Edição 546 | 16 Dezembro 2019

Para além dos consensos, a possibilidade de uma vida plural em comum

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Ricardo Machado

Rita Grassi debate a emergência do diálogo interconvicções e seu impacto político na possibilidade de garantir uma vivência plural e a transformação da sociedade

Pode parecer estranho, mas atualmente lidamos melhor com as diferenças do que, talvez, em toda a história da humanidade. Isso porque, em geral, não toleramos a ideia de assassinar ou de violentar uma pessoa por ela ter convicções diferentes das nossas. Contudo, vivemos também uma experiência de encurtamento dos espaços, em que o convívio com a diferença é muito mais próximo do que supomos e gostaríamos. “E se, em outros tempos, as diferenças e divergências eram resolvidas na base da guerra, da violência, agora não é bem assim. Essas mudanças forçam os seres humanos a buscarem formas de relacionar-se com quem é diferente e que estejam mais alinhadas com os valores atuais das sociedades democráticas, ainda que haja exceções e que a democracia possa estar em xeque em diversos países”, pondera Rita Grassi, mestra em Ciências da Religião, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Diante desta miríade de visões sobre o mundo, o pluralismo religioso assume também um papel de consciência da diversidade que constitui a experiência humana na terra, mas também é reflexo justamente disso. “O diálogo interconvicções não por acaso nasce na Europa, mais especificamente na França e na Bélgica, há cerca de uma década, como um reconhecimento de que o proclamado ‘fim da religião’ não se concretizou e de que era preciso, sim, unir as vozes dissonantes, religiosas ou não, com o foco principal de garantir a laicidade do Estado e de que essas vozes fossem todas ouvidas no âmbito do Parlamento Europeu e dos governos nacionais”, descreve Rita Grassi.

“Entendo que o diálogo de interconvicções traga como ponto principal a discussão de gerar um impacto social e político por meio de sua atuação. Não se trata de um diálogo que tenha como objetivo encontrar uma harmonia ou a paz entre as convicções”, ressalta a entrevistada. “O seu principal objetivo é, através destas vozes, dos encontros e confrontos entre elas, construir um espaço para reivindicar uma transformação da sociedade que atenda a essa pluralidade e, ao mesmo tempo, que garanta a laicidade dos estados europeus e da comunidade europeia”, complementa.

Rita Macedo Grassi realizou mestrado em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas. Possui bacharelado em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá - RJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira o mundo atual se converteu em um espaço intenso de convívio – nem sempre amigável – entre os mais diferentes grupos culturais, sociais e religiosos?
Rita Grassi – Creio que diversos fatores contribuíram para isso: os avanços tecnológicos e o encurtamento das distâncias, sobretudo através das redes sociais; o aumento de vias e meios de transporte de curta e de longa distância, bem como da sua acessibilidade; e, talvez, o principal deles em se tratando da Europa, um processo migratório cada vez mais crescente. No caso do Brasil, acredito que esse convívio sempre existiu, mas agora as identidades ficaram mais bem demarcadas, sobretudo diante do processo de polarização política ao qual estamos sendo submetidos e, de certa forma, fomos manipulados a vivenciar. Mas, de um ponto de vista global, é fato que a crise migratória tem acentuado de forma exponencial este convívio.

IHU On-Line – Que implicações éticas essas mudanças produzem?
Rita Grassi – De forma mais abrangente, podemos dizer que nos obrigam a conviver com o outro diferente e a estarmos mergulhados na diversidade, ainda que queiramos permanecer em nossos “guetos” ou “bolhas”, para utilizar um termo bem atual. Não é mais possível evitar essa convivência. E se, em outros tempos, as diferenças e divergências eram resolvidas na base da guerra, da violência, agora não é bem assim. Essas mudanças forçam os seres humanos a buscarem formas de relacionar-se com quem é diferente e que estejam mais alinhadas com os valores atuais das sociedades democráticas, ainda que haja exceções e que a democracia possa estar em xeque em diversos países. Segundo esses valores, simplesmente eliminar quem pensa ou age diferente não é uma opção sensata e, portanto, ética. Além disso, tais mudanças pressupõem um questionamento fundamental: até que ponto o que o outro apresenta como diferente, seja através de seus costumes, seu modo de se vestir, sua sexualidade, seu idioma ou sua prática religiosa, fere ou agride meus próprios princípios?

IHU On-Line – Até que ponto o pluralismo religioso é efeito de um processo de atomização da religião?
Rita Grassi – Parto do princípio de Panikkar de que, no fundo, “cada ser humano é uma religião”, ou seja, de que cada um de nós interpreta e experimenta a sua espiritualidade, institucional ou não, de forma individual e subjetiva, e de que a própria realidade é plural. Desta forma, o pluralismo religioso, ao meu ver, é a consciência e, também, mais um reflexo dessa diversidade. Sem esquecer, é claro, da importância do convívio em comunidade, em coletivos, para que haja uma dinâmica entre o que se experimenta em grupo e o que se experimenta interiormente. É no âmago do ser que a religiosidade, em toda a sua complexidade, de fato pode estar apoiada.

IHU On-Line – Como o fenômeno engendra encontros e confrontos entre as diferentes convicções?
Rita Grassi – Acredito que os confrontos existam, também, nos encontros, são complementares. Muitas vezes, é a partir do confronto que o encontro acontece. Trata-se de uma dinâmica natural, diria até orgânica. O problema acontece quando o confronto passa a se tornar uma forma desrespeitosa de anular ou extinguir a pluralidade contextual em que vivemos, quando o indivíduo escolhe ignorá-la ou até mesmo destruí-la.

IHU On-Line – De que maneira o diálogo se apresenta como uma faculdade necessária a essas novas interações?
Rita Grassi – O diálogo surge como algo inevitável e primordial para essas interações. Panikkar fala de um diálogo “intrarreligioso”, que não somente precede, mas acompanha o diálogo inter-religioso ou intercultural. Trata-se de uma dinâmica em que, a partir do encontro com o outro, construo um diálogo dentro de mim mesma e vou conhecendo e, até mesmo, transformando a minha própria forma de pensar e de agir no mundo. Seria como uma dança dialogal em que os encontros e, por que não, os confrontos, constroem belos movimentos internos naqueles que se colocam na arena, no palco, do diálogo. Sendo que essa arena e esse palco são a própria vida cotidiana.

IHU On-Line – Como a senhora vê a construção do “diálogo interconvicções”? Que desafios éticos, humanos e religiosos ele enfrenta?
Rita Grassi – O diálogo interconvicções não por acaso nasce na Europa, mais especificamente na França e na Bélgica, há cerca de uma década, como um reconhecimento de que o proclamado “fim da religião” não se concretizou e de que era preciso, sim, unir as vozes dissonantes, religiosas ou não, com o foco principal de garantir a laicidade do Estado e de que essas vozes fossem todas ouvidas no âmbito do Parlamento Europeu e dos governos nacionais. O principal desafio, ao meu ver, encontra-se na real ocupação desse espaço público, que ainda, segundo Barnett e Quelquejeu (fundadores do movimento), está destinado apenas aos líderes religiosos. Insistem na ampliação desse espaço para as vozes dos e das sem religião, dos ateus e ateias, dos filósofos e filósofas, dos e das humanistas, agnósticos e agnósticas; para fortalecer o movimento da sociedade civil na esfera governamental.

IHU On-Line – De que ordem são os desafios de arranjar diferentes formas de compreender a si próprio e ao mundo de tantas diferentes maneiras? Qual o papel e a importância do Estado laico na mediação desse diálogo?
Rita Grassi – Compreender a si próprio e ao mundo está na essência do ser humano. A busca por decifrar este mistério que é a própria vida, a existência como um todo, é um desafio constante para todas e todos nós. E as religiões, ou melhor, as convicções têm um papel fundamental como linguagem e como caminho escolhido para essa compreensão. Portanto, o Estado laico tem o dever, segundo a historiadora francesa Valentine Zuber , de garantir a liberdade religiosa e as expressões dessas múltiplas convicções, combatendo a intolerância, sem no entanto fazer com que tais convicções interfiram nas decisões de leis que atendem a sociedade como um todo, independente de suas convicções e/ou crenças. A proibição do véu utilizado pelas mulheres islâmicas fere, por exemplo, este princípio de liberdade religiosa que deveria ser protegido pelo Estado francês.

IHU On-Line – Qual a novidade do “diálogo interconvicções” em relação a outros projetos éticos?
Rita Grassi – Entendo que o diálogo de interconvicções traga como ponto principal a discussão de gerar um impacto social e político por meio de sua atuação. Não se trata de um diálogo que tenha como objetivo encontrar uma harmonia ou a paz entre as convicções. O seu principal objetivo é, através destas vozes, dos encontros e confrontos entre elas, construir um espaço para reivindicar uma transformação da sociedade que atenda a essa pluralidade e, ao mesmo tempo, que garanta a laicidade dos estados europeus e da comunidade europeia.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Rita Grassi – O diálogo de interconvicções é um movimento que merece ser mais estudado e observado por nós pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e pela sociedade como um todo, para que, sem querer mais uma vez importar algo da matriz europeia, possamos refletir e criar o nosso próprio movimento, dentro do contexto brasileiro e, quem sabe, latino-americano, de inclusão das diversas vozes. Faz-se urgente uma ação com relação à laicidade do Estado, à garantia da liberdade religiosa e, também, da liberdade de não crer e de não pertencer a uma religião. Essa discussão é atual e extremamente necessária nos momentos sombrios que vivemos. Movimentos como esse trazem uma luz e apontam um caminho em direção a algo que possa ser construído com o nosso idioma e com a nossa bagagem e linguagem cultural, de matriz cristã, ocidental, mas também, africana, indígena, oriental. Um diálogo que inclua os menos favorecidos, os negros e negras, as mulheres, os povos indígenas, xs LGBTQI+, que fale sobre os valores humanos e não sobre doutrinas e dogmas; como diria Panikkar, diálogo entre pessoas e não somente entre líderes religiosos. ■

Leia mais

- O Diálogo de Interconvicções. Artigo de Rita Macedo Grassi publicado nas Notícias do Dia, de 16-8-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

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