Edição 546 | 16 Dezembro 2019

No cultivo do chão comum brota a humanidade

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Ricardo Machado

Carlos Drawin discute as formas que a tolerância e a intolerância assumiram nas sociedades contemporâneas

A razão humana é pródiga em produzir artefatos e artifícios deslumbrantes. Quando não se orienta, porém, em direção à justiça e ao bem, funciona como um adubo estéril. “A razão na pureza de seus imperativos seria capaz de sustentar a humanidade do homem sem o lastro afetivo e efetivo do chão comum?”, questiona o professor e pesquisador Carlos Drawin, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ao pensar as questões relacionadas à tolerância e às identidades, Drawin discute como nossas sociedades fundamentam aquilo que é tolerado baseadas no que é de serventia para o capitalismo. “Esse processo coincide com a emergência do sistema capitalista global, com a afirmação da universalidade efetiva da economia e a integração dos mercados. Nesse contexto a ideia de tolerância é reiteradamente proclamada, porque tornou-se um valor essencial para o funcionamento do sistema. As diferenças em si mesmas não têm importância desde que todos possam confluir na equivalência universal representada pelo capital e pelo mercado”, pontua.

Mais do que isso, a tolerância quando assume uma forma descolada da construção de um chão comum, converte-se em um sistema de opressão às minorias políticas. “Terrível desigualdade social só pode ser mantida por meio de uma duríssima política de segurança pública e de repressão dos pobres e excluídos. Aqui se faz necessária a tolerância zero, mesmo por parte daqueles que adotam um discurso tolerante acerca de aspectos comportamentais”, descreve Drawin. “Quando as pessoas se reúnem não em nome de si mesmas e sim da experiência comum do sagrado, elas podem trazer para a vida concreta aquela posição terceira que possibilita reconhecer o outro em nós. Ora, o sagrado se dá em todas as religiões e o seu acolhimento nos possibilita vislumbrar o ‘nós’ no outro”, complementa.

Carlos Roberto Drawin possui graduação em Psicologia e bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, e mestrado e doutorado em Filosofia pela UFMG. Até 2010, quando se aposentou, foi professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG e membro titular do colegiado do mesmo programa.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a noção de intolerância está vinculada à noção de identidade? De que forma se dá essa relação?
Carlos Drawin – Desde suas origens gregas, a ideia de tolerância é elemento fundamental para a constituição da sociedade política, pois, como mostra Hannah Arendt , “a política baseia-se na pluralidade dos homens... e trata da convivência entre os diferentes”. Se as diferenças chegarem a um ponto incontrolável de exacerbação e ruptura, então a vida em comum, objeto maior da arte política, torna-se inviável. A tolerância, como valor e atitude, não pode ser abandonada senão ao preço da destruição do caráter propriamente humano da vida e sua redução à crueza de sua realidade meramente biológica como luta sem tréguas pela sobrevivência. Todavia, como a vida em comum pode ser construída? A interrogação socrática animou a investigação platônica acerca da justiça e ainda reverbera no transcorrer dos séculos, porque a história é fecunda em nos oferecer exemplos de conflitos insanáveis, desagregação das comunidades e todos os tipos de violência. Assim, se a tolerância se apresenta como uma exigência incontornável e evidente para a manutenção de uma vida verdadeiramente humana, então a condenação da intolerância também seria um requisito igualmente incontornável e evidente. Todavia, uma e outra, a exaltação da tolerância e a condenação da intolerância, não são obviedades, realidades que se realizam por si mesmas. Por quê? Porque o bem comum, referência maior para o estabelecimento de relações justas, pressupõe a existência de um solo de pertinência social e compartilhamento vivido no qual o reconhecimento recíproco possa se enraizar.

Quando o chão comum é erodido pela passagem do tempo, tal como ocorreu quando do surgimento da pólis, da cidade democrática, o grande desafio consistirá na transcrição da tradição – da herança religiosa, mítica e sapiencial – no espaço discursivo da filosofia, numa ordem das razões capaz de se elevar acima dos interesses e paixões dos indivíduos e dos grupos. Não obstante, a razão que argumenta e convence não possui força para mover a ação em direção da justiça e do bem se não for alimentada pela seiva proveniente do chão comum. Aí nos deparamos com o caráter aporético da inter-relação entre a tolerância e a identidade ou, num linguajar hegeliano , que a tolerância, a aceitação da diferença só pode ser efetivamente exercida na identidade, assim como esta somente floresce e cria na aceitação da diferença. Como caracterizar de modo bem simples a noção de identidade? O termo identidade, em primeiro lugar, remete a um princípio lógico e ontológico (A=A), em segundo lugar ao fenômeno psicológico da identificação consigo mesmo e à permanência do Eu no tempo. Aqui, em perspectiva cultural, o seu significado consiste na identificação estável e quase imediata dos membros de um grupo ou de uma tradição em contraposição com outros grupos e tradições e sua permanência no tempo de modo a estabelecer referências valorativas e normativas transmitidas por sucessivas gerações.

A referência feita anteriormente a Hegel não é fortuita. Com o fim do mundo feudal, as sangrentas guerras entre as religiões cristãs e o advento da modernidade, a identidade constituída por séculos de educação cristã se perde e a tolerância ressurge com renovado significado e força como princípio ético e político a ser inscrito no aparato constitucional das instituições democráticas. A racionalidade emergente das novas ciências da natureza e explicitada pela reflexão filosófica poderia ser tomada como guardiã da tolerância. Estaríamos no melhor dos mundos se a vida concreta dos homens pudesse ser guiada apenas pela razão em sua validade universal e abstrata. Malgrado tantos esforços, a aporia da inter-relação entre tolerância e identidade não se deixa dissolver tão facilmente. A razão na pureza de seus imperativos seria capaz de sustentar a humanidade do homem sem o lastro afetivo e efetivo do chão comum? Hegel viu o imenso e trágico desafio representado pelo sujeito moderno dotado de consciência moral, mas desprovido de vida ética concreta. Quando eu coloco nestes termos a relação entre tolerância e identidade, as respostas às outras questões formuladas já estão antecipadas. Estou questionando a ideia nebulosamente difundida da incompatibilidade entre identidade e tolerância, como se esta última somente fosse possível na ausência de convicções profundas e socialmente compartilhadas.

IHU On-Line – De que forma se estabelece o paradoxo contemporâneo em que ao mesmo tempo se exige maior tolerância em um mundo marcado por radicais intolerâncias?
Carlos Drawin – Se o argumento anterior gozar de alguma razoabilidade, então o “paradoxo contemporâneo” acima mencionado se desfaz. O filósofo francês Jean-François Lyotard anunciou, logo no início dos anos oitenta do século passado, o fim das “metanarrativas”. O que significa isso? Que não possuímos mais as condições culturais e epistêmicas para construção de um projeto comum de futuro para a humanidade. Mergulhamos na era da fragmentação e da proliferação infinita dos “jogos de linguagem”. Usando as expressões do historiador alemão Reinhart Koselleck , pode-se dizer: a ruptura com a tradição reduziu drasticamente nosso “espaço de experiência” e o fim das metanarrativas, o esgotamento das utopias reduziu drasticamente o nosso “horizonte de expectativas”. Ou seja, o tempo histórico se contraiu no presente e o espaço social se pulverizou nos pequenos grupos e tribos. Esse processo coincide com a emergência do sistema capitalista global, com a afirmação da universalidade efetiva da economia e a integração dos mercados. Nesse contexto a ideia de tolerância é reiteradamente proclamada, porque tornou-se um valor essencial para o funcionamento do sistema. As diferenças em si mesmas não têm importância desde que todos possam confluir na equivalência universal representada pelo capital e pelo mercado. Mas, por que, então, a intolerância? Por dois motivos: em primeiro lugar, porque a tolerância interessa apenas por seu aspecto funcional, enquanto convém para o bom funcionamento sistêmico, se não for o caso, pode-se conviver bem com a intolerância; e, em segundo lugar, porque a tolerância deve se restringir aos aspectos comportamentais, aos estilos de vida e jamais alcançar ali onde se encontra o núcleo duro do poder, se tal ocorrer deve-se exercer com a maior firmeza a intolerância.

Dois exemplos brasileiros. O atual governo difunde o discurso da intolerância e, ao mesmo tempo, promove a pauta econômica considerada como adequada e necessária pelo grupo hegemônico. Não há problema: a “modernização capitalista” e a intolerância convivem bem, a não ser quando esta última começa a produzir “ruídos” excessivos e ameaça a boa condução da pauta econômica. Um segundo exemplo: a terrível desigualdade social só pode ser mantida por meio de uma duríssima política de segurança pública e de repressão dos pobres e excluídos. Aqui se faz necessária a tolerância zero, mesmo por parte daqueles que adotam um discurso tolerante acerca de aspectos comportamentais.

IHU On-Line – Até que ponto a intolerância religiosa é um retorno à pré-modernidade e até que ponto é, ao contrário, a radicalização da modernidade?
Carlos Drawin – A aporia da inter-relação entre tolerância e identidade mostra a fronteira fluida entre uma e outra. A identidade capaz de acolher a diferença expande as esferas de reconhecimento, a que exclui a diferença e se enclausura em seu medo com relação a toda alteridade acaba por levar à intolerância e à violência. A distinção entre modernidade e pré-modernidade precisaria ser aprofundada; se é verdade, como mostrou o Pe. Henrique Vaz , que a modernidade é um fenômeno transepocal, existem diversas modernidades. Quando a cultura de uma época entra em crise e mergulha num processo de fragmentação e sendo a religião uma força simbólica fundamental de unificação da cultura, então se espalha o medo e este é o afeto básico da intolerância. No século XVI, no contexto da divisão da cristandade, constatamos terríveis explosões de intolerância e violência entre católicos e protestantes. Bastaria relembrar a tenebrosa “Noite de São Bartolomeu” . Se considerarmos aquele século pré-moderno, nele encontraremos o horror pré-moderno da intolerância. Por outro lado, quando a modernidade radicaliza o processo de destruição das comunidades e as desenraiza de sua tradição cultural, o medo e a humilhação suscitam a intolerância fundamentalista. Nesse caso, somos confrontados pela intolerância religiosa pós-moderna.

IHU On-Line – Como pensar a tolerância em um contexto de intensificação do individualismo?
Carlos Drawin – À luz das considerações anteriores, a resposta à pergunta é imediata. As grandes identidades, aquelas propiciadas pelas “metanarrativas” às vezes suscitaram muita violência. A história do chamado “socialismo real” não deixa dúvidas a respeito. Mas a intensificação do individualismo parece ser um índice inequívoco da despolitização da sociedade no sentido da busca do bem comum. Ora, as identidades fragilizadas não apenas produzem intolerância com relação à diversidade dos grupos e estilos de vida, mas tornam-se incapazes de resistir ao avanço da lógica sistêmica e, portanto, acabam por contribuir para com a intolerância silenciosa e talvez ainda mais violenta; aquela que incide, como já foi dito, na vida dos pobres, dos migrantes, dos excluídos.

IHU On-Line – Qual a potencialidade de as religiões se comportarem como guarda-chuvas comuns na relação entre as diferentes pessoas? Como isso opera quando se trata de pessoas de diferentes religiões?
Carlos Drawin – Não sou um estudioso das religiões. De modo intuitivo e simples, eu diria que as religiões, por suas crenças e rituais, convidam as pessoas a se reunirem e assim fazendo mitigam a sua condição de desamparo existencial. Porque o convite não é feito em nome de ninguém em particular e sim de uma experiência do sagrado, do que escapa às pequenas tramas do quotidiano. Quando o fio simbólico que une os indivíduos e grupos torna-se muito esgarçado, a depressão, o tédio, a desvalia, o pânico e a desesperança tendem a tomar conta. Se a religião é um bálsamo, o refúgio da criatura atormentada – como disse o jovem Marx –, o seu consolo não é necessariamente fonte de alienação. Antes pode ser motivo de luta, de resistência e de esperança ativa. Mas as religiões são muitas. Vivemos num mundo plural. A psicanálise nos ensina que só pode haver um “nós” quando o “eu” e os “tu” se encontram referidos a um “ele” posto num outro plano ou numa posição terceira em relação ao “eu” e ao “tu”. Quando as pessoas se reúnem não em nome de si mesmas e sim da experiência comum do sagrado, elas podem trazer para a vida concreta aquela posição terceira que possibilita reconhecer o outro em nós. Ora, o sagrado se dá em todas as religiões e o seu acolhimento nos possibilita vislumbrar o “nós” no outro.

IHU On-Line – Como o senhor vê a construção do “diálogo interconvicções”? Que desafios éticos, humanos e religiosos ele enfrenta?
Carlos Drawin – A resposta à pergunta anterior já responde a esta, pois defende o diálogo entre as religiões. Acolhimento da diferença na identidade que nada tem a ver com ecletismo ou algum espiritualismo vago e a gosto das platitudes pós-modernas. Duas observações podem ser acrescentadas. A primeira diz respeito aos desafios, aos obstáculos. Todos nós possuímos uma estrutura psíquica narcísica que tende a se defender das ameaças externas, por isso a abertura ao diálogo é muito difícil. Talvez o encontro com o outro seja viável não tanto por meio de frios argumentos, mas da partilha das narrativas. Do mesmo modo que quando lemos um romance ou um poema saltamos sobre nós mesmos e nos encontramos com o inusitado, com o “fora de nós” e o trazemos como um elemento de reconfiguração de nossa vida.

A segunda observação diz respeito à palavra “convicção” frequentemente associada à “religião”. Numa sociedade fortemente secularizada, suspeitamos da isenção dos filósofos, cientistas, enfim, de todas as pessoas que professam convicções religiosas e seriam, portanto, parciais. Haveria, no entanto, algum espaço cultural vazio de convicções? Um vácuo de crenças? Alguém poderia viver e falar no éter da pura racionalidade, do conceito puro? A denegação das convicções não seria pior do que sua clara assunção? Não seria uma forma de imunização epistemológica? “Acredito” – e a palavra já contém a afirmação que vem a seguir – acredito que explicitar as próprias crenças, religiosas ou não, é o melhor caminho para a crítica e para o diálogo entre as convicções.

IHU On-Line – Como habitar espiritualmente a Terra?
Carlos Drawin – Um dos significados originários de “espírito” – nos ensina o Pe. Henrique Vaz em sua magistral Antropologia Filosófica (São Paulo: Edições Loyola, 1988) – é justamente o de “sopro ou respiração” (pneûma, spiritus), de dinamismo e força vital. Viver espiritualmente a Terra nada tem a ver com a fuga para o etéreo, para algo vagamente celestial onde estaríamos livres dos entraves da carne. Se o espírito é vida, habitar espiritualmente a Terra é preservar a vida que dela brota, para nela entregar-se ao cuidado. Na fábula de Hyginus, citada por Heidegger em Ser e tempo (Petrópolis: Vozes, 2014), lemos a decisão do deus sobre qual nome atribuir ao homem: “Tu, Júpiter, porque deste o espírito, deves recebê-lo na sua morte; tu Terra, porque o presenteaste com o corpo, deves receber o corpo. Mas porque “cuidado” (Sorge) foi quem primeiro o formou, que ela então o possua enquanto ele viver. Mas porque persiste a controvérsia sobre o nome, ele pode se chamar homo, pois é feito de humus (terra)”. O espírito feito carne sendo “homo”, é “humus” porque habita a terra e o faz no cuidado da vida.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Carlos Drawin – Há sempre muito a acrescentar. Mas já abusei da paciência de algum possível leitor e, afinal, o não dito é sempre o mais fundamental. ■

Leia mais

- Intersecção entre metafísica e ética em Lima Vaz. Entrevista especial com Carlos Roberto Drawin, publicada na revista IHU On-Line nº 188, de 4-7-2016.

- A mística “sopra onde quer”. Entrevista especial com Carlos Roberto Drawin, publicada na revista IHU On-Line, nº435, de 16-12-2013.

- Um mestre. Entrevista especial com Carlos Roberto Drawin, publicada na revista IHU On-Line nº 394, de 28-5-2012.

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