – Caetano já é, há bastante tempo, uma das personagens mais importantes no campo das artes e da cultura no Brasil. Creio que ele não só ocupa o seu lugar único como artista, como também se faz presente no debate das ideias, em particular no espaço da política, da ética e dos costumes. Arrisco a dizer que Caetano está muito próximo do que se imagina e deseja de um intelectual contemporâneo, o homem público que encarna com espírito crítico, pensamento propositivo e paixão, o debate, as polêmicas e a guerra de relatos que marcam o nosso tempo. Assim como tantos outros músicos, escritores, poetas, artistas da cena e da imagem, Caetano é um dos mais interessantes e singulares intérpretes do Brasil. Observa as transformações e dilemas da nossa vida cotidiana, marcada pela tradição colonial e escravista, pela cultura midiática e pela espetacularização do sujeito, e qualifica com suas opiniões e criação estética a discussão dos temas que emergem nesse momento distópico e difuso.

Coloco, sem nenhum problema, Caetano, Chico , Gil , Glauber , Zé Celso , Hélio Oiticica , dentre outros, na mesma tradição analítica e crítica de Sérgio Buarque , Gilberto Freyre , Antonio Candido , Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta , representantes consagrados do pensamento social brasileiro. São atores sociais que produzem leituras distintas, em espaços diferenciados, a partir de olhares que se entrecruzam em diferença mas alcançam os mesmos destinos. Pensar o Brasil é o grande desafio de nosso presente. Não o Brasil utópico, nem o país idealizado, muito menos a nação concebida como unidade, homogeneidade e essência. Nossa possível territorialidade identitária, e Caetano sabe muito bem disso, é marcada por sonoridades, textualidades, visualidades e corporeidades que são percebidas, sentidas e incorporadas ao nosso ethos pela força de transformação da música popular.

IHU On-Line – Qual foi a importância do Tropicalismo no contexto da obra de Caetano e a importância de Caetano dentro do contexto do Tropicalismo?

Júlio Diniz – Caetano, Gil e a Tropicália são como o ovo e a galinha. Como no provérbio popular, ou no enigmático conto de Clarice Lispector , criador(es) e criatura se misturam, são atravessados por uma potência inventiva e uma violência erótica descomunal. Quem veio antes? O ovo ou a galinha? Como sempre, pouco importa. A questão não é nem a origem, menos ainda a originalidade.

Acho que a proposta de uma racionalidade tropical antropofágica vinha sendo fermentada há muito tempo no banquete devorador que Oswald sacou e Mário realizou em Macunaíma, e que seguiu adiante. A Tropicália, para mim, já existia em estado latente. Necessitava que dois jovens antenados e inquietos, formados na efervescência cultural da Bahia, acendessem o fogo que iria incendiar a cultura brasileira na metade final dos anos 1960. Não estou aqui defendendo a ideia de um princípio evolutivo, menos ainda de uma genealogia que tem no Modernismo da década de 1920 a sua origem. A Tropicália não é a continuação de algum acontecimento ou movimento que vêm de longe, que passou pelas vanguardas dos anos 50, pelo Cinema Novo, Bossa Nova, Teatro Oficina etc etc. Mas ela opera a tradução das tradições de uma maneira radical e inegociável para aquele momento histórico tão difícil, a ditadura militar. Ou seja, ela engoliu tudo, devorou tudo, degustou tudo, e se livrou de tudo com a mesma ousadia. Ela recolocou o velho, a cafonice, a tragédia latino-americana, o arcaico num espaço de ressignificação constante, tenso, em diálogo ininterrupto com a abissal experiência da mistura/vida antropofágica – o dentro e o fora, o local e o global, o tribalismo e o cosmopolitismo, a floresta e a escola – sem dicotomias, sem hierarquias.

Caetano, Gil e tantos outros propuseram uma postura estética e política dentro de uma tradição filosófica, artística e existencial do delírio como contranarrativa a desafiar o coro dos contentes e a narrar a vida dos argonautas latino-americanos. A Tropicália é uma referência fundamental para a compreensão das novas demandas estéticas e existenciais naquela explosão contracultural da década de 1960, e das epistemologias e sensibilidades que se formavam na porção sul deste mundo.

IHU On-Line – Qual a originalidade do pensamento de Caetano e como isso se manifesta esteticamente em sua obra?

Júlio Diniz – Caetano é o ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, como na letra da sua canção Um índio. Ele é Diadorim e Macabéa, se pensado fosse no universo ficcional de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Mais do que um talento-raiz, ocupante de uma centralidade privilegiada de criadores, Caetano é rizoma-de-uma-cultura plural, diversa, sofrida, intensa, marginalizada, resistente, espalhada: capim, jenipapo absoluto, araçá azul. Originalidade? Mais do que isso: capacidade de transcriar, de dobrar a língua para melhor tocá-la, de ouvir o silêncio para encontrar João. Caetano é o lugar de encontro dos povos originários com as vozes das periferias do mundo, da sofisticação erudita de uma tradição eurocêntrica com os cantos dos quintais de Santo Amaro, do que está no livro e se derrama na voz.

IHU On-Line – Até que ponto a trajetória artística de Caetano atualiza o significado do modernismo brasileiro e a partir de que ponto ela o ultrapassa e abre novas possibilidades de concepção do Brasil?

Júlio Diniz – Penso que devemos ter mais cautela com essa questão. Como já havia dito, não consigo ver uma linha evolutiva (usando um conceito do próprio artista, aqui ressignificado) que ligue a alta modernidade, as vanguardas do início do século passado, com a trajetória artística de Caetano. Utilizando a ideia de uma clássica frase do Pound , posso afirmar que Caetano é uma espécie de antena da raça, um atento observador, pensador e criador de linguagens, sejam elas poéticas, musicais, literárias ou cinematográficas, que não mantém vínculos claros e diretos com nenhum movimento, estética ou programa predeterminado. Ele recolhe, dilui, mistura e realiza, a partir de uma série de ingredientes que fazem parte de uma comunidade e de um tempo, o canto de um povo de um lugar, nome de uma de suas composições. O canto de um povo de um lugar é uma categoria-chave para a compreensão do processo criativo do artista baiano, sempre pensando processo estético como um constructo provisório, uma cartografia fragmentada, um conjunto maior de miniaturas.

Nesse sentido, esse canto de um povo não diz respeito às questões ligadas ao nacionalismo, à necessidade de se inventar um país, de se ocupar prioritariamente da questão de uma identidade cultural unificada. Esse povo não é o brasileiro no seu sentido restrito, ele não está localizado em algum lugar do passado, ele não aponta o nariz para o futuro, ele é muitos num só. O modernismo brasileiro, melhor dizendo, a versão paulista do nosso modernismo, que tem a Semana de Arte Moderna como símbolo, não pode ser entendido nem esteticamente, nem política e ideologicamente, como algo uniforme, programático e consensual. Mário e Oswald representam dois grupos de força fundamentais para entender a cultura brasileira, o que se poderia chamar de modernidade entre nós. Mas não são os únicos. A questão da nacionalidade sempre esteve no centro do debate artístico e cultural no Brasil. No modernismo paulista não poderia ser diferente. Já no Rio, por exemplo, as questões são outras, o ambiente artístico era distinto. Mas o Brasil que eu identifico em Caetano está diluído, amalgamado, travestido, subvertido, é um jeito de corpo, outra de suas composições. Caetano não é moderno nem romântico, nem barroco nem concreto. Ele é um dos vagalumes de que falava Pasolini , uma espécie de criatura pequena, delicada, potente, que sobrevive às luzes poderosas que nos querem cegar na contemporaneidade.

IHU On-Line – Quais são as principais semelhanças e diferenças entre o “jovem” Caetano e o “velho” Caetano do ponto de vista artístico e político?

Júlio Diniz – Aos 42 anos, em 1984, ele lançou um dos seus mais significativos álbuns, “Velô”, um jogo musical, temporal e linguístico com as quatro primeiras letras de seu sobrenome. Num repertório composto de canções como Podres poderes, O quereres e Língua, Caetano incluiu O homem velho, uma belíssima e profunda reflexão sobre o tempo, a vida, a morte e a própria criação artística.

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

Dialogando com O velho, uma composição de início da carreira de Chico Buarque, Caetano joga habilmente com um paradoxo. No seu O homem velho, o ritmo cadenciado, com certa lentidão melódica, se articula à belíssima letra composta por imagens, sensações e situações vividas ao longo de uma existência que, em princípio, não mantém proximidade com a ligeireza, celeridade, presteza, aceleração, agilidade, fugacidade, rapidez, urgência do próprio disco, Velô. O ritmo da canção não é o do disco. A demanda da canção é de outra natureza. A composição O homem velho é um lugar de reflexão, com toda a calma e introspecção, um modo de passar a vida a limpo, de projetar o que ainda não se é. Aos 42, no meio de um possível e simbólico lugar entre a juventude e a velhice, no devir-tempo entre o passado e o futuro, o compositor deixa não um, mas vários caetanos emergirem. São, com certeza, quereres em rotações distintas.

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