Edição 543 | 21 Outubro 2019

Transformar-se em nós-outros

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Ricardo Machado

Alexandre Nodari, retomando as inspirações do Manifesto Antropófago, provoca-nos a pensar a possibilidade de uma ontologia da predação em lugar da predicação

Predicação é o nome dado a uma forma de compreender o mundo baseada numa lógica em que o ser, no sentido dado pelo verbo, é o elemento da relação absolutamente central e necessário. Mas se pensássemos desde outro esquema mental, o que poderia acontecer às ontologias? Debruçado sobre as provocações de Oswald de Andrade, Alexandre Nodari nos convida a pensar o mundo desde a Antropofagia.

“Como ficou claro recentemente na antropologia, Oswald tinha razão ao apontar que a Antropofagia, ou mais abstratamente, a relação de devoração, não é apenas uma prática cultural específica, mas informa de modo geral a cosmologia (a Weltanschauung, como diria Oswald fazendo uso do vocabulário da época) de muitos povos ameríndios. Uma outra lógica, a lógica da predação em oposição à nossa lógica da predicação, para usar uma formulação genial de Viveiros de Castro, que ecoa outra do próprio Oswald: o problema não é ontológico, mas odontológico”, provoca Nodari, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O canibalismo ritual é toda uma outra relação entre o próprio e o outro, na qual, ao contrário da visão comum, o objetivo não é incorporar a alteridade na mesmidade, o alheio na identidade, mas outrar-se, ver a si mesmo sob a perspectiva do outro”, propõe. “O ‘nós’ do Manifesto, assim, não remeteria a uma identidade estável, sejam os ‘brasileiros’, sejam os índios (tupi), mas à transformação daquele a partir desse, do próprio a partir do outro (e da nossa noção de identidade), ou seja, àqueles que, diante da situação colonial ainda persistente, de colonização e uniformização do mundo, baseada na expropriação de toda alteridade, resistem tentando construir outras relações entre o próprio e o outro”, complementa.

Alexandre Nodari é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal do Paraná - UFPR; colaborador dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Filosofia da mesma instituição. Editor da revista Letras e coordenador do SPECIES – Núcleo de antropologia especulativa. Fez o doutorado sobre o conceito de censura e o mestrado sobre a Antropofagia, ambos no PPGL/UFSC sob orientação de Raúl Antelo. Coministrou, com Eduardo Viveiros de Castro, o seminário de pós-graduação "Do matriarcado primitivo à sociedade contra o Estado: cartografia da hipótese antropofágica" no Museu Nacional/UFRJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Oswald de Andrade se vale de sua erudição para colocar em causa a própria razão ocidental em favor das cosmovisões dos povos nativos. O que significa esse gesto? Como seus escritos, em especial o Manifesto Antropófago, colocam em marcha essas outras formas de pensamento?
Alexandre Nodari – Ao final da vida, Oswald de Andrade redige uma espécie de testamento intelectual que seria lido por Di Cavalcanti no Encontro de Intelectuais no Rio de Janeiro, em 1954. Nele, conclama que se faça “uma revisão de conceitos sobre o homem da América” e se leve “avante toda uma filosofia que está para ser feita” a partir do “sólido conceito da vida como devoração” dos povos ameríndios. Pode-se dizer que o Manifesto Antropófago é a primeira tentativa, o primeiro esboço nesse sentido, de formular em chave filosófica, ou seja, em nossa (ocidental) linguagem conceitual, o pensamento nativo, o pensamento dos nativos. Tratava-se, portanto, de um esforço de tradução (e de uma práxis e teoria tradutória) da perspectiva e do mundo do outro para nosso pensamento. A grandeza (e ousadia) desse gesto não pode ser menosprezada, embora, infelizmente, tenha sido. Pois, apesar das múltiplas e incessantes retomadas da Antropofagia ao longo desses seus quase cem anos, seu valor e alcance, no cenário mais geral da cultura e do pensamento, continuam a ser encaradas de forma redutora, seja pela excessiva ênfase no humor oswaldiano, como se suas blagues e trocadilhos não tivessem um sentido e uma incisividade, seja pela negação explícita de qualquer profundidade filosófica, seja, por fim, por uma leitura nacionalista e identitária sobre a qual conversaremos adiante.

É evidente que o empreendimento oswaldiano esbarrava em uma série de dificuldades da época (especialmente, a orientação da etnologia e a escassez de material etnográfico, mas não menos o etnocentrismo do pensamento ocidental), a ponto de, mesmo tendo se dedicado a ele trinta anos, vê-lo ainda como tarefa por fazer. Todavia, por outro lado, como ficou claro recentemente na antropologia, Oswald tinha razão ao apontar que a Antropofagia, ou mais abstratamente, a relação de devoração, não é apenas uma prática cultural específica, mas informa de modo geral a cosmologia (a Weltanschauung, como diria Oswald fazendo uso do vocabulário da época) de muitos povos ameríndios. Uma outra lógica, a lógica da predação em oposição à nossa lógica da predicação, para usar uma formulação genial de Viveiros de Castro, que ecoa outra do próprio Oswald: o problema não é ontológico, mas odontológico. Outra lógica e também outro logos, outra discursividade, o que é mais um motivo da incompreensão do pensamento de Oswald, pois, ao traduzir o pensamento do Outro para a (nossa) própria linguagem (sintaxe conceitual), ele torciona a esta: e a razão, o logos, a filosofia se tornam outra coisa – a outra filosofia torna a nossa filosofia outra.

Como exatamente ele a interpretava passa, a meu ver, pela leitura que faz de Lévy-Bruhl , pois a razão canibal é descrita no Manifesto como uma “consciência participante”, numa óbvia alusão à noção de participação que caracterizaria o “pensamento selvagem” segundo o autor francês, que é mencionado, de forma polêmica, logo a seguir. O problema é que também Lévy-Bruhl sofreu uma leitura por demais redutora, que enfatiza seu evolucionismo, embora, como mostra Márcio Goldman no refinadíssimo e essencial Razão e diferença (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994), o que estava em jogo no seu tratamento dos povos ditos à época primitivos era uma tentativa de bolar uma metodologia e epistemologia capazes de tratar o outro enquanto outro, tensionando e equivocando o vocabulário do pensamento ocidental. E me parece ser esse também o esforço de Oswald e outra das raízes da sua incompreensão: se Lévy-Bruhl era acusado de falta de trabalho de campo, Oswald foi visto como alguém que, em contraposição à pulsão etnográfica de Mário de Andrade , desconhecia os índios de carne e osso do presente, e deles só conhecia o que os relatos coloniais diziam dos seus antepassados, o que está muito longe de ser verdade (basta ver, nas suas colunas de jornal, como estava antenado na bibliografia etnográfica contemporânea, nos debates sobre questões indígenas do dia e nas discussões da antropologia – possivelmente, como me alertou Viveiros de Castro, é de Oswald a primeira citação no Brasil de As estruturas elementares do parentesco [Petrópolis: Editora Vozes, 2012], de Lévi-Strauss). O significado do gesto oswaldiano (e o de Lévy-Bruhl) não deve ser analisado pelas suas faltas, mas a partir da especificidade da posição que adota, que é paralela à da antropologia: a de fazer uso de sua formação erudita e elitista para de-formá-la e transformá-la a partir da contaminação de outros modos de pensar, uma tradução conceitual e pragmática do pensamento nativo que visa transformar o nosso pensamento (e a nossa política) a partir daí. E nisso, até hoje, ele continua, a meu ver, inigualável, seja pelo seu exemplo, seja pelos caminhos que abriu e que ainda precisam ser trilhados.

E um desses caminhos é justamente a ideia de participação (e de interesse, conceito coligado), e que compõe todo um capítulo da Antropofagia que ainda está para ser escrito. Seguindo Goldman, me parece que, ao invocar Lévy-Bruhl na ideia de uma consciência participante, Oswald postula uma certa consciência animista, em que o conhecimento não é uma relação entre sujeito e objeto (a “consciência enlatada” de que fala o Manifesto), mas entre sujeitos, em que o conhecimento e o sujeito que conhece não são separados do mundo, mas participam dele, não só de forma gnoseológica (a “telepatia”, o sentir à distância, de que fala Oswald remete a isso), mas igualmente ontológica. Ou seja, essa outra perspectiva parece invocar outro mundo, outra organização cosmológica. Por isso os antropófagos dirão que “a descida antropofágica não é uma revolução literária. Nem social. Nem política. Nem religiosa. Ela é tudo isso ao mesmo tempo”, ou então que “A Antropofagia é uma revolução de princípios, de roteiro, de identificação”. Oswald extraiu inúmeras consequências políticas deriváveis dessa tradução de outra cosmologia à nossa, a partir de um duplo movimento. Primeiro, positivou, num gesto que prenuncia Clastres , a série de ausências que os brancos viam nos povos ameríndios (de Estado, de religião etc.), encarando-a como o que “Tínhamos” e que ativamente se colocava “Contra” as instituições ocidentais. A partir disso, no segundo movimento, buscou identificar nela possíveis fontes de modificação da nossa organização política-social, chegando a propor, junto com seus colegas de Antropofagia, mudanças legislativas que seriam endereçadas ao Congresso, e entre as quais encontramos (em 1929!) a reforma agrária, a legalização do aborto e da eutanásia, educação sexual etc.

Mas, além disso, acho que o modo como Oswald concebe a participação (e o interesse, conceito coligado) traz consigo também consequências cosmopolíticas, talvez implícitas, mas que hoje são urgentes. Em primeiro lugar, a participação é lida a partir da relação de devoração (alimentação), que nos ensina não só que somos o que comemos (no duplo sentido de que transformamos o que comemos em nós mesmos e de que nos transformamos no que comemos), como também que os organismos não constituem totalidades autóctones, mas estão constantemente se compondo de partes heterogêneas e heteróclitas, provindos de outros organismos de quem dependem. A participação, assim, me parece demandar interesse, no sentido da constituição de uma relação entre seres (inter-esse) distintos, de um engajamento na diferença, que, ademais, é recíproca, ligando o eu ao outro e vice-versa, fazendo de um o particípio do outro, e portanto constituindo a ambos: antes de falarmos que X participa de/em Y, deveríamos dizer que participam-se um no outro. Por extensão, a participação não consiste em passivamente fazer parte de (pertencer a) uma totalidade dada na qual haveria uma identificação ou subsunção plena das diferenças na identidade, do outro no mesmo, mas sim em ativamente tomar parte, de modo que o que chamamos de mundo seria um arranjo ativo, cambiante e precário, resultante de participações recíprocas, “partes sem um todo”, que é como Caeiro define a Natureza.

As implicações disso diante da catástrofe ambiental das mudanças climáticas me parecem importantes. Assim, para tomar um belo mote de Eduardo Viveiros de Castro, se “A terra é o corpo dos índios, [se] os índios são parte do corpo da Terra”, a recíproca também é verdadeira: a terra/Terra (é) parte dos povos indígenas, que, junto com os demais povos originários e seus aliados, constituem a última trincheira contra a desertificação global (algo alertado por Davi Kopenawa ao insistir que, assim que cair o último xamã, o céu cairá sobre as nossas cabeças). Nesse cenário, participar significa tomar parte, no sentido de tornar-se “partisan”, partir uma totalidade dada (partir a própria unidade fechada que seríamos) e tomar partido do mundo, tornando possível outro mundo (a) partir de nossa participação.

IHU On-Line – Como a provocação, posta logo no início do Manifesto Antropófago, “Tupy, or not tupy that is the question”, opera como dilema e não como lema identitário? Quais as consequências de se tomar um pelo outro?
Alexandre Nodari – Antes de mais nada, vou cometer uma indelicadeza e me permitir remeter a um artigo que publiquei recentemente com Maria Carolina Almeida de Amaral e que se debruça mais detidamente sobre isso, “A questão (indígena) do Manifesto Antropófago”, já que aqui só poderei resumir o argumento sem as minúcias necessárias. Ali, tentamos apontar que tomar a questão como lema identitário é tomá-la como resolvida de antemão, é partir de uma pretensa solução que elide o problema, ao invés de aprofundá-lo. Ainda está para ser escrita uma história que explique como e quando a Antropofagia passou a ser interpretada como um programa nacionalista, portanto, identitário, no qual se trataria de “devorar” e internalizar aquilo de “bom” que as outras nações possuem, ou seja, de tornar próprio o alheio, de fortalecer (e enriquecer) o próprio... O problema, como apontou recentemente Eduardo Sterzi, é que essa visão não resiste a uma análise textual básica do Manifesto, ou seja, que nenhuma leitura atenta do texto vai encontrar subsídios que a corrobore.

A meu ver, na base de tal interpretação está o gesto de traçar uma continuidade sem rupturas entre o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, esse sim de viés mais nacionalista e identitário, e o Manifesto Antropófago, lendo este pelos termos daquele. É no Manifesto da Poesia Pau-Brasil que encontramos o vocabulário da “balança comercial” (“poesia de importação”, “poesia de exportação”), ou, se preferirem, do “comércio das Nações” (“Acertar o relógio império da literatura nacional”). É nele também que encontramos afirmações decididamente identitárias e nacionalistas, como “Apenas brasileiros de nossa época”. Todavia, nada disso aparece na Antropofagia. O Manifesto Antropófago não opõe o brasileiro ao estrangeiro, não fala em importação ou exportação (a não ser, de forma irônica, ao episódio envolvendo Vieira e o açúcar, numa alusão à desigualdade colonialista nas trocas comerciais). O canibalismo ritual é toda uma outra relação entre o próprio e o outro, na qual, ao contrário da visão comum, o objetivo não é incorporar a alteridade na mesmidade, o alheio na identidade, mas outrar-se, ver a si mesmo sob a perspectiva do outro. Ao ignorar isso, a leitura identitária do Manifesto toma o Tupi do dilema de modo semelhante ao indianismo romântico, como lema ou emblema nacional, como origem, já (ultra-)passada do Brasil, num gesto que unifica em uma figura, ou um figurino, a multiplicidade de povos indígenas. Nada mais equivocado. Afinal, deve-se ter em mente, como me alertou André Vallias , que a questão (tupi ou não tupi) remete a uma querela etnológica contemporânea ao Manifesto, que dizia respeito aos habitantes “originários” de São Paulo.

Resumidamente, o debate que Oswald converte na questão do Manifesto era: os povos que “dominavam” a região de São Paulo quando da invasão portuguesa, e dos quais descendiam biológica e simbolicamente a elite paulista, eram tupi ou não, eram povos tupi ou povos tapuia? A querela estava sobredeterminada pelos relatos e políticas coloniais que construíram uma dicotomia entre povos tupi, supostamente afeitos e aliados aos portugueses e à catequese, em suma, os “bons selvagens”, e os povos tapuia (grosso modo, uma maneira tupi de designar os não-tupi, ou alguns deles), “bárbaros”, inimigos, “maus selvagens” – substancializando e estabilizando, num gesto que contaminou os românticos, uma distinção que não tinha esse caráter para os povos indígenas: os povos tupi não formavam nem formam um bloco unitário (o que não quer dizer que não houvesse e haja vizinhanças culturais maiores ou menores), e menos ainda aqueles que eram ditos “tapuia” por aqueles se consideravam uma unidade. Admitir, como as evidências etnográficas do debate demonstravam, e ao contrário do que até então se tinha como certeza ideológica, que a “origem” paulista era tapuia, não significava pouco para a imagem que a elite do estado fazia de si. O Manifesto, desse modo, ironiza essa questão (e as elites), mas também a complexifica, a aprofunda, trazendo à tona quem coloca a questão, quais seus pressupostos, como ela se põe, quais seus termos, a que finalidade ela serve, onde e quando ela se situa. Assim, ao embasar a Antropofagia no canibalismo ritual praticado por povos tupi, Oswald acentua o seu caráter bélico, de resistência à catequese e à colonização, borrando as fronteiras entre o “bom” e o “mau” selvagem, o tupi e o tapuia, revelando a falácia de se aplicar aos povos indígenas a nossa lógica substancialista e estabilizadora da identidade e de subsumi-los a ela.

O indianismo clássico aqui se coloca em questão, e, no mesmo gesto, a questão indígena (a resistência dos povos indígenas) é trazida ao presente, mostra-se presente, até porque a querela tinha consequências políticas, na medida em que determinar a origem dos índios “paulistas” era um elemento chave na justificação da política indigenista ligada ao seu futuro, no cenário de violência física fundiária da expansão da “fronteira agrícola” para o oeste. Mais: a própria lógica binária da identidade ocidental e seu papel na formação da Nação é questionada – não é a identidade indígena que é reivindicada, mas a(s) noção(ções) indígena(s) de identidade, o que é toda uma outra coisa, pois que implica uma relação imanente com a exterioridade, com um fora que constitui, de modo variável e relativa a própria interioridade. Isso é visível não só no ritual canibal, como também naqueles muitos auto-etnônimos indígenas que significam gente, homens, pessoas, possuindo uma função dêitica, pronominal, antes que substancial, circunstancial e relativa antes que estável e dada: não se é algo a não ser em relação a outro, relação sempre polêmica, variável. Desse ponto de vista, distinguir entre o próprio e o outro, nós e eles, tupi e não tupi é uma operação pragmática – e, portanto, relativa, perspectiva –, variável de acordo com a situação (histórica) discursiva – logo, política e cosmológica.

Por isso, tendo a achar que o “nós” oculto que enuncia o Manifesto deve ser lido não em chave substancialista e de uma identidade pré-dada e estável (ao modo nacionalista, indianista), mas como aquilo que ele é, um dêitico (indexador do discurso, que remete o enunciado à enunciação, o dito ao dizer, que torna toda locução relativa ao locutor, ao interlocutor e ao contexto), no que seria uma formalização poética de Oswald dos auto-etnônimos indígenas e da lógica outra das identidades e identificações indígenas. O “nós” do Manifesto, assim, não remeteria a uma identidade estável, sejam os “brasileiros”, sejam os índios (tupi), mas à transformação daquele a partir desse, do próprio a partir do outro (e da nossa noção de identidade), ou seja, àqueles que, diante da situação colonial ainda persistente, de colonização e uniformização do mundo, baseada na expropriação de toda alteridade, resistem tentando construir outras relações entre o próprio e o outro, tentando conceber de outro modo o próprio e o outro, ou seja, aqueles que assumem esse outro ponto de vista sobre nós mesmos que o “nós” do Manifesto enuncia. O “nós” do Manifesto Antropófago é já um nós-outros.

IHU On-Line – De que maneira outros aforismas do Manifesto Antropófago colocam em pauta questões indígenas importantes à época e atualmente?
Alexandre Nodari – De várias, embora ainda não se tenha mapeado plenamente as referências diretas ou indiretas a questões indígenas presentes no Manifesto (trabalho que só agora, com as pesquisas de Beatriz Azevedo e Maria Carolina de Almeida Amaral , vem sendo feito com o rigor necessário). Gostaria de ressaltar especialmente o modo como preceitos cosmológicos nativos são invocados. O xamanismo, especialmente na figura do “caraíba”, aparece seguidamente no texto, formando um par com a do guerreiro – Oswald devia estar ciente do equilíbrio tenso entre o chefe político e o especialista ritual, Antropofagia e xamanismo, presente entre muitos povos tupi (e também entre outros povos indígenas), e talvez o Manifesto formalize essa tensão. Um aforismo em específico deve ser destacado devido à sua atualidade: “Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário”. Aqui, o privilégio do pensamento xamânico (“adivinhação”) sobre o filosófico (“especulação”) se conecta a uma organização social igualitária que se estende do campo humano (“Política”) ao cósmico. Pois me parece que o que Oswald tinha em mente com o “sistema social-planetário” era o que hoje em dia se chama de cosmopolítica dos povos nativos, a saber, a ideia de que o cosmos é povoado ou composto de agentes, de que tudo é (potencialmente) vivo, e pode se subjetivar, seja propriamente, seja na forma de personificações de coletividades, com os quais se deve negociar, transigir, confrontar, em suma, fazer política (que deixa de ser algo restrito a interações entre humanos), atividade que geralmente se dá pelo xamanismo.

O Manifesto apresenta evidências dessa postulação do cosmos como uma sociedade ao invocar as “divindades” tupi Guaracy e Jacy, a Sol e a Lua. Não é o caso aqui de discutir a precisão etnográfica (no mínimo, discutível) de Couto de Magalhães , de quem Oswald toma a referência, mas sim o modo como a mobiliza, acentuando o caráter feminino e a posição materna (que seria designada pelo sufixo -cy) desses agentes (sujeitos) cósmicos. O resultado é o “Matriarcado de Pindorama”, que sobrepõe (equivoca, no sentido dado por Viveiros de Castro) essa leitura de Couto de Magalhães com o “direito materno” de Bachofen tal como lido por Freud. Desse modo, o “direito materno” proposto por Oswald não é um simples transplante da noção bahofeniana, mas a sua reconsideração à luz da juridicidade nativa, da juridicidade dos povos indígenas. À ideia de um Deus transcendente, modelo do que Oswald chamará de Patriarcado, e que traz consigo a propriedade, a herança, a concentração de poder, a Pátria, se oporá, assim, outro gênero cosmopolítico, em que as coisas (viventes ou não) do mundo são sujeitos, ou cuidados por sujeitos, por “mães” (sempre no plural), imanentes e não transcendentes ao mundo e às criaturas, com os/as quais se deve negociar e também tomar cuidado, já que podem se vingar: “Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaracy é a mãe dos viventes. Jacy é a mãe dos vegetais”.

Portanto, Patriarcado e Matriarcado não são apenas dois regimes sócio-políticos distintos, mas gêneros sócio-cosmológicos diferentes, e seu contraponto (a “luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura”) estabelecido pelo Manifesto se dá entre uma relação de sujeito e objeto, ancorada na propriedade, herança e concentração (o Estado, o sujeito de direito, o poder), e outra, entre sujeitos, amparada no princípio da reciprocidade, essencialmente transitiva, sem unificar em uma só figura (Deus, o Estado, o humano enquanto espécie) o poder de agência, afirmando, ao contrário, a sua multiplicidade e difusão centrífugas, seja na atribuição da subjetividade a viventes e não-viventes, seja na personificação dessa subjetividade na formas de “mães”, “espíritos” etc. Parece-me evidente a diferença entre os efeitos ambientais entre uma e outra cosmopráxis, e também qual delas nos trouxe as mudanças climáticas, e qual pode apresentar “Roteiros” diante desse cenário.

IHU On-Line – De que ordem é a “texterioridade”, nos teus próprios termos, produzida pelo gesto antropófago em seu sentido social? Qual a importância disso em um mundo obcecado pelo desenvolvimentismo?
Alexandre Nodari – Em primeiro lugar, uma palavra ou duas sobre a importância conceitual dos neologismos, entre os quais aqueles formados por aglutinação, como o que você menciona na pergunta, que junta “texto”, no sentido amplo de tessitura, e “exterioridade”. Há, evidentemente, uma questão de gosto, de prazer quase infantil envolvido no gesto de brincar com as palavras. Mas, todo jogo com a linguagem, inclusive ou especialmente o das crianças, e igualmente os trocadilhos mais infames, é uma prática metalinguística, ou seja, que produz certo saber prático (imanentemente prático) sobre a linguagem. E tal saber também pode ser capaz de fornecer outra perspectiva, ângulo, visada sobre o mundo, ou ainda, apontar para um aspecto, uma relação, uma coisa, que antes não era visível enquanto tal. Ver de outra maneira ou ver outras coisas – estranhar a percepção jogando com a linguagem.

No caso da texterioridade, tratava-se de pensar, a partir de certas referências dos antropófagos a Dacqué e Uexkull , uma noção de tecido vital-semiótico que traz consigo necessariamente sua abertura a um fora, que é constituído por essa exterioridade mesma, ou seja, de pensar uma ideia de rede que desse tanta proeminência aos fios ou linhas do tecido quanto aos seus furos, aos vazios que eles contornam ou que os formam, para fazer menção à definição da rede do “ponto de vista do peixe” que Rosa nos legou em seu magnânimo ensaio sobre o saber anedotal: “Uma porção de buracos, amarrados com barbantes”. Uma rede, portanto, não pode ser definida apenas como uma trama de fios que conecta seus nós. Uma rede é algo que se arma por (ou ao redor de) contornos de abismos (por infinitesimais que sejam). Os fios ligam apenas e na medida em que os abismos separam: constroem pontes e ao mesmo tempo buracos. Em certo sentido, embora essa analogia tivesse de ser refinada de modo a pensar os próprios fios como imateriais, a rede opera como um tecido neuronal, sinapticamente, por sinapses, impulsos “elétricos” que atravessam e se encontram no vazio.

Poderíamos, assim, numa especulação que eu cunharia de “realismo místico”, inspirada menos em Oswald e mais em Clarice Lispector , afirmar que o que entendemos como mundo sócio-natural pode ser visto como um tecido neuronal, e que o desenvolvimentismo, compreendido como a submissão de tudo ao Homem, consiste em seu desfazimento, em des-envolver os vazios (no duplo sentido de ocupar todo o “espaço” com o projeto Humano, e de fazer com que a tessitura prescinda de buracos, deixe de ser propriamente tecido). Todavia, ao contrário do que parece à primeira vista devido aos processos de exclusão (de inumanos, de subumanos etc.) que promove, a supressão da rede não se dá pela separação de seus nós, mas pela sua aglutinação, ou seja, pela anulação das distâncias, dos intervalos abissais ainda que infinitesimais, pela conversão do tecido em uma camisa de força. Pois a exclusão implica e está submetida a subsunção na Unidade. O ponto de chegada desse processo não pode ser senão o fascismo cósmico, hipóstase do Estado político, a redução ao Um: fusão cósmica.

Foi Clarice quem mais claramente demonstrou que o desejo de fusão é o que há de mais destrutivo, e quem mais tentou investigar e positivar os intervalos, os interstícios, as entrelinhas. Pois são justamente os vazios que, ao mesmo tempo, impedem a fusão mas possibilitam a única forma de contato possível: como se sabe, o toque, fisicamente falando, é impossível (ou melhor, quase, pois há a fusão nuclear – que envolve a liberação de uma grande quantidade de energia, sendo, portanto, de altíssimo potencial destrutivo...). Nunca de fato tocamos nas coisas, mas somente esse espaço vazio entre nós e elas, pois elas nos repelem – e nós a elas –, ou melhor dizendo, partículas de mesma carga elétrica se repelem umas às outras. Se assim não fosse, os átomos, cujos interiores são quase completamente vazios, se atravessariam (todo átomo é ele mesmo uma rede...). O que chamamos de toque é, para usar as palavras de A paixão segundo G.H. (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009), “a irradiação opaca, simultaneamente da coisa e de mim”, a vibração recíproca do tocante e do tocado (mas como diferenciar?), essa repulsão que ao mesmo tempo conecta e separa, conduz, traduz – sinapse.

O toque é pensamento, e é assim que o mundo, a rede, pensa, ou melhor, é esse pensamento, espírito. Nesse sentido, seria perguntar: e se a rede virtual (a internet) que construímos para suplementar o “neutro artesanato da vida”, ou seja, que surge quando já (nos) des-envolvemos, não servir para formar laços, mas para acabar definitivamente com eles? É claro que não cabe ser tão maniqueísta. Mas não deixa de ser sintomático o contraste entre uma experiência anterior da web, em que a prática de fazer furos na Unidade prevalecia, e a atual, com sua concentração em uns poucos sites e em uma mesma formatação linguístico-subjetiva: a ordem, o comando, a regra. Seja como for, a supressão desenvolvimentista do fora tem seu preço: a emergência do Fora absoluto, a catástrofe ambiental, o desastramento da Terra, com o desejo de fusão produzindo um buraco negro que ameaça tragar o próprio Humano que o criou. O desafio, para continuar na linguagem astronômica (ou astrológica), seria: como, diante disso, catalisar o processo inverso, de fissão cósmica, aquela que produz outros mundos, que cria distâncias? E, novamente, a lição dos povos indígenas, esses mestres da fissão, tecelões cósmicos e multiplicadores de mundos por excelência, viria a calhar. Se houver tempo.

IHU On-Line – Como a arte pode nos inspirar a pensar novos caminhos políticos e novas formas de vida, enfim, outras ontologias?
Alexandre Nodari – Elizabeth Costello (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), essa espécie de alter ego, outro eu, de Coetzee tem uma formulação sobre a experiência literária que eu gosto muito: um “modo de adentrar a existência de um ser que nunca existiu”. Creio que possamos expandir isso para a arte de um modo geral, pensando-a como uma experiência que permite variar de modo de existência, experimentar outros modos de existência que não o nosso (adentrando outras subjetividades, perspectivas, linguagens, mundos). Isso por si só já tem um valor político considerável, pois que aduba nosso subsolo existencial com outros modos possíveis de existência, além de revelar a contingência dos nossos modos atuais. Agora, além disso, toda lida com a arte acarreta também uma transformação, por imperceptível e infinitesimal que seja, na medida em que, quando adentramos outro modo de existência, invariavelmente (embora não conscientemente) encaramos a nós mesmos a partir dele, pois nunca abandonamos plenamente nossa existência na experiência artística (não se trata de identificação total) – antes, estamos ao mesmo tempo dentro e fora do livro, por exemplo, olhando de fora para dentro mas também de dentro para fora. Poderíamos dizer o mesmo a partir de outro vocabulário: a arte é um ponto de contato, um encontro entre dois mundos, operador transmundo que ao mesmo tempo oferece uma perspectiva de nosso mundo sobre outro (possível, virtual, como quer que o vejamos), e uma desse outro mundo sobre o nosso. E nesse encontro, invariavelmente há contaminação. Pensemos, por exemplo, em certos termos que remetem a personagens ficcionais e que utilizamos para descrever eventos ou situações reais, ou melhor, que redefinem e permitem ver de outro modo tais eventos ou situações: quixotesco, bovarismo etc.

De um ponto de vista ontológico, é interessante tentar compreender como a arte faz isso. Estou cada vez mais convencido de que o que chamamos hoje de arte não propõe propriamente outras ontologias, mas uma ontologia outra, uma outra ontologia da ontologia. Grosso modo (embora com inúmeras exceções), a ontologia ainda se rege, num plano meta-ontológico, pelo que Meinong chamou de “preconceito a favor do ser”, adotando uma perspectiva substancialista. Dessa maneira, por exemplo, a relação entre ser e modo tende a ser encarada de modo substancial, portanto, não reversível – e mesmo os modos de ser costumam ser vistos de uma perspectiva substancialista, como rigidamente separados ou separáveis uns dos outros, como se fossem substâncias distintas e discretas, e não formassem um contínuo de variações, modalizações mais do que modos. O procedimento básico da arte, a meu ver, é o de, modalizando a ontologia, tomando a relação entre ser e modo de modo modal, converter o ser em modo, vidas em modos de vida, tornando-os experienciáveis por outros, transformando a vivência (o que inclui pensamentos, sonhos, devaneios) particular e intransferível em experiência da qual os outros podem tomar parte, participar ativamente, partindo dela. ■

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