Edição 541 | 16 Setembro 2019

Defensores do sistema público, mas usuários de planos de saúde

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João Vitor Santos

Para Élida Hennington, o subfinanciamento e a gestão do SUS levam à busca pelo sistema privado, mas isso não pode significar abandono da luta pelo fortalecimento do sistema público

Quem busca emprego não está só atento ao salário, mas também aos benefícios ofertados pelos empregadores. Entre esses benefícios, a grande estrela são sempre os planos de saúde. Na prática, a busca pelo sistema privado acaba nutrindo um mercado, enquanto o Sistema Único de Saúde - SUS é desestruturado. “Esta é uma questão antiga que acompanha os debates sobre a defesa do SUS e a aparente contradição que habita o seio não só da classe que vive do trabalho, mas também do movimento sanitário e de todos que defendem a saúde pública, equânime e universal”, aponta a médica e especialista em saúde coletiva Élida Hennington. Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, também reconhece a aparente contradição. “Eu defendo o SUS e tenho plano de saúde. Sabemos que os planos privados não são a solução, porém o sistema público de saúde ainda não funciona da maneira que gostaríamos e, se temos condições financeiras, optamos por fazer um plano privado”, analisa.

Para Élida, é necessário um movimento da sociedade que exija melhor financiamento do sistema público, assim como a otimização da gestão e uso dos recursos. É como diz: “fortalecimento de uma consciência crítica que favoreça a defesa daquilo que é público, do uso adequado dos impostos que pagamos, do compromisso dos governantes para o direcionamento dos recursos para as políticas sociais”. Mesmo reconhecendo que essa não é uma tarefa fácil, aponta que “o Brasil precisa avançar muito na valorização da coisa pública: da saúde pública, do transporte público, da educação pública etc. A defesa tem que ser intransigente, ainda que por um tempo tenhamos que conviver com essas contradições”.

Além disso, ressalta que não se pode perder a perspectiva de que a saúde é um bem público e não comercializável. “Na medida em que os trabalhadores optam pelos planos de saúde sem uma visão crítica, sem perspectiva de defesa e fortalecimento do SUS ou até mesmo negando o SUS, eles acabam fortalecendo o privado em detrimento do público, a lógica da saúde como mercadoria”, completa. Assim, enfatiza que é preciso pensar nesse fortalecimento como princípio de solidariedade para quem não conta com a possibilidade de pagar a saúde como bem. E, depois, até mesmo quem hoje diz não usar e não querer o SUS, pode acabar tendo esse sistema como única opção assistencial. “Com o crescimento da informalidade, do subemprego e do desemprego, grandes parcelas da população só terão acesso ao SUS. Mais do que nunca é preciso que essa discussão penetre no âmago dos sindicatos e movimentos sociais. O empregado de hoje pode ser o desempregado de amanhã”.

Élida Azevedo Hennington é graduada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense, possui mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e pós-doutorado no Instituto de Salud Colectiva da Universidade Nacional de Lanús, na Argentina. Atualmente é pesquisadora titular em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca - PPGSP ENSP Fiocruz.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as diferenças e as semelhanças entre os projetos de saúde coletiva pública e privada?
Élida Azevedo Hennington – Fundamentalmente, o que diferencia é que para a saúde pública, saúde é direito e não mercadoria e, portanto, o projeto da saúde pública é a defesa da vida. Ao contrário, o setor privado da saúde, em última instância, visa ao lucro, o que pode comprometer a oferta de serviços quando estes forem considerados pouco lucrativos ou deficitários. Podemos observar que o SUS assume o atendimento da população em muitas situações que não são de interesse da saúde privada porque não geram lucro como, por exemplo, atendimentos de alta complexidade e internações de longa duração. De outro modo, todos nós usufruímos de importantes serviços prestados pelo sistema público de saúde, como as campanhas e a vacinação de rotina oferecida nos centros de saúde, as ações de vigilância sanitária e ambiental, o controle da qualidade de alimentos e da água, controle do sangue e hemoderivados, os atendimentos de urgência, transplante de órgãos, dentre outros.

IHU On-Line – Em que medida os planos de saúde privados podem constituir uma ameaça ao sistema público de saúde?
Élida Azevedo Hennington – Sabe-se que os planos de saúde privados atuam fortemente na disputa por mercado e por recursos públicos na medida em que se colocam como alternativa ao SUS. Recentemente, com o discurso de “ampliar o acesso à saúde”, representantes da Federação Nacional de Saúde Suplementar - FenaSaúde e da Associação Brasileira de Planos de Saúde - Abramge em artigo publicado na Folha de São Paulo advogaram pela atualização do marco legal da saúde suplementar que hoje proíbe a oferta segmentada de serviços de saúde. Ou seja, eles querem liberação para venda de planos de menor cobertura, proposta esta que foi prontamente contestada por outro artigo publicado no mesmo veículo por Scheffer , Lazzarini e Bahia , que denunciaram a tentativa das empresas de planos de saúde de impor a venda de “planos pobres para pobres”.

Os autores chamaram atenção para o ganho de receita das operadoras de R$ 109 bilhões, em 2013, para R$ 196 bilhões em 2018, apesar da recessão e da alegada perda de três milhões de clientes. De outro modo, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, as operadoras deixaram de repassar ao SUS quase R$ 2 bilhões referentes a atendimentos prestados por unidades públicas de saúde a beneficiários da saúde suplementar. Este montante deveria ser repassado pela União a estados e municípios para ressarcimento dos gastos, mas as empresas recorrem à judicialização, o que dificulta ou posterga o repasse.

Como dito anteriormente, o SUS acaba arcando com atendimentos que não são prestados pelos planos, como procedimentos caros e complexos não autorizados ou casos de urgência e emergência que chegam nos hospitais públicos. Parece existir sempre o movimento de deixar para o SUS os custos e tentar abocanhar maior fatia do mercado lucrativo sem que isto signifique resolver os problemas de saúde dos conveniados, além de muitas vezes limitar a cobertura e negar atendimentos, cobrar mensalidades altas e nem sempre oferecer serviços de qualidade.

IHU On-Line – Como a ideia de saúde preventiva é compreendida dentro da lógica dos planos privados? E no sistema público?
Élida Azevedo Hennington – Os objetivos podem ser semelhantes, mas as lógicas são distintas. O setor privado segue a lógica do lucro já citada anteriormente. Para as operadoras, prevenir significa evitar ou reduzir custos. A visão é reduzir a utilização de serviços de maior complexidade, por exemplo. Se eu controlo os casos de diabetes e hipertensão, claramente isto terá um impacto significativo em tratamentos mais complexos, cirurgias, internações etc. O sistema público também objetiva reduzir custos e manter a sustentabilidade financeira do sistema, mas não segue, obviamente, a lógica do lucro, e sim visa à proteção e recuperação da saúde das pessoas.

IHU On-Line – Por que as empresas investem em planos privados para seus trabalhadores? Como compreender esse desejo da classe trabalhadora de possuir plano privado?
Élida Azevedo Hennington – Esta é uma questão antiga que acompanha os debates sobre a defesa do SUS e a aparente contradição que habita o seio, não só da classe que vive do trabalho, mas também do movimento sanitário e de todos que defendem a saúde pública, equânime e universal. Eu defendo o SUS e tenho plano de saúde. Você também deve ter. Sabemos que os planos privados não são a solução, porém o sistema público de saúde ainda não funciona da maneira que gostaríamos e, se temos condições financeiras, optamos por fazer um plano privado.

O plano de saúde privado sempre esteve na pauta dos acordos sindicais e ainda permanecerá como desejo dos trabalhadores enquanto não houver um amplo movimento na sociedade que promova um adequado financiamento do sistema, o uso adequado dos recursos e o fortalecimento de uma consciência crítica que favoreça a defesa daquilo que é público, do uso adequado dos impostos que pagamos, do compromisso dos governantes para o direcionamento dos recursos para as políticas sociais. Não é tarefa fácil, mas urgente e necessária. O Brasil precisa avançar muito na valorização da coisa pública: da saúde pública, do transporte público, da educação pública etc. A defesa tem que ser intransigente, ainda que por um tempo tenhamos que conviver com essas contradições.

Eu acredito que, na medida em que o serviço público de saúde deixe de ser subfinanciado, que a gestão melhore sua performance e seus processos, que a mídia comece a mostrar não somente os problemas, mas também os bons serviços e os grandes avanços conquistados, conseguiremos nos livrar dos planos, valorizar e consolidar um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo. Isto requer fortalecer um discurso crítico e contra-hegemônico.

O SUS tem que ser para o brasileiro o mesmo que o NHS significa para os ingleses. Uma conquista que precisa ser aprimorada, mas da qual não podemos abrir mão. Nesse sentido, os trabalhadores têm que ser aliados do movimento sanitário – temos que conquistar corações e mentes através do pensamento crítico: todos devem ter direito à saúde. Devemos seguir defendendo o SUS dos constantes ataques porque significa a defesa do bem comum, a defesa da vida.

IHU On-Line – Em que medida a opção pelos planos privados no mundo do trabalho impacta o sistema público?
Élida Azevedo Hennington – Na medida em que os trabalhadores optam pelos planos de saúde sem uma visão crítica, sem perspectiva de defesa e fortalecimento do SUS ou até mesmo negando o SUS, eles acabam fortalecendo o privado em detrimento do público, a lógica da saúde como mercadoria. Tem saúde quem pode pagar por ela.

Com o crescimento da informalidade, do subemprego e do desemprego, grandes parcelas da população só terão acesso ao SUS. Mais do que nunca é preciso que essa discussão penetre no âmago dos sindicatos e movimentos sociais. O empregado de hoje pode ser o desempregado de amanhã. Precisamos discutir a saúde que queremos, como iremos avançar e superar esses impasses. Os planos de saúde não cobrem acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, por exemplo. A Reforma da Previdência pode abrir espaço para as seguradoras privadas, que estão de olho nesse nicho de mercado há muito tempo. Isto significaria abrir mão de uma lógica contributiva e solidária para o privilegiamento da lógica de mercado.

IHU On-Line – A senhora também pesquisa acidentes de trabalho. Qual o impacto do custo desse tipo de acidente no Sistema Único de Saúde - SUS?
Élida Azevedo Hennington – Segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho, a economia global perde anualmente cerca de 4% do Produto Interno Bruto em razão de doenças e acidentes de trabalho. No Brasil, o Ministério Público do Trabalho estima que acidentes de trabalho custaram mais de R$ 26 bilhões à Previdência Social entre 2012 e 2017, gastos no pagamento de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio acidente. Dados do Ministério da Saúde apontam que de 2010 a 2014 as internações hospitalares no Brasil registradas como acidentes de trabalho típicos ou de trajeto geraram um custo total de R$ 422.409,43.

Porém, esses dados não expressam a realidade nem a totalidade dos gastos tendo em vista a notória subnotificação de eventos acidentários no SUS, que gira em torno de 90%. Serviços públicos de saúde atendem rotineiramente acidentes de trabalho que incluem acidentes típicos, violências, acidentes de trânsito e doenças ocupacionais mas, infelizmente, muitos não são reconhecidos e registrados como acidente de trabalho. Assim, ainda é muito difícil avaliar concretamente o impacto dos acidentes de trabalho para o SUS.

IHU On-Line – Como imagina ser a relação ideal entre o público e o privado no que diz respeito à saúde coletiva, especialmente na questão da prevenção?
Élida Azevedo Hennington – O SUS realiza prevenção de doenças e agravos, campanhas e práticas educativas em saúde. Como dito anteriormente, o setor privado não tem compromisso com a prevenção de doenças na perspectiva do sistema público – acaba realizando ações de prevenção e de promoção da saúde visando à redução de custos. Não creio que exista uma relação ideal, porque as lógicas de funcionamento e os objetivos são bem distintos.

IHU On-Line – De que forma observa a regulação do Estado sobre planos privados de saúde? E qual a importância da regulação e do controle estatal sobre o sistema privado?
Élida Azevedo Hennington – A regulação é fundamental não só para garantir o cumprimento das obrigações contratuais e evitar o aumento abusivo das mensalidades, por exemplo, bem como para exigir o ressarcimento do SUS pelos serviços prestados aos conveniados. Os planos querem como clientes os jovens e sadios porque visam ao lucro – pessoas doentes e idosos dão prejuízo e, portanto, é necessária uma estrita regulação para evitar a discriminação, os preços abusivos e as tentativas de exclusão de serviços, tratamentos e outros procedimentos necessários, bem como impedir a ingerência no estabelecimento de procedimentos diagnósticos e tratamentos, desrespeitando muitas vezes a autonomia profissional. Observa-se o avanço das operadoras e de seus representantes na máquina do Estado, influenciando eleições e assumindo cargos de comando na agência reguladora. É preciso criar mecanismos para evitar esses vícios e dar poder ao controle social.■

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