Edição 542 | 30 Setembro 2019

O totalitarismo democrático percebido por Agamben

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Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

Ésio Salvetti observa como o autor italiano vai, no sentido contrário da Filosofia contemporânea, apreender uma certa continuidade entre o totalitarismo e a democracia

O pensador e político brasileiro Ruy Barbosa afirma que “a pior democracia é preferível à melhor das ditaduras”. Hoje, mesmo em meio ao flerte de muitos com os regimes ditatoriais, não há quem conteste veementemente a sua assertiva, dita quando sonhava com um Brasil republicado. Há inclusive quem diga que nem os mais totalitários gostariam da volta de uma ditadura. Parece absurdo, mas há algo nessa perspectiva que revela que mesmo dentro de regimes democrático ainda se mantém acesa certa centelha de totalitarismo. Isso, na perspectiva do professor Ésio Francisco Salvetti, é percebido muito claramente por Giorgio Agamben no final do século XX. “Agamben em 1995, na contramão das teorias tradicionais da filosofia contemporânea, postulou uma tese que lhe rendeu muitas críticas, a saber: que entre democracia e totalitarismo há uma contiguidade”, explica, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Obviamente, o professor ainda reconhece que “Agamben não está negando os avanços que humanidade logrou com as democracias e tão pouco está comparando qual dos regimes é melhor”. Nesse sentido, podemos ousar afirmar que se aproxima do velho Ruy Barbosa. “O que Agamben tem dúvidas é se a passagem do totalitarismo à democracia suscitou uma reviravolta real na vida dos sujeitos, ou o que ocorreu foi uma verdadeira ilusão e mascaramento da realidade?”, aponta Ésio. “Se analisarmos com calma, logo percebemos que aquilo que inferimos como avanços da democracia, são eventos de dupla face: a ideia de liberdade e de direitos que adquirimos são na verdade uma tácita e crescentes inscrições de nossas vidas na ordem estatal, o que na verdade acaba tornando-se uma nova e temível instância de poder soberano, que achávamos que a democracia tinha nos libertado”, acrescenta.

Assim, o professor endossa a tese de Agamben de que dentro da própria democracia há não só arroubos totalitários, mas, também, mecanismos que podem engendrar sua destruição. “Não podemos mais nos contentar com teorias que buscam ‘amenizar’ os desvios democráticos. O que precisamos entender é como num estado democrático pode sobreviver ou germinar as sementes do autoritarismo”, provoca Ésio. E, nesse sentido, é observar como, no contexto brasileiro, se dão os ataques a Ciências Humanas especialmente. “As ciências humanas cumprem uma função de crítica social e crítica do conhecimento, simultaneamente. Enquanto crítica social, ela condena a sociedade por não corresponder ao seu discurso, por não ser aquilo que ela diz ser; como crítica do conhecimento, ela é capaz de questionar a forma de conhecimento predominante, pautada pela identidade, pela lógica tecnicista e planejada”, defende.

Ésio Francisco Salvetti é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM e pela Università degli Studi di Padova - Itália em 2017, mestre em Filosofia, também pela UFSM e graduado em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosfia Berthier e pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier. Ainda é bacharelando em Direito pela IMED.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância da obra de Agamben , sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1990, para pensar a filosofia política?
Ésio Francisco Salvetti – A partir dos anos de 1990, Giorgio Agamben inaugura um momento chave para sua teoria filosófica, foi uma década marcada por uma série de publicações. O primeiro livro foi La comunità che viene, e Bartleby ou da contingência (1993) . Depois, em 1995, Agamben lança o primeiro volume do projeto conhecido de Homo Sacer: a primeira obra, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita . A publicação deste primeiro volume tornou Giorgio Agamben conhecido mundialmente. O projeto surgiu simultaneamente com uma nova ordem social que despontou com o final da Guerra Fria, sob a rubrica da guerra humanitária e sob as condições que se encontravam milhares de migrantes.

Nesse contexto, Giorgio Agamben propôs uma nova interpretação do conceito ocidental de política. Aproximando-se das reflexões de Foucault e das análises do totalitarismo feitas por Hannah Arendt , Agamben assume o debate teórico sobre a biopolítica, alimentando reflexões e releituras que colocam em questão elementos cruciais da filosofia política moderna. Não é exagero dizer que este pensador está contribuindo para a redefinição dos parâmetros da filosofia política contemporânea, isso se evidencia através dos novos conceitos introduzidos por ele e que hoje são imprescindíveis nas discussões da filosofia política.

Isso se deve, em certo sentido, pela forma inovadora com que ele vincula os trabalhos de Benjamin , Arendt e Foucault à teoria de soberania de Schmitt . Hoje, depois da conclusão do projeto Homo Sacer, é possível traçarmos um fio condutor do início ao fim de seu projeto e ensaiar respostas às críticas prematuras que rapidamente foram feitas ao seu projeto filosófico, como por exemplo: de que não apresenta propostas, de que é apenas uma crítica ou desconstrução e que a ética é negligenciada. Hoje é tranquilamente possível a desconstrução desses argumentos.

Filosofia Política como arranjo jurídico-institucional

Nos anos de 1970, o filósofo John Rawls , de forma peculiar retoma o contratualismo, crendo que, poderíamos, em nossas sociedades multiculturais e plurais, concordar com a postulação de princípios constitucionais mínimos, os quais se sobreporiam às diferenças religiosas, morais, raciais ou de qualquer outra ordem. Como resposta a postulação de princípios constitucionais mínimos, surgiram os modelos republicanos, comunitaristas, procedimentalistas que dominaram a Filosofia Política a partir da década de 1970. Foi um período de encantamento com a liberal-democracia quando a Filosofia Política foi pensada como um arranjo jurídico-institucional capaz de organizar a vida social segundo uma moralidade mínima, isto é, uma moralidade que não deve interferir nas liberdades individuais.

Para autores como Rawls e Habermas , a democracia só subsistiria nas sociedades multiculturais se, ela se propusesse como puro procedimento de decisão. Esses pensadores assumiram o desafio de propor um arranjo político capaz de conciliar os princípios da igualdade e da liberdade. O grande auge da social-democracia foi com as políticas de reconhecimento e luta moral pela afirmação de identidades coletivas, especificamente a partir de maio de 1968, quando passaram a determinar a agenda dos movimentos sociais. Assim, a teoria política seguiu uma agenda de afirmação de identidades morais, como o feminismo, o pós-colonialismo, além de temas como direitos humanos e ambientalismo. Sobre isso é importante destacar que Agamben não se insere nessa mesma esteira do pensamento filosófico contemporâneo. Influenciados pela primeira geração da Escola de Frankfurt, Agamben faz uma leitura crítica, desvinculando-se do projeto da modernidade.

Do totalitarismo ao democrático

Com a queda do muro de Berlim, a transição dos países comunistas do leste Europeu e o fim das ditaduras latino-americanas, o grande tema do momento era democracia e totalitarismo, a questão de fundo era como os regimes totalitários tornavam-se democráticos e fundamentalmente o que era necessário para que as democracias vigorassem frente ao legado nefasto deixado pelo totalitarismo. Agamben em 1995, na contramão das teorias tradicionais da filosofia contemporânea, postulou uma tese que lhe rendeu muitas críticas, a saber: que entre democracia e totalitarismo há uma contiguidade. Se até então vivíamos um período de fetiche em relação às democracias liberais, Agamben faz as devidas avaliações. Obviamente que ao postular a tese sobre a contiguidade entre Democracia e Totalitarismo, Agamben não está negando os avanços que humanidade logrou com as democracias e tão pouco está comparando qual dos regimes é melhor. Sobre isso, ninguém de boa-fé teria dúvidas. O que Agamben tem dúvidas é se a passagem do totalitarismo à democracia suscitou uma reviravolta real na vida dos sujeitos, ou o que ocorreu foi uma verdadeira ilusão e mascaramento da realidade?

Se analisarmos com calma, logo percebemos que aquilo que inferimos como avanços da democracia, são eventos de dupla face: a ideia de liberdade e de direitos que adquirimos são na verdade uma tácita e crescentes inscrições de nossas vidas na ordem estatal, o que na verdade acaba tornando-se uma nova e temível instância de poder soberano, que achávamos que a democracia tinha nos libertado. Isso significa afirmar que no próprio seio da democracia existem os mecanismos da sua destruição, o que explica a crescente suspensão democrática de leis.

Estado nazista

Sobre isso Agamben destaca que a principal referência deste fenômeno é, sem dúvida, o Estado nazista. Hitler , por meio do decreto para a proteção do povo e do Estado, promulgado em fevereiro de 1933, suspendeu os artigos da Constituição de Weimar, acionou, após a situação emergencial o artigo 48 da Constituição, que previa, em caso de perturbação da ordem pública, o uso de medidas necessárias para restabelecer a segurança. Não podemos cometer o erro e pensar que essa prática política-jurídico foi uma peculiaridade da segunda guerra mundial. Agamben é claro ao afirmar que o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma do governo dominante na política contemporânea.

O que dizer das reações desencadeadas pelo governo norte-americano diante dos atentados de 11 de setembro? Numa investida global contra os chamados inimigos da civilização ocidental, o governo norte americano sistematizou e tornou lei, em 26 de outubro de 2001, um documento que autorizava a invasão de lares, a espionagem de cidadãos, a interrogações e torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a defesa ou julgamento. Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial. De que forma podemos explicar que as democracias têm uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo italiano teve? Para concluir, penso que, do ponto de vista da filosofia política, Agamben contribui significativamente com um diagnóstico preciso das nossas formas de governos e nos alerta que, não podemos mais nos contentar com teorias que buscam "amenizar" os desvios democráticos. O que precisamos entender é como num estado democrático pode sobreviver ou germinar as sementes do autoritarismo.

IHU On-Line – Como a questão da ética é tratada na obra de Agambem, especialmente em A linguagem e morte e A comunidade que vem? O que ele traz de novo em relação a tradição metafísica ocidental?
Ésio Francisco Salvetti – Cabe destacar que Giorgio Agamben não se preocupa em sistematizar uma teoria ética em seu projeto filosófico, mas isso não significa que ele a negligência. A filosofia de Agamben é uma crítica à ontologia do ocidente, por isso, sua proposta (a pars construens) se torna incompreensível se não pensarmos por este viés teórico. Sua proposta ética e política passa por uma nova ontologia, isso significa que os pilares da filosofia são repensados em sua totalidade.

A proposta filosófica é feita com uma erudição intelectual própria, suas referências transitam entre os campos da filosofia, literatura, história, linguística, religião, economia e direito, desde a antiguidade greco-romana à medieval, moderna e contemporânea. Este caminho é feito de um modo profundo, com um cuidado filosófico minucioso, muitas vezes estranho e inacessível com uma simples leitura.

Entendo que a partir dos anos noventa, precisamente, com a obra La comunità che viene, Agamben se concentra de modo particular sobre a crise política na contemporaneidade, porém os pressupostos para essa crítica Agamben começou a desenvolver no início da década de 1970. Na obra La comunità che viene, Agamben assinala que seu interesse passaria a ser a política, contudo, uma política fundada sobre a crítica à metafísica, à estética e à linguagem. O livro é composto por dezenove pequenos capítulos, seguidos de uma seção aforística intitulada O irreparável. No capítulo XI encontramos uma reflexão sobre ética, mesmo que de forma brevíssima, porém, acredito que neste capítulo há a chave para uma leitura ética de todo o projeto filosófico de Agamben, embora não a trate de forma explícita. Mas, essa é uma característica do autor e ele mesmo diz: “em cada livro há algo assim como um centro que permanece escondido”. É esse centro, portanto, que devemos descobrir e acredito que nele está a ética, que posteriormente se mantém viva, mesmo que de forma não dita na reflexão política.

Ética

Com a nova reedição da obra La comunità che viene, Agamben acrescentou um prefácio e ali também apontou seu interesse pela ética. Contudo, é importante destacar que este interesse aparece já na obra A linguagem e a morte . Logo na introdução ele deixa claro que a obra tem uma orientação ética. Com o objetivo de fazer um acerto de conta entre Hegel e Heidegger e depois de ter se interrogado sobre o lugar da negatividade, a Voz passou a ser reivindicada como o problema metafísico fundamental. Com a exposição do problema da Voz, Agamben entende que o seminário (a obra) atingiu seu objetivo. Todavia, destaca que o “caminho que o pensamento deve ainda percorrer [...] se faça em direção à uma ética” (AGAMBEN, 2006, p. 11) e complementa dizendo: “De fato, a crítica da tradição ontológica da filosofia ocidental não pode ser levada a cabo se não for, simultaneamente, uma crítica da sua tradição ética” (AGAMBEN, 2006, p. 11).

A comunidade que vem é a contribuição filosófica de Agamben para o debate que nasce na França, em 1980, com a queda do muro de Berlim e o fim do socialismo real. O fim das políticas comunitárias parecia ter possibilitado a liberdade. Aquilo que se tinha experimentado foi violência, intolerância contra as diferenças e a multiplicidade. Diante desse cenário, surge na França, em 1980, intelectuais que buscavam retomar o ideal político da comunidade. Esses intelectuais partiram da tese que o projeto comunitário, posto em prática, havia produzido violência contra as diferenças, mas ao mesmo tempo não podiam negar que o individualismo egoísta do liberalismo eliminava qualquer possibilidade de solidariedade. É neste cenário que Nancy escreveu a obra La comunità inoperosa , opondo-se tanto às soluções do comunismo e fascismo como à hegemonia do liberalismo.

No mesmo ano da publicação de Nancy, Maurice Blanchot publicou La comunità inconfessabile , como uma resposta. A influência desses dois escritos foi absorvida por Agamben e sua contribuição a este debate foi a obra La comunità che viene, que, sem dúvida, ocupa uma posição central, antecipando aquelas teses que em Homo sacer lhe deram notoriedade internacional.

Em relação ao tema da ética é importante destacar que no tópico XI da Comunidade que vem Agamben inicia afirmando:

O fato de onde deve partir todo o discurso sobre ética é de que o homem não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. É a única razão porque algo como uma ética pode existir: pois é evidente que se o homem fosse ou tivesse de ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não existiria nenhuma experiência ética possível – haveria apenas deveres a realizar (1993, p. 38).

A ética é possível no âmbito onde não existe a necessidade de se realizar uma tarefa ou vocação. Isso não significa que o homem não seja, ou não deva ser alguma coisa. Pois “há de fato, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo não é uma essência [...] é o simples facto da sua própria existência como possibilidade ou potência” (AGAMBEN, 1993, p. 38)

O problema é que a filosofia ocidental nos ensinou que o homem precisa realizar algo que lhe é próprio, realizar sua vocação dentro de determinadas circunstâncias já dadas. Agamben não compactua com essa tese. Para ele, a elaboração da singularidade qualquer consiste no esvaziamento de todo pressuposto seja, essência, identidade, pertencimento, inclusão ou representação.

Para concluir destaco que a expressão "que vem" Agamben já havia usado no ensaio de 1984, intitulado La cosa stessa (AGAMBEN, 2005, p. 09-23), e a mesma expressão aparece no ensaio de 1990 intitulado “Filosofia linguística” (AGAMBEN, 2005, p. 57-75). A partir de A comunidade que vem, entretanto, a expressão “que vem” tornou-se uma fórmula recorrente para indicar a tarefa messiânica da filosofia, da política e do pensamento. Parece-nos que esta expressão é fruto da influência de Benjamin. Em especial, do ensaio benjaminiano, intitulado “sul programma della filosofia che viene”. Por isso interpreta-se que o “que vem” é de uma tarefa, de uma exigência, de uma urgente reivindicação que o momento presente coloca ao pensamento.

IHU On-Line – O que Agamben quer dizer, em A linguagem e a morte, quando argumenta que o homem é um ser sem fundamento?
Ésio Francisco Salvetti – Nas páginas finais de A linguagem e a morte, Agamben descreve que o homem carece de fundamento, ou melhor, seu fazer não está fundado senão no seu próprio fazer. Essa tese tem um peso significativo e é em certo sentido retomada na A Comunidade que vem, exatamente no capítulo intitulado Ética. Nas obras precedentes Agamben não utiliza mais a expressão "o homem é um ser sem fundamento", mas o significado permanece.

Acredito que a compreensão do significado dessa expressão é melhor trabalhada na obra O Aberto . Nesta obra, Agamben passa a utiliza a tese de que não há uma essência humana, o que há é uma abertura. No entanto, historicamente se legou às ciências do homem o poder de legislar e decidir publicamente acerca do que é o homem. E quem decide o que é o homem decide, previamente, qual a política e qual a moral deve dispor sobre a ordem pública, para criar as subjetividades flexibilizadas. Em tese o significado é esse: a essência humana é indeterminada, aberta, e, como destaca Agamben, é uma fronteira móvel, articulada estrategicamente em cada época histórica.

IHU On-Line – Do que se trata, em Agamben, da teoria da potência e quais suas possibilidades em termos de tensionamento ao poder constituinte e constituído?
Ésio Francisco Salvetti – Em 2013, Giorgio Agamben foi convidado pelo Institute Nicos Poulantzas e pela Juventude do Syriza para uma conferência pública em Atenas, que foi intitulada “Poder destituinte”. O mesmo título é dado ao epílogo que fecha o último livro do projeto Homo sacer, L´uso dei corpi (2014) . Neste epílogo, Agamben deixa claro que sua estratégia teórica é superar a ontologia ocidental, fundamentada em dispositivos de cisões (zoé/bios, oikos/polis, alma/corpo, etc.).

O conceito destituinte precede ao projeto Homo sacer e tem suas raízes nas análises que Agamben faz de Bartleby. A partir de Homo sacer I, este conceito será chamado désoeuvrement ou “desativação” e constituirá o eixo central da proposta que se contrapõe à ontologia operativa da tradição política. O epílogo de L´uso dei corpi oferece uma espécie de resumo dos gestos e etapas fundamentais de todo o projeto de Agamben para reiterar que apenas um gesto e uma ruptura fundamental permitirá uma verdadeira superação dos impasses identificados em nosso tempo. Nesse texto é possível compreendermos o tensionamento entre poder constituinte e constituído e ali Agamben explicita sua estratégia destituinte.

Para a compreensão do que significa apostar na potência destituinte, há que entender a crítica que Agamben faz ao seu contrário, o poder constituinte. Na palestra em Atenas, ao refletir sobre o problema do Estado securitário, Agamben destaca que a partir da revolução francesa a tradição política da modernidade concebeu mudanças radicais sobre a forma de um processo revolucionário que age enquanto “poder constituinte de uma nova ordem institucional”. Poder constituído é o poder político advindo ou cristalizado na Constituição. Após a fundação da Constituição, o Estado tem condições de legislar, administrar, sempre tendo por base a Constituição, que foi criada por meio do poder constituinte. Por isso que se entende o poder constituinte como um poder ou força transcendente, anterior ao advento da Constituição. É um poder que se encontra fora do Estado, por isso livre para delimitar as disposições constitucionais do Estado.

Em síntese, é aquele poder capaz de estabelecer uma nova ordem constitucional. Esta problemática tem sido objeto de longas discussões de cientistas políticos desde a concepção esboçada na prática constituinte estadunidense e elaborada por Sieyès no séc. XVIII, no curso da Revolução Francesa. Na Modernidade as mudanças políticas ocorreram através do conceito de poder constituinte, que funciona da seguinte forma: o poder constituído pressupõe sempre em sua origem um poder constituinte que, através de um processo, geralmente revolucionário, o coloca em ato e o garante.

Poder constituinte e constituído

Em vários momentos da história se pretendeu distinguir poder constituído do poder constituinte. Por isso muitos compreendem que “os poderes constituídos existem somente no Estado: inseparáveis de uma ordem constitucional preestabelecida, [...]. O poder constituinte, ao contrário, situa-se fora do Estado; não lhe deve nada, existe sem ele” (HS, p. 46). Por outro lado, há uma forte tendência na política atual de querer trazer o poder constituinte para dentro do poder constituído. É essa distinção que impossibilita compor de modo harmônico a relação destes dois poderes e que emerge quando se trata de compreender a natureza jurídica da ditadura e do estado de exceção e também o caso do poder de revisão, frequentemente previsto no próprio texto das Constituições. Tanto uma posição quanto a outra não percebem os problemas que criam, o que frequentemente ocorre é que o poder constituinte acaba sendo engolido pelo poder constituído. A tendência que aposta na autonomia e na distinção dos poderes também não consegue alcançar a desejada harmonia.

Partindo das teses de Burdeau , que construiu uma teoria do Estado, e dos princípios de Benjamin, Agamben compreende que esses dois poderes não podem existir em planos separados, ou seja, é contrário a alguns consensos que estão se formando atualmente que desejam reduzir o poder constituinte ao poder de revisão previsto na Constituição e põe de lado como pré-jurídico ou meramente factual o poder do qual nasceu a Constituição. Benjamin já havia criticado esta tendência, apresentando o relacionamento entre poder constituinte e poder constituído como aquele entre a violência que põe o direito e a violência que o conserva. Tanto a tese que deseja reduzir o poder constituinte ao poder de revisão previsto na Constituição, quanto a tese que reivindica o caráter irredutível e originário do poder constituinte, que não pode ser condicionado e constrangido, estão aprisionadas no paradoxo da soberania: “Como o poder soberano se pressupõe como estado de natureza, que é assim mantido em relação de bando com o estado de direito, assim ele se divide em poder constituinte e poder constituído e se conserva em relacionamento com ambos, situando-se em seu ponto de indiferença” (HS, p. 48).

Por isso o problema fundamental “não é, aqui, tanto aquele (não fácil, teoricamente solúvel) de como conceber um poder constituinte que não se esgote jamais em poder constituído, quanto aquele muito mais árduo, de distinguir claramente o poder constituinte do poder soberano” (HS, p. 49). Foram muitas as tentativas na história de pensar a conservação do poder constituinte ao lado do poder constituído. São exemplos o partido em sentido leninista e o nazismo. Neles há a conservação de uma instância constituinte ao lado do poder constituído. Todavia, para Agamben, não há critérios que permitem distinguir claramente, pois ambos os poderes se confundem numa potencialidade. “Poder constituinte e poder soberano excedem, ambos, nesta perspectiva, o plano da norma, mas a simetria deste excesso é testemunha de uma contiguidade que vai se diluindo até a coincidência” (HS, p. 49). Ou seja, poder constituinte e poder soberano não se encontram nem totalmente dentro nem integralmente fora da ordem constituída.

“A tarefa é a destituição”

Esse paradoxo irresolúvel mostra a necessidade de se repensar as categorias ontológicas. A relação do poder constituinte com o poder constituído é como a relação da potência com o ato. Só será possível pensar uma política completamente liberta da relação de bando soberano quando se conseguir chegar a pensar potência desvinculada do ato. Ou seja, da mesma forma que o poder constituinte não se dilui por completo no poder constituído, a mesma ideia equivale a uma potência que não esgota todo o seu poder na passagem ao ato.

Portanto, só se poderá fugir desse círculo através de um poder tornado inoperoso e deposto através de uma violência que não deseje fundar um novo direito. Enquanto que o poder constituinte, que destrói e recria sempre novas formas de direito, sem jamais destruí-lo definitivamente, a potência destituinte tira do cargo, de uma vez por todas, o direito e inaugura imediatamente uma nova realidade.

Aqui percebemos a proximidade entre potência destituinte e inoperosidade. Em ambos está em questão a capacidade de desativar e tornar inoperoso o poder ou a função, sem destruir, mas liberando as potencialidades que permaneceram sem atuação para permitir um uso diferente. Se, de fato, Agamben está certo e essa é a estrutura do nosso pensamento ocidental, então a tarefa é uma só: não podemos continuar achando que poderemos agir como se agiu até agora, inventando novas e mais eficazes articulações das duas metades da máquina. A tarefa é a destituição. Não resta outra atitude, pois nenhum mecanismo da máquina ontológica-política do Ocidente pode ser reparado, reconstruído ou melhorado.

IHU On-Line – Como Bartebly, o escriturário de Melville nos ajuda a compreender a potência do não como gesto ético?
Ésio Francisco Salvetti – Bartleby é o personagem principal de um conto clássico da literatura em língua inglesa, escrita em 1853, por Herman Melville. O conto narra a história de um velho advogado, que contrata para ser um dos seus escriturários, um homem misterioso e passivo, chamado Bartleby. No início ele trabalha bem copiando documentos, mas assim que seu chefe lhe pede para fazer algo minimamente fora de suas atribuições, como ajudar a revisar a cópia de outro escrivão, Bartleby responde: “I would prefer not to”(“Prefiro de não”). O “prefiro não fazer” torna-se sua marca registrada, e o advogado narrador, que evita conflitos a qualquer custo, vai aceitando todas as “insurreições” de Bartleby, até que o agora ex-escrivão fica no escritório sem fazer nada.

Com Bartleby, Agamben retoma suas análises de 1987, para sublinhar o caráter central da potência, que é um dos principais conceitos de sua teoria. Com a história do Bartleby, Agamben busca entender a forma que se articula cada potência, em especial a “potência de não ser” (dynamis me einai) ou então a “impotência” (adynamia). A tese central é de que o ser qualquer é o ser que pode não ser, que pode a sua própria impotência. Ou seja, só a potência que, tanto pode ser potência como a impotência, é a potência suprema. Na obra A comunidade que vem Agamben dá um bom exemplo que nos ajuda a compreender essa tese:

[...] se é próprio de todo o pianista tocar e não tocar, Glenn Gouldé, no entanto, o único que pode não não-tocar, e, aplicando a sua potência, não apenas ao ato, mas a sua própria impotência, toca, por assim dizer, com a sua potência de não tocar. Face à habilidade, que simplesmente nega e abandona a própria potência de não tocar, a mestria conserva e exerce no ato não a sua potência de tocar [...], mas a de não tocar (LCV, p. 34).

Depois de uma análise atenta da obra De anima , de Aristóteles , Agamben afirma que o filósofo grego distingue diferenças no que concerne à potência. Há uma potência genérica, que é aquela em que, por exemplo, um menino tem a potência da ciência ou que é em potência um arquiteto. A potência é genérica, pois a criança pode aprender determinada ciência, pode se tornar um arquiteto, como também pode não aprender e não ser arquiteto. Mas, há uma potência que compete a quem já possui hexis correspondente aquele saber ou aquela certa habilidade. É neste segundo sentido que um arquiteto tem a potência de construir, ainda quando não está construindo. Essa forma de potência se difere da potência genérica. A afirmação “o menino é potente”, significa que sofrerá uma alteração, deverá passar por um processo de aprendizagem, para tornar-se um arquiteto ou pianista, etc. Aquele que já possui uma técnica não deve sofrer nenhuma alteração; é potente a partir de uma hexis, que pode não colocar em ato ou implementar, passando de um não ser em ato a um ser em ato. Por isso, “a potência é definida essencialmente da possibilidade de seu não exercício, assim como hexis significa: disponibilidade de uma privação”. A diferença entre a potência do arquiteto e a do menino está na “potência do não”, que o arquiteto possui, enquanto a criança não possui.

Muito além do ato

A potência do não existe somente no ato. Se a potência existisse somente no ato não poderíamos considerar um determinado homem arquiteto quando não está construindo. Este é o modo de ser da potência, existe na forma da hexis, sobre uma privação. “É uma forma, uma presença de algo que não está em ato”. Por isso, Agamben afirma: “A grandeza – mas também a miséria – da potência humana é que essa é, também e antes de tudo, potência de não passar ao ato” (PP, p. 280). Esta é uma relação paradoxal, pois ter uma potência implica ter a experiência da privação, algo que está por ser, que pode ser, mas que ainda não é e que até mesmo pode vir a não ser. O arquiteto, por ter a potência como faculdade pode a qualquer momento suspender o ato (de construir) e manter a potência como possibilidade. Mas a criança, por ter só a potência genérica, não tem a potência do não.

Os outros seres viventes podem somente alcançar a potência específica de seu ser, podem somente este ou aquele comportamento que já está escrito na sua vocação biológica. Diferente do homem, o homem é o animal que pode a própria impotência.

Potência pura

Ao preferir não escrever, Bartleby torna-se potência pura, absoluta. É fundamental destacarmos que, para Agamben, a condição de potência pura jamais pode ser reduzida à vontade ou à necessidade, como nos fez acreditar a ética clássica, que reduz o poder ao querer e ao dever. A ética, principalmente a moderna, ao abordar a questão relativa à potência reduziu-se ao problema do dever, nunca se colocou a questão sobre o “poder não fazer” atendo-se sim ao “não poder fazer”. No “poder não fazer” está em questão o poder exercitar a própria impotência.

A potência pura diz respeito ao poder mesmo, independente do querer ou da vontade ou do não querer. Por isso Agamben alerta que é uma grande ilusão da moral “crer que a vontade tenha poder sobre a potência, que a passagem ao ato seja o resultado de uma decisão que põe fim à ambiguidade da potência (que é sempre potência de fazer e de não fazer)” (AGAMBEN, 1998, p. 61). Ou seja, a potência do escrivão excede à vontade. “Não é que ele não queira copiar ou que queira não deixar o escritório - somente preferiria não fazê-lo” (BA, p. 61). A fórmula de Bartleby, repetida várias vezes (preferiria não ou prefiro não) não abre a qualquer possibilidade de construir uma relação entre potência e querer. Trata-se de uma potência que excede a vontade. A vontade e a liberdade do querer sempre foram utilizadas na ética como operadores da culpa. Precisa-se imputar à liberdade do querer e da vontade para responsabilizar de forma legítima uma determinada ação.

Bartleby questiona precisamente esta supremacia da vontade sobre a potência. O interesse de Agamben por Bartleby é mostrar que a “potência de não”, já apontada como possibilidade em Aristóteles, nunca foi levada às últimas consequências. A conclusão de Agamben é que a potência é ambígua, pois pode ser (fazer como pode não ser (não fazer) se não fosse assim, a potência passaria necessariamente ao ato, confundindo-se com este. Bartleby é a experiência que se arrisca na contingência absoluta. A potência absoluta, iluminada pelo exemplo de Bartleby, abre a possibilidade para o homem se ver como pura possibilidade e sem uma função definida. Com isso, a ação humana distingue-se claramente daquela do animal ou das coisas físicas, isso porque a potência da ação humana não se exaure no agir, mas se mantêm como potência. A potência da ação humana transcende aos determinismos da sua natureza biológica, embora por eles esteja condicionada.

A ideia da potência desenvolvida até o momento é a mesma ideia que fundamenta o tópico IX – Bartleby, da obra A comunidade que vem. A tese é que qualquer um é o ser que pode não ser, pode a própria impotência. Bartleby é o personagem que não está ancorado em pressupostos, não realiza qualquer essência, nem mesmo vocação histórica, ou espiritual, ou seja, não cumpre nenhum destino. É o exemplo da singularidade qualquer, o ser que pode não ser. Bartleby é a potência suprema que pode tanto a potência quanto a impotência. Parece que é exatamente isso que Agamben chama de Ética.

Na obra intitulada Nudez Agamben descreve:
“É sobre esta outra face mais obscura da potência que hoje prefere agir o poder que se define ironicamente como “democrático”. Separa os homens não só e não tanto daquilo que podem fazer, mas antes do mais e as mais das vezes daquilo que podem não fazer. Separado da sua impotência, privado da experiência do que pode não fazer, o homem de hoje crê-se capaz de tudo e repete o seu jovial “não há problema” e o seu irresponsável “pode fazer-se”, precisamente quando deveria antes dar-se conta de ser entregue numa medida inaudita a forças e processos sobre os quais perdeu qualquer controle. Tornou-se cego não ao que pode fazer, mas ao que não pode ou pode não fazer. [...] Nada rende tantos pobres e tão pouco livres como este estranhamento da impotência. Aquele que é separado do que pode fazer, pode, todavia, resistir ainda, pode ainda não fazer. Aquele que é separado da sua impotência perde em contrapartida, antes do mais, a capacidade de resistir. E como é somente a calcinante consciência do que não podemos ser a garantir a verdade do que somos, assim também é somente a visão lúcida do que não podemos ou podemos não fazer a dar consistência ao agir” (AGAMBEN, 2010, p. 58-59).

Em uma sociedade do consumo, da submissão, de formatação das subjetividades, do fazer por simples dever, num mundo onde precisamos baixar a cabeça de fazer sem contestar, Bartleby repete o seu ‘preferiria não’. Por isso, entendo que Bartleby opera de alguma forma aquilo que Agamben recentemente denominou a ‘potência destituinte'.

Ao colocar a potência no centro de sua análise filosófica Agamben chega à conclusão de que o homem, diferente dos outros viventes que podem somente alcançar a potência específica de seu ser, podem somente este ou aquele comportamento que já está escrito na sua vocação biológica, o homem pode a própria impotência. A potência humana é plena na medida em que é capaz de suspender a potência de fazer. A potência do não é a possibilidade do homem se distanciar dos imperativos biológicos da espécie a ponto de ter uma potência podendo negar a realização de uma determinada ação. A fórmula “preferiria não” faz com que Bartleby cumpra uma outra tarefa cara a nós modernos: não se deixa submeter à satisfações ou desejos dos outros. Numa sociedade com uma legião de Bartlebys o sistema capitalista, com suas produções dos desejos, não teria sucesso. O personagem Bartleby seria a forma de resistência pois permanece numa zona de indiscernibilidade entre o sim e o não, entre a potência de ser e a de não ser.

IHU On-Line – Do ponto de vista da filosofia política, quais têm sido os principais problemas filosóficos a serem enfrentados contemporaneamente?
Ésio Francisco Salvetti – Há atualmente uma vasta agenda de problemas que a filosofia política precisa enfrentar, o que torna difícil elencar qual é o mais urgente. No entanto, arrisco em elencar alguns: crise (ou fim) da democracia liberal; a violenta radicalização dos conflitos internacionais; a gestão policial da população em permanente estado de exceção que conduz naturalmente ao empobrecimento das garantias jurídicas em nome da segurança e sobrevivência; aumento significativo dos fluxos migratórios, que envolvem milhões de vidas e a utilização de dispositivos de exceção jurídica para gerir esse fluxo humano. São casos perfeitamente conhecidos e evidenciados na realidade de países subdesenvolvidos, em especial nas favelas, quando a justiça emite mandados judiciais genéricos e todas as residências são “revistadas” indistintamente.

De fato, a experiência de nossos pobres, que vivem claramente inúmeras situações de exceções jurídicas, indica que a exceção tornou-se a regra. No entanto, com uma análise mais apurada percebemos que no centro destes casos que elenquei está a noção de biopolítica. Creio que este é o problema central que a filosofia política contemporânea necessita enfrentar. Pois, o que está em jogo é uma complexa estratégia para regular e controlar os momentos mais fundamentais da vida, tarefa da biopolítica que se aproveita da medicina e de outras ciências como economia, direito, estatística para governar a vida. Todos esses fenômenos, em si complexos, têm em comum o fato de serem fenômenos políticos que têm uma implicação direta na vida biológica do ser humano, enquanto ser vivente. São fenômenos que nos mostram como a política assumiu o encargo de gestão biológica da vida. É esse encargo político que Foucault intitulou de biopolítica. Um conceito que cada vez mais está em uso, porém, ainda é tratado com generalidade, muitas vezes mal compreendido, principalmente suas consequências éticas.

IHU On-Line – Como podemos compreender os ataques do atual governo à Filosofia, Sociologia e Ciências Humanas em geral? Que respostas as áreas de humanidades podem oferecer no atual contexto?
Ésio Francisco Salvetti – A Filosofia, Sociologia ou, qualquer outra área das ciências humanas, não oferecem à sociedade o mesmo que profissionais das áreas tecnológicas. Numa sociedade onde milhões passam fome, as ciências humanas não desenvolvem técnicas para a produção de mais alimentos, numa sociedade com altas taxas de desemprego ou de violência, não oferecem emprego ou segurança, mas, empenham-se em entender e dar respostas ao porquê da existência da fome, do desemprego, violência e etc. Ter clareza e entendimento sobre os pressupostos que levam milhões morrerem de fome (para dar apenas um exemplo) é fundamental para pensarmos alternativas e soluções. Na maioria das vezes, a insistência que as ciências humanas fazem para retornar aos pressupostos dos problemas (fome, violência, desemprego, etc) produz diagnósticos que mexem nas "feridas" do sistema. Por isso esse sistema não nos "suporta".


Não é difícil compreender por que o atual governo ataca as ciências humanas. Ao contrário de suas propagandas de campanha, o atual governo é o que há de mais retrógrado no conservadorismo político. É um governo que apenas cumprirá um papel político de manutenção do Status Quo do sistema político-econômico, mas, para fazer isso com mais facilidade e tranquilidade, precisa fragilizar as ciências humanas.

Destaco alguns problemas, que incorremos, quando aceitamos que um governo pense a construção de uma sociedade fragilizando as ciências humanas e investindo apenas nas ciências tecnológicas. Nos últimos dois séculos, a humanidade presenciou o avanço acelerado da tecnologia e da ciência. Cremos cegamente que a técnica desvendaria ao homem o seu próprio ser, não apenas o mundo onde vivia. Cremos, desejamos e cobiçamos o progresso prometido pela técnica. A promessa era que junto com o progresso a sociedade se emanciparia e os sujeitos tornariam-se esclarecidos.

Atualmente compreende-se que esta excessiva ênfase no método técnico-científico e no pensamento racional levou a humanidade a uma situação paradoxal, sintetizada por Capra da seguinte forma: "podemos controlar o pouso suave de espaçonaves em planetas distantes, mas não conseguimos mais controlar a fumaça poluente expelida pelos automóveis e fábricas" (CAPRA, 1995. p. 39). Não nos esqueçamos que o século XX foi o século de grandes acúmulos tecnológicos, mas, ao mesmo tempo, foi o século caracterizado por genocídios, guerras, crise ambiental e etc. Ou seja, a técnica que prometia libertar a humanidade das amarras, está destruindo-a. O século XX demonstrou o quanto estamos despreparados para os novos desafios, riscos e oportunidades técnicas que se avizinham.

As ciências humanas não são contra aos avanços tecnológicos, pelo contrário, mas tem por objetivo a construção de caminhos que aliam técnica e ciência ao humano e não ao sistema, ao capital. Nesta perspectiva, as ciências humanas cumprem uma função de crítica social e crítica do conhecimento, simultaneamente. Enquanto crítica social, ela condena a sociedade por não corresponder ao seu discurso, por não ser aquilo que ela diz ser; como crítica do conhecimento, ela é capaz de questionar a forma de conhecimento predominante, pautada pela identidade, pela lógica tecnicista e planejada. Diante disso, ela realiza uma dinâmica que se caracterizada pela reflexão imanente, respeitando o diferente. Com isso, posso afirmar que as ciências humanas contribuem para a obtenção de uma ordem social mais justa, mais humana, desvelando os dispositivos que impedem a emancipação.■

Referências

- AGAMBEN, Giorgio. Il linguaggio e la morte: un seminario sul luogo della negatività. Torino: Piccola Biblioteca Einaudi, 1982. [A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2006].
- AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. António Guerreiro. Lisboa: Presença, 1993.
- AGAMBEN, Giorgio. La potenza del pensiero: saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza, 2005.
- AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2010.
- DELEUZE, Gilles; AGAMBEN, G. Bartleby: la formula della creazione. Macerata: Quodlibet, 1998.

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