Edição 542 | 30 Setembro 2019

A névoa da guerra

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Ladeira

“Legalidade quase vestiu Brizola no uniforme verde de guerrilheiro insurgente. Por sorte, fomos poupados da ingenuidade, mas os problemas não acabam por aí”, escreve João Ladeira .

Foto: Imagem do filme

Legalidade (sinopse): Brasil, 1961. Quando Jânio Quadros renuncia à presidência do Brasil, João Goulart, o vice-presidente, torna-se o sucessor natural ao cargo. No entanto, setores da sociedade, liderados pelos militares, que dariam um golpe de estado três anos depois, clamavam por novas eleições e pelo impedimento da posse de Jango. Liderado por Leonel Brizola (Leonardo Machado), o movimento Legalidade, por sua vez, buscava concretizar a posse de Jango. Em meio à turbulência política e social, um triângulo amoroso é formado entre Cecília (Cleo Pires), Luis Carlos (Fernando Alves Pinto) e Tonho (José Henrique Ligabue).

Eis o artigo.

Fuma-se muito em Legalidade (2019, de Zeca Brito). O filme se inicia com a bruma produzida por Jânio Quadros. Brizola (Leonardo Machado) passa praticamente toda a projeção com o cigarro nas mãos. O mesmo ocorre com os heróis inventados pelo filme, como Luis Carlos (Fernando Alves Pinto), guerrilheiro de Sierra Maestra transplantado para o Piratini, e, é claro, Cecilia (Cleo), a intrépida espiã.

Todos aqueles envolvidos com a democracia em vertigem de Legalidade se veem envoltos nessa névoa. O porão do governo do Rio Grande do Sul parece bem insalubre, nos momentos em que o governador repete as transmissões radiofônicas que os filmes sobre Churchill usualmente utilizam. O bar de jornalistas, centro de recrutamento das brigadas de Brizola, não é lá muito mais saudável.

E por aí vai. Os únicos que quase não fumam são os militares. Uma vez que o palco do enredo é Porto Alegre, sem que quase nunca sejamos transportados para as intrigas de Brasília, podemos apenas imaginar como se comportariam as versões cinematográficas de Odílio Denys, Grün Moss e Sílvio Heck. Mas Machado Lopes quase não traga, e, quando o faz, é bem discretamente.

Para Brito, a fumaça parece ser o ato revolucionário por excelência, o signo escolhido para todos aqueles que envolveu na sua versão de 1961. Sempre que um personagem se junta a outro para organizar uma célula em defesa de um mundo melhor, parece obrigatória a combustão de tabaco. A névoa da guerra confunde, mas a fumaça de Legalidade é pura fantasia.

Spy vs. Spy

Isso ocorre em cada dos um dos dois filmes que Brito nos apresenta. Pois há duas histórias correndo lado a lado. A primeira é o pretenso relato histórico. A segunda, um estranho filme de espiões, um remake invertido de Interlúdio (Notorious, 1946, de Alfred Hitchcock), no qual a agente brasileira, ao contrário de Alicia (Ingrid Bergman), simpatiza com o peão que ela trabalha.

Na verdade, Legalidade se esforça por compor um pastiche de muitos filmes. Algumas colagens são mais sutis. Jânio, enquanto fuma, escreve aquilo que parece ser uma carta de renúncia. Ao que se sugere, a única ocasião em que o cinema brasileiro havia se aproveitado desse documento no qual um mandatário abandona seu cargo por escrito havia sido nos registros sobre Vargas.

Tal ocorre em Getúlio (2014, de João Jardim), mas Legalidade encontra um jeito de se apropriar dessa ideia. Também não demonstra pudor em repetir o avião de Casablanca (Michael Curtiz, 1942) quando apenas metade do casal embarca em direção a outra vida. Usualmente problemático, o drama histórico parece inofensivo frente à ingenuidade com que aqui o sepultaram.

Mas, por que perder tempo discutindo um trabalho abertamente medíocre como Legalidade? Qual a razão de se debruçar sobre aquilo que mais parece uma paródia de filmes de guerra e histórias de espionagem? Pois Brizola é uma desculpa fraca para uma narrativa que apenas um fã das intrigas do Missão Impossível de Tom Cruise poderia levar a sério.

Velhice do mesmo, sem glamour

A escolha por um roteiro que dorme sonhado a si próprio como criação de Franco Solinas, mas acorda para se descobrir meio Ian Fleming, reflete uma imensa ingenuidade, mas essa inocência serve para ilustrar algumas deficiências intrínsecas às tentativas de reconstituição histórica: várias delas imensamente malsucedidas, algumas sempre pelas mesmas razões.

Decerto, toda pretensão de reconstituir o passado com fins didáticos flerta com o desastre. O primeiro perigo, mais singelo, mais inócuo, assassina o filme em prol de uma discussão qualquer, que começa quando as luzes se acendem. O cinema morre em prol de um debate de sala de aula, no qual as mazelas do mundo são explicadas para os colegiais com a ajuda da projeção.

Isso é ruim, mas é também inofensivo. Grave se torna o instante em que um cinema progressista descobre em filmes como os de Costa-Gavras o ponto mais radical que poderia chegar. Foi Serge Daney quem usou exatamente esse exemplo, provocando sobre o quão pouco seria refilmar Z (1969) até o fim dos dias. Legalidade não consegue nem ao menos tocar nesse ponto, e já é hora de abandoná-lo.

Pois existe sempre uma expectativa de demonstrar força nesses filmes. Citar novamente Daney é obrigatório, quando ele nos lembra o quanto tais trabalhos pouco se distanciam de Raoul Walsh: há o herói íntegro espiritualmente, forte fisicamente, sempre pronto a mostrar ao mundo o que existe de melhor. O crítico francês perceberia que o espírito de Rock Hudson paira sobre o Brizola de Brito.

Mas não é tudo. Pois há o naturalismo que parece matar de velhice esse tipo de cinema pseudopolítico, do mesmo jeito que assassinou faz tempo o extenso legado que nos levou até o universo dos Vingadores de Favreau, Whedon e dos irmãos Russo. Pois esse cinema não pode existir sem sugerir que as coisas são como são, embora, ao mesmo tempo, nos apresente seus heróis indestrutíveis.

Uma contradição? Pois sem ela não existiriam feitos gigantescos, monumentais. O contrário seria produzir um cinema revolucionário a partir de imagens revolucionárias. O Mubi organizou uma belíssima mostra sobre os Straub-Huillet: seria a oportunidade de perceber, de Os Não-Reconciliados (Nicht Versöhnt, 1965) a Othon (1970), o que se ganha ao ignorar a representação, dissipando, assim, a névoa.■

Ficha técnica

 

Título original: Legalidade
Ano: 2019
Direção: Zeca Brito
Gênero: Drama Nacional
Nacionalidade: Brasil

Assista o Trailer

Leia mais

- Legalidade. Resenha de Neusa Barbosa, reproduzida nas Notícias do Dia de 17-09-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

- A Campanha da Legalidade e a radicalização do PTB na década de 1960. Reflexos no contexto atual. Artigo de Mário José Maestri Filho, publicado em Cadernos IHu Ideias nº 281.

- Campanha DA Legalidade 50 Anos de Uma Insurreição Civil. Cadernos IHU em Formação nº 40.

- 1964. Um golpe civil-militar. Impactos, (des)caminhos, processos. Revista IHU On-Line, número 437, de 17-03-2019.

- Leonel de Moura Brizola 1922-2004. Revista IHU On-Line número 107, de 28-06-2017.

- Do rádio à internet: a legalidade e a mobilização popular. Entrevista especial com Christa Berger, publicada nas Notícias do Dia de 28-08-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU..

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição