Edição 542 | 30 Setembro 2019

Conhecer, desnaturalizar, reinventar

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Ricardo Machado

Gabriela Reinaldo traz elementos de um certo perspectivismo na teoria flusseriana para pensarmos a vida em um mundo cada vez mais imerso nas imagens técnicas

Se fôssemos reformular as perguntas em torno das relações entre cultura e natureza com as palavras e o pensamento de Vilém Flusser, chegaríamos a questões sobre o que são experiências libertadoras e determinantes. “Se há vários acessos ao significado de natureza, o desnorteio provocado pela dúvida passa a ser condição essencial para as tentativas de classificarmos o que é natural e o que é cultural. De todo modo, uma coisa é certa: Flusser tinha horror ao estabelecido, ao que não poderia ser submetido à dúvida – ou seja, ao conceito de natureza como algo dado. Para ele, se a cultura se naturaliza, este é um problema a ser enfrentado”, explica Gabriela Reinaldo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O estabelecimento do que é natural e do que é artificial já não se sustenta hoje. A distinção ontológica proposta não deveria mais ser entre natureza e cultura, mas entre experiências determinantes e experiências libertadoras”, complementa.

Em um exercício de provocação perspectivista, Flusser usa o exemplo de uma lula chamada Vampyroteuthis Infernalis, que vive entre 400 e mil metros de profundidade, para nos convocar a pensar e se relacionar com o mundo de uma maneira menos antropocêntrica. “O universo fantasmático e quase impalpável do vampyroteuthis é comparado ao universo das imagens digitais, que abre espaço para o nascimento de um novo repertório imaginativo ligado às não coisas”, postula Gabriela. “Só conhecendo essa programação – a cultura ‘naturalizada’ – ele poderia subverter a ordem que limita sua liberdade. O jogo e a poesia são formas de libertação, são saídas para enfrentarmos o discurso de matiz autoritário”, pondera.

Gabriela Reinaldo é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará - UFC e realizou mestrado e doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Além disso, realizou doutorado sanduíche na Université Paris X e estágio pós-doutoral no Departamento de História da Arte da Universidade de Cambridge - UK, onde investigou as representações do Brasil feitas pelos artistas cientistas do século XIX. Atualmente é professora do Instituto de Cultura e Arte - ICA, da Universidade Federal do Ceará - UFC, onde é professora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Coordena o Laboratório de estudos de estética e imagem – Imago. É autora de Uma cantiga de se fechar os olhos: mito e música em Guimarães Rosa (São Paulo: Annablume, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como Flusser compreende o conceito de natureza?
Gabriela Reinaldo – Flusser, em Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza (São Paulo: Annablume Editora, 2010), dizia que não é mais o beija-flor que se assemelha ao helicóptero, mas o contrário. O pássaro – assim como em outros ensaios aparecem animais como a vaca, o unicórnio ou o vampyroteuthis – é um elemento poético para Flusser falar da essência mítica, ancestral, do próprio voo; ele diz “para os nossos antepassados, o pássaro era o elo entre animal e anjo”. Em alemão, o título é Vogelflüge. Essays zu Natur und Kultur – que quer dizer algo como “Voos dos pássaros: ensaios sobre natureza e cultura”. Mas o título da obra em português possibilita uma brincadeira (ou jogo, como ele preferia) semântica. Em português, título e subtítulo (“Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza”), de saída, desestimulam o leitor a pensar numa resposta única para essas questões.

Se o natural mente, se é capaz de trapacear, e se há vários acessos ao significado de natureza, o desnorteio provocado pela dúvida passa a ser condição essencial para as tentativas de classificarmos o que é natural e o que é cultural. De todo modo, uma coisa é certa: Flusser tinha horror ao estabelecido, ao que não poderia ser submetido à dúvida – ou seja, ao conceito de natureza como algo dado. Para ele, se a cultura se naturaliza, este é um problema a ser enfrentado.

Em O mundo codificado (São Paulo: Cosac Naify, 2008), ele diz: “somos condenados à morte, ao mundo da natureza”. O objetivo da comunicação humana seria, portanto, superar, de algum modo, essa condição. O homem é um animal que sabe que vai morrer e que, nesta hora, estará sozinho. Ele culpa a natureza por essa sujeição. A comunicação humana é neguentrópica, ela nega o processo de entropia ao organizar e armazenar informações a fim de fugir do vazio provocado pela morte. Flusser dizia que a comunicação humana é inatural e contranatural. Ao mesmo tempo, ele se recusava a pensar o par natureza e cultura como entropia x neguentropia ou dado x construído. O estabelecimento do que é natural e do que é artificial já não se sustenta hoje (como vemos na historinha do beija-flor e do helicóptero). A distinção ontológica proposta não deveria mais ser entre natureza e cultura, mas entre experiências determinantes e experiências libertadoras.

IHU On-Line – Em que sentido a cultura humana é orientada pelo “aparelho digestivo” e a do vampyroteuthis (lula vampiro) é orientada pelos órgãos sexuais?
Gabriela Reinaldo – O vampyroteuthis infernalis foi descoberto por cientistas bem no comecinho do século XX e chamou atenção de vários pesquisadores – como até hoje, quando uma nova espécie é encontrada, especialmente sendo tão insuspeitos a sua forma e o seu comportamento. A dita “lula vampira do inferno” vive nos abismos oceânicos, entre 400 e 1 mil metros de profundidade. Flusser, em sua ficção científica, pondera, entretanto, que o abismo que nos separa do vampyroteuthis é ainda maior do que o das funduras oceânicas.

Nesse sentido, podemos assumir o “infernalis” como a condição do que em tudo difere de nós. Flusser dizia que o nojo recapitula a filogênese. Ou seja, numa perspectiva em escala, tendemos a sentir mais nojo dos vermes mais moles do que dos peixes e anfíbios e mais destes do que dos vertebrados de sangue quente. Nessa sequência, nos afeiçoamos, de forma solidária, aos mamíferos – e assim sentimos asco de formas como as do vampyroteuthis. Por outro lado, Flusser dizia que o vampyroteuthis é “todo amor”. O coito, que ocupa grande parte de sua vida, é uma dança prolongada e pública. Além disso, ele teria três pênis; sendo dois deles utilizados para excitar a fêmea e para se introduzir dentro dela. O terceiro, seria um instrumento de observação e conhecimento do mundo. Se conhecemos pelas nossas mãos que esbarram contra o mundo e produzem cultura – no livro Os gestos [São Paulo: Annablume, 2014], Flusser explora a manipulação do mundo como critério de conhecimento – o vampyroteuthis conhece amorosamente, apaixonadamente, pois ao invés das mãos ele desbrava o mundo pelo pênis e pela boca.

Flusser diz que o vampyroteuthis é nosso inferno e que ri de nós. Um riso que vem das profundezas como uma provocação e um convite a um fazer científico menos antropocêntrico. O universo fantasmático e quase impalpável do vampyroteuthis é comparado ao universo das imagens digitais, que abre espaço para o nascimento de um novo repertório imaginativo ligado às não coisas. Nossa cultura “manipulada” responde ao aparelho digestivo, ao passo que os órgãos sexuais determinam o comportamento vampyroteuthis. Flusser diz que somos uma aberração (ele diz “anomalia”) em comparação com os vampyroteuthis: “como explicar tal anomalia a preponderância da digestão sobre o sexo?”.

IHU On-Line –Em que sentido o par cultura-natureza é uma falsa oposição? Qual a argumentação do autor em torno dessa questão?
Gabriela Reinaldo – Flusser é um autor profícuo, que discutiu, em seus ensaios, vários temas. Flusser discute as imagens técnicas, a tradução (sua própria escrita é um exercício de se traduzir, de se experimentar e de se enxergar como outro em pelo menos quatro línguas), a comunicação, as artes, o exílio, a escrita, os gestos e o par natureza e cultura... mas, penso que Flusser perseguia um único tema: a liberdade.

O homem deveria conhecer a programação da natureza – e seu estar no mundo, se sabendo um ser que tende para a morte e se comunica com outros a fim de lidar ou mesmo evitar a morte, manipulando os problemas/objetos e informando o mundo – e das máquinas. Só conhecendo essa programação – a cultura “naturalizada” – ele poderia subverter a ordem que limita sua liberdade. O jogo e a poesia são formas de libertação, são saídas para enfrentarmos o discurso de matiz autoritário.

IHU On-Line – Nesse sentido, qual a atualidade do pensamento de Flusser?
Gabriela Reinaldo – Flusser não conheceu os smartphones nem a evolução da internet como testemunhamos hoje e, certamente, se estivesse vivo estaria lidando de forma lúcida, acidamente honesta e criativa – como é sua forma de se colocar no mundo – com o fenômeno das fake News das mensagens cada vez mais específicas e vascularizadas que chegam pelo whatsapp (graças ao que ele chamou de terceira catástrofe, que estaria ainda em curso, e que nos conduziria a outra forma de nomadismo, quando nossas casas estariam perfuradas e por todas as brechas entrariam os “ventos” das informações e das realidades numéricas) e com o recrudescimento da ultradireita. O nacionalismo exacerbado, o sentimento patriótico de teor nazifascista, que o desterrou de seu país de origem, é o mesmo que o impeliu a deixar o Brasil nos primeiros anos pós-AI-5.

Se ele morasse no Brasil de 2019, um país que elegeu seu presidente ligado a movimentos da ultradireita graças às fake news, para onde ele iria hoje? Para onde escaparia fugindo de um mundo que respira os efeitos do escândalo Cambridge-Analytica , um mundo em que Steve Bannon dá as cartas? Essa é uma pergunta que também me faço. Sem parecer ufanista (Flusser não me perdoaria), gostaria de lhe oferecer abrigo no Nordeste brasileiro, no Brasil do Bacurau . Obviamente minha oferta é para um mundo poético, um sertão fantasiado (como é a realidade do sertão, com um simbolismo muito preservado e nada desencantado). Com a familiaridade que ele tinha com a obra de Guimarães Rosa (e seu sertão mineiro/goiano mas também sertão como interior do homem), penso que Flusser, apesar de urbano, se sentiria bem em fabular por essas bandas. Além disso, as contribuições de Flusser, que assume o exílio como postura filosófica, são valiosas para pensarmos os fluxos migratórios que estão acontecendo com grande intensidade por todo planeta e as políticas de acolhimento aos refugiados – e também as de encarceramento, morte, reclusão, de muros.

Voltando ao exemplo do Brasil e à temática da natureza, temos uma imprensa hegemônica que condena o maior produtor de alimentos orgânicos da América Latina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, e uma classe que atribui as queimadas recém acontecidas em parte da Amazônia à própria natureza. Flusser era extremamente cáustico em relação ao modo como nós, brasileiros, lidamos com a natureza brasileira. Ele dizia que, para nós, a natureza é madrasta, é inimiga, e não “magna mater”. Ela é pérfida e essa deslealdade atribuída à natureza brasileira tem consequências profundas na nossa mentalidade.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Gabriela Reinaldo – Leiamos Flusser. Duvidemos com Flusser – e duvidemos de Flusser. Vale a pena “ouvir” sua escrita, que pode soar como estranha, enigmática, mas que é poética e errática. ■

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