Edição 543 | 21 Outubro 2019

O horror às claras

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Ladeira

“No cinema contemporâneo, há alegorias contundentes sobre o poder – e há Midsommar. Midsommar é uma alegoria sobre a justiça – ou a falta dela”, escreve João Ladeira .

Trecho do filme

Eis o artigo.

À primeira vista, não haveria nada de surpreendente em Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (Midsommar, 2019, de Ari Aster). Quatro amigos vão a uma viagem idílica até a Suécia natal de um deles. Levam a contragosto Dani (Florence Pugh), namorada de Christian (Jack Reynor), e, na bagagem, também um relacionamento em crise. E, rapidamente, uma utopia comunal se torna palco de uma celebração destrutiva, mas não exatamente desagradável.

É um roteiro conhecido esse do falso paraíso, mas o gênio de Aster reside em colocar tudo ao avesso. O terror após a revolução de Psicose (Psycho, 1960, de Alfred Hitchcock) teve como cenário o interior lúgubre de uma casa aterrorizante. Em alguns momentos, esse local se torna o labirinto de uma caverna subterrânea, como o lar dos açougueiros de O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974, de Tobe Hooper).

Luz, mais luz?

Mas Midsommar se passa quase todo ao longo do solstício de verão em que a luz nunca se esgota. Tal cenário não é um detalhe. Pois os esforços para escapar de um buraco apavorante punham à prova a engenhosidade das vítimas. Contrapor-se ao mal demandava inteligência, habilidade e também um tanto de sorte. Eram esforços bem-aventurados devido à estrutura desse drama, concentrado na reabilitação dos justos.

A vitória contra tais monstros envolvia a Graça, mas isso passa longe das criaturas desse filme. A personagem-chave é, ela própria, a mais perigosa, sem os demais serem nem justos nem culpados. Ao invés de escapar do labirinto, Dani se joga em direção a ele. Emblemático desse sentimento é seu sorriso discreto encerrando o filme.

Na mística de Midsommar, uma comunidade orgânica é aquela onde seus integrantes compartilham tudo. A vila cuida de todas as crianças. Preparam-se as refeições numa única cozinha. O sono transcorre num só quarto. E o sacrifício a cada 90 anos não poupa ninguém. Essa unidade repercute também na comunhão com a natureza: aquilo que se toma é aquilo que se recebe.

Todos sofrem com os homens que queimam vivos na igreja onde até então ninguém podia entrar. A dor de um é a dor de todos, mas Dani é uma exceção. E ela parece muito satisfeita com sua vitória pessoal, o desenlace contra o homem que não lhe dava a atenção merecida. O horror pós-Psicose se concentrou no lar. Sua versão recente se foca em relações de outro tipo.

Sorte ou azar

Há um caráter arbitrário no justiçamento de Dani sobre seu namorado ingrato. A moça age como um tirano, guiada pelo desígnio arbitrário. O drama psicológico da irmã parricida-suicida rimando com o casal de anciões em morte ritual apenas nos distrai do essencial. Pois Midsommar é uma alegoria sobre a justiça – ou a falta dela.

O poder é consequência do acaso. Vem quando Dani vence uma competição em que se dança até a exaustão. Mas sua vitória nem ao menos foi consequência da resiliência física. Um dos concorrentes tropeça e surge a Rainha de Maio, com seu poder de vida e morte.

Esse ímpeto aleatório os monstros do horror jamais tiveram. E, se há argúcia, não é a do herói abençoado. Mas não apenas: o mando de Dani se distingue do autoritarismo utópico da vila, e esse cinismo nem precisa ser disfarçado. Como outros filmes recentes, Midsommar parece interessado em pequenos exercícios de autoritarismo.

A soberania injustificável tem pautado o horror. Era o tema de Corra! (Get Out, 2017, de Jordan Peele): não havia razão para os Armitage reencarnarem no corpo de negros. Para uma pergunta categórica, uma resposta precisa: “vocês estão na mora, querido!”. Claro, há a astúcia de Chris (Daniel Kaluuya). Porém, o dilema está naquilo que a torna necessária, pois o martírio imposto pelos Armitage é absurdo.

Em Nós (Us, 2019), a sósia de Adelaide (Lupita Nyong'o e Madison Curry) toma o lugar da menina, tornando-se quem é (e não é) por puro acidente. Decerto, em qualquer uma de suas duas encarnações a personagem central é mais hábil que os demais. Mas aquilo que a faz triunfar de início depende de um acaso outrora incomum nesses filmes.

Tiranos e mártires

Existe uma dimensão política nesse horror. Pois tais dramas lidam com um universo de soberania ilegítima. Não se trata da Graça que toca alguns homens no lugar de outros. Talento, habilidade ou inteligência pouco importam para salvar quem quer que seja. Os frutos colhidos são aqueles em que se conta com o destino, e não com a luz da libertação.

Bem e mal mais parecem valores arbitrários, e a ordem doméstica prejudicada pela presença dos monstros, reconciliada ao final no horror pós-Psicose, contém uma solução tão arbitrária a ponto de nos perguntarmos se a conclusão não poderia ter sido qualquer outra.

Tudo mais parece um jogo. Seu universo é não o da Paixão, mas o do Velho Testamento, quando os homens vagavam na incerteza de uma aliança então desconhecida. O palco é ocupado por príncipes, seres que congregam livremente mártires e tiranos.

Um tentará construir um reino de ordem, sacrificando, quem sabe, seu próprio corpo. O outro dispõe-se a qualquer perversão para realizar seus sonhos idiossincráticos. Dani alegoriza ambos. Talvez Midsommar nos coloque às portas de outra revolução no gênero, buscando modos para lidarmos com a arbitrariedade que espreita à soleira de nossas portas.

Cartaz do filme

Ficha técnica

Título original: O MAL NÃO ESPERA A NOITE - MIDSOMMAR
Ano: 2019
Direção: Ari Aster
Gênero: Terror
Nacionalidade: EUA

Assista o trailer

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição