Edição 538 | 05 Agosto 2019

Guimarães Rosa: a vida na fissura do dilaceramento existencial brasileiro

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Ricardo Machado

Kathrin Rosenfield traça o panorama da obra de Guimarães Rosa em perspectiva com a ambiguidade típica do Brasil e a tradição da literatura ocidental

Dizer Guimarães Rosa ou Machado de Assis é como escrever sinônimos para a sentença grandes nomes da literatura brasileira. Os caminhos percorridos pelos autores em seus projetos éticos, de discussão sobre o Brasil para além de sua superfície aparente, são bastante distintos, para não dizer opostos. “O uso dessas duas retóricas resulta em posturas e práticas éticas diferentes. O sarcasmo implícito de Machado distancia-se do mal que ele critica (de modo camuflado) ao passo que o humor rosiano estabelece uma identificação do narrador com os males que ele contempla. Muitas vezes o personagem, por exemplo, Riobaldo, reconhece-se no mal sobre o qual ele rumina: a cordialidade e a melancolia brasileiras”, descreve Kathrin Rosenfield, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Guimarães Rosa é parte de um modernismo muito particular, em que funde a tradição literária à cultura regionalista do Brasil, postulando uma espécie de universalismo regionalista. Kathrin descreve esse movimento como uma espécie de retroavanço, no qual a vanguarda se une a hábitos antigos, em três dimensões. “Primeiro, a oralidade e o contar casos é uma dessas tradições fortes da convivência real do Brasil. Segundo, o trabalho artístico da ingenuidade e da sinceridade que se enquadra com muita dificuldade nos interesses da sociedade civil, embora a sociabilidade dependa desse sentimento puro. Sem a ancoragem artística desse sentimento cândido, os jogos paródicos modernos perdem sua força. Um terceiro alicerce para a tradição imaginária brasileira seria a recuperação artística da musicalidade das falas regionais e das suas saborosas metáforas concretas”, pontua a pesquisadora.

A transcendência da obra de Guimarães Rosa a mantém atual nos dias atuais. “Certamente não é por acaso que Rosa escolhe o mundo sertanejo, o arcaico tema do pacto e do amor como veículos para a fusão dos elementos vivos da cultura brasileira. Ele procura fundir o velho e o novo imaginário do Brasil num mito acre-doce da ambivalência, da cordialidade”, ressalta. “Acredito que o momento atual mostra a lucidez de Rosa e de seus personagens que sempre temem o ressurgimento de conflitos violentos ancorados na mentalidade brasileira: nas suas velhas estruturas patriarcais, religiões integralistas, intolerância social, racial e de gênero e a polarização política”, complementa.

Kathrin Rosenfield nasceu na Áustria e vive no Brasil desde 1984. Possui graduação em Letras pela Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), mestrado em Antropologia Histórica pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e doutorado em Ciência da Literatura pela Universidade de Salzburg. É pesquisadora do CNPq e leciona nos programas de pós-graduação em Letras e em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Entre outros livros, publicou Desenveredando Rosa: Ensaios sobre a obra de J. G. Rosa (Rio de Janeiro: Topbooks, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira as obras de Guimarães Rosa e Machado de Assis, de um sertanejo e de um metropolitano, se contrapõem e se complementam?

Kathrin Rosenfield – Em primeiro lugar, as obras de Machado e de Rosa fornecem ângulos de vista complementares (o urbano e o rural); ambos são profundamente locais-e-universais (embora de modos diversos). Isso os torna “clássicos”.

Em segundo lugar, ambos são mestres da ironia e usam os toques irônicos como intervenções na postura ética (dos personagens e dos leitores). Tanto Machado como Rosa manejam magistralmente o distanciamento de um ponto de vista fixo. Este procedimento reflexivo e irônico, entretanto, toma uma forma totalmente diferente nos dois autores. Eles pertencem, por assim dizer, a tradições irônicas diferentes. Uma remonta à tragédia grega (que se distancia do mito), ao diálogo socrático, a Cervantes e desemboca na contemplação irônica de Kafka , Musil e Beckett . Rosa está mais próximo desta tradição, ao passo que Machado pratica um humor mais sarcástico que vem da sátira e da comédia, prolongando-se com Sterne , Maupassant ou, aqui no Brasil, com Nelson Rodrigues e o sarcasmo jornalístico. O humor doce de Rosa e o sarcasmo cortante de Machado têm sabores e auras inconfundíveis e muito diversas. Mais do que isto: o uso dessas duas retóricas resulta em posturas e práticas éticas diferentes. O sarcasmo implícito de Machado distancia-se do mal que ele critica (de modo camuflado) ao passo que o humor rosiano estabelece uma identificação do narrador com os males que ele contempla. Muitas vezes o personagem, por exemplo, Riobaldo, reconhece-se no mal sobre o qual ele rumina: a cordialidade e a melancolia brasileiras. Esse tipo de implicação ética-contemplativa é muito mais complicada em Machado: o fato é que durante longas décadas (até a crítica desbravadora de R. Schwarz ) não se via que Machado censurava males específicos do Brasil. Ele parecia representar um pessimismo mais genérico (do tipo mítico, ou comparável com o livro de Job). Somente nas últimas décadas ficou clara a crítica severa que Machado faz aos costumes da sua sociedade. E também Rosa foi criticado de não ser engajado, de compactuar com o atraso – visão que está se modificando recentemente...

IHU On-Line – De que forma a literatura de Guimarães Rosa se vincula à filosofia poética inaugurada no final do século XVIII e a autores saxões como Hölderlin, Kleist e Robert Musil? No que se aproxima e em que se diferencia?

Kathrin Rosenfield – Sua pergunta toca numa faceta pouco comentada da obra rosiana. Creio que de fato Rosa trabalhasse num verdadeiro projeto de recriar no imaginário brasileiro esse alicerce de uma reflexão mais profunda sobre os sentimentos – uma contemplação que ampliasse a relação humana com o cosmos, a natureza, a alteridade não-humana. Ele menciona (e às vezes apenas deixa entrever em discretas alusões) seu gosto pelos grandes autores da literatura alemã, e seu gosto lírico tem evidentes afinidades com os românticos. Seu trabalho lírico-contemplativo é notável em todas as obras, e Riobaldo incarna essa veia reflexiva em GSV. Você tem razão – Rosa emula a grande tradição mística que se estende da sensibilidade sismográfica de Hölderlin e Kleist até sua versão contida e moderna na obra de Musil.

Acredito que o projeto de Rosa visava transformar a afetividade transbordante em sentimentos culturalmente plasmados. Refiro-me, é claro, ao problema da famosa cordialidade que Sérgio Buarque e Gilberto Freyre descrevem como instável, oscilante, volúvel. Sim, provavelmente Rosa soubesse que esse projeto, dado o retardo, o colocava no lugar de um Dom Quixote (voltarei a essa consciência que Rosa mostra em Ave Palavra no final da minha fala). Para criar um foco emocional e espiritual, era necessário criar figuras plausíveis da seriedade, da sinceridade – transformando uma ironia que era simultaneamente cortante e velada em humor amável. Significava também diminuir o peso de gestos ligados à cordialidade: diminuir a deliberada volubilidade (ironia e sarcasmo como redoma ou defesa na qual a culpa e a vergonha não nos atingem); diminuir a malandragem (do valor que a burla das regras tem na cultura brasileira – e, por coincidência, também na austríaca). Em suma: tratava-se de tapar as lacunas da superficialidade afetiva que se percebe, por exemplo, através da ironia de Machado. Não esqueçamos que a seriedade afetiva é em grande parte produto da invenção literária. Os escritores e poetas na Alemanha refletiam muito sobre o valor da música, do som, do ritmo, da energia passional ritmada enquanto molde para as ideias. As grandes ideias históricas pareciam (para Schiller ou Kleist) surgir de invenções poéticas, isto é, de trocas sociais num outro nível imaginário. Até a Revolução Francesa parecia ser um efeito ‘performativo’ de uma súbita invenção retórica baseada num sentimento puro (Kleist: Über die allmähliche Bildung der Gedanken beim Reden).

No Brasil, a expressão literária de sentimentos interiorizados não conheceu a mesma elaboração nem a diferenciação em gêneros. E a exploração de afetos autênticos, de sentimentos oblíquos, de ambiguidades e de perversões, a experimentação com as mil dobras secretas da alma que vemos na Europa desde Montaigne e Shakespeare , começa muito tardiamente na literatura brasileira. Aliás, para falar em atraso: também a Alemanha se esforça tardiamente em recuperar essas facetas imaginárias ao longo do século XIX; e a literatura brasileira (com poucas exceções – penso em Gregório de Matos ou Alencar , Senhora) começa essa recuperação do imaginário poético apenas no século XX. Oswald de Andrade , Clarice , Osman Lins , Mário de Andrade e muitos outros se debruçam sobre a conquista das formas, especificamente brasileiras, inspirando-se nas vanguardas europeias (cf. por exemplo, a reinvenção do Cântico dos Cânticos por E. Renan no século XIX e sua retomada por Oswald).

IHU On-Line – A propósito, qual a relação de Rosa com o modernismo brasileiro? Em que sentido ele se aproxima e se afasta desta corrente estética?

Kathrin Rosenfield – Por que Rosa resiste à tentação modernista (que sentimos presente no seu Magma)? Provavelmente porque sentia que a essas experimentações faltava o ‘chão’ da tradição, a firmeza de formas integradas em sentimentos compartilhados. Sem gestos, hábitos, modos e estilos vividos por todos, as paródias modernas passam despercebidas. Mário de Andrade é um bom exemplo dessas paródias que passam em brancas nuvens. Amar, verbo intransitivo toca na diferença abissal que separa a sensibilidade amorosa e estética alemã e a brasileira. A mistura de sentimentos eróticos e de admiração pela natureza da Fräulein não é decodificada pelo adolescente paulista (que desconhece totalmente essa complexidade sentimental). Mas eu descobri que os leitores de Mário de Andrade tampouco identificam as atitudes totalmente diversas (brasileira e alemã) diante da natureza, do corpo físico, do corpo feminino.

Eis a razão (ou uma das razões) pelas quais Rosa faz um desvio ou, por assim dizer, “retroavança”: combina certos pendores vanguardistas ou modernistas com hábitos e convenções mais antigas e mais autenticamente brasileiras. Primeiro, a oralidade e o contar casos é uma dessas tradições fortes da convivência real do Brasil (não sei se os brasileiros se dão conta do quanto o parar-para-conversar é específico daqui, faz parte da cordialidade, da mistura do público e do privado). Segundo, o trabalho artístico da ingenuidade e da sinceridade que se enquadra com muita dificuldade nos interesses da sociedade civil, embora a sociabilidade dependa desse sentimento puro (esse tópico emerge na Europa com Dostoievski e Kafka – O Idiota, O Foguista). Sem a ancoragem artística desse sentimento cândido, os jogos paródicos modernos perdem sua força. Um terceiro alicerce para a tradição imaginária brasileira seria a recuperação artística da musicalidade das falas regionais e das suas saborosas metáforas concretas (lembrei recentemente que Rosa gostava muito do Simplizissimus, romance heroico-picaresco do século XVII que tem uma série de temas em comum com GSV).

Mas jamais Rosa inspira-se somente na literatura universal ou nas vanguardas. Com faro seguro, ele recorre à mediação de regionalistas como Simões Lopes Neto . O grande contista sul-rio-grandense recuperava não somente os temas do patrimônio rural. Com o folclore, ele recria o gesto vocal do peão ‘guasca’ e o faz expressar, nas suas próprias palavras, seu amor profundo pelo pampa. Mas a recriação das cadências típicas em primeira pessoa evita qualquer saudosismo folclórico, altera o tom e o imaginário convencional – sem falar da singular profundidade psicológica (emprestada à narrativa francesa) que eleva os causos gaúchos à grande literatura.

Basta pensarmos na ira da Tudinha em O Negro Bonifácio e já entrevemos o modelo para a complexidade assombrosa da figura de Diadorim em Grande sertão: veredas. O que diferencia Rosa de S.L. Neto é a renúncia ao estereótipo mítico e heroico. Onde Simões Lopes Neto idealiza a imagem mítica do gaúcho (seguindo a imagem criada por Euclides da Cunha – a do cavaleiro aprumado, rijo, limpo, cuja postura e roupa ‘corretíssimas’ dão um ar festivo ao próprio trabalho), Rosa explora o traçado oblíquo, sinuoso e sofrido do sertanejo. Num primeiro momento, apoia-se na paradigmática figura do sertanejo cunhada por Euclides.

IHU On-Line – A propósito, o que se sabe e se pode dizer sobre a recepção de Guimarães Rosa no exterior, especialmente no mundo anglo-saxão?

Kathrin Rosenfield – Os tradutores na Alemanha e nos EUA fizeram grande esforço para tornar a magnífica obra de Rosa conhecida no exterior. As traduções dos anos 1950 e 1960 optaram por “facilitar” o acesso ao estilo então considerado “difícil”. Com isso, caíram na armadilha da narrativa épica, perdendo a complexidade estilística hipermoderna e seu potencial de irradiação polissêmica, as múltiplas alusões que conectam as histórias do sertão com o mundo do pensamento (filosófico, humanístico, político e social). Isso ficou muito claro nos últimos anos, quando tradutores experientes começaram a se debruçar sobre a avaliação crítica da recepção tradutória, fazendo o balanço dos méritos e das fraquezas desse trabalho. Por isso, tradutores como Zilly e a australiana Alison Entrekin assumiram a tarefa hercúlea de retraduzir e recriar as artes rosianas em alemão e em inglês.

IHU On-Line – Como em Grande sertão: veredas uma espécie de metafísica sertaneja toma corpo literário nas ações dos personagens?

Kathrin Rosenfield – Já falei antes do ardiloso entrelaçamento da tradição regional com a criatividade vanguardista que rompe com as convenções. Rosa retoma as formas do passado sem saudades mistificadoras – e isso vale também para a sua metafísica. Creio que Rosa soubesse que não havia mais tempo para os ‘cantos de cisne’ literários ou espirituais: Cervantes tivera ainda tempo de se debruçar longamente sobre o outono da Idade Média, Dostoievski, já muito menos tempo para processar o luto do cristianismo ortodoxo e da velha Rússia – mas Rosa... já escrevia atropelado pela era da comunicação. Mesmo assim, ele confere – in extremis – às trajetórias riobaldianas pelo sertão a aura profunda e metafísica que lembra as narrativas de Dostoievski – de novo, um modelo do século anterior. Rosa nunca escondeu suas inspirações retroativas em Goethe , Dostoievski e tantos outros autores do século XIX, nem seus profundos pendores religiosos (ou teríamos que dizer pan-teístas e místico-estéticos?). Grande sertão: veredas tem nítidas afinidades com Os Demônios do autor russo: em ambos romances encontramos – metamorfoseados, é claro – os temas das desordens familiares e sociais de dois grandes países caóticos: países que padecem das tensões entre a desmedida dos poderosos, da corrupção crassa, do excesso de submissão dos humildes. A velha Rússia, como o Brasil, era um país em rápida transformação, nos quais a ciência e a cultura importadas prometeram fazer mais estragos do que avanços benéficos – sem falarmos do perigo da revolta dos novos ideólogos (Belinsky , Turgueniev , Bakounine temidos por Dostoievski como demônios). Também Rosa teme a irrupção de reformas e modernizações que destroem as paisagens e os hábitos, as cidades e as esperanças, as convicções e os valores antigos, sem poder substituir-lhes outros.

Seria esse temor retrógrado, reacionário? Cabe compreendê-lo de modo estético, como preocupação com o déficit imaginário que se avoluma quando mudanças demasiadamente bruscas impedem o luto e a elaboração do que precisa ser perdido e reformado.

Certamente não é por acaso que Rosa escolhe o mundo sertanejo, o arcaico tema do pacto e do amor como veículos para a fusão dos elementos vivos da cultura brasileira. Ele procura fundir o velho e o novo imaginário do Brasil num mito acre-doce da ambivalência, da cordialidade. Assim, ele recorre à poesia popular e aos cantos da natureza, à tradição de contistas populares e eruditos, mas, também, à sobriedade da reflexão ensaística de Euclides da Cunha , de Gilberto Freire, S.B. de Holanda, Paulo Prado , O. Vianna . É nestes ensaios que surge o novo mito, acre-doce, da complexidade do Brasil (o caráter melancólico-saudoso com sua oscilação entre volúpia e violência; a cordialidade com suas cumplicidades malignas que permeiam todos os estratos da sociedade; o forte imaginário do clã parental e eleitoral etc.).

IHU On-Line – De que maneira a obra de Guimarães Rosa reproduz, por meio de sua linguagem e personagens, uma dimensão imanente das pessoas do interior do Brasil ao mesmo tempo que produz uma outra dimensão transcendente sobre o que é ser brasileiro?

Kathrin Rosenfield – Tem um ditado antigo que diz “Le style c’est l’homme” – o estilo expressa e mostra a essência e o modo de ser da pessoa. A arte rosiana captou esse estilo profundo, secreto do ser brasileiro. Sei que essa afirmação soa anacrônica nos dias de hoje. Mas, por mais que a palavra alada de Buffon seja um ditado questionável na modernidade e na pós-modernidade – já que o século passado nos ensinou como o ser humano é maleável, assumindo papéis e máscaras –, existe no fundo dessas modulações uma constância. As revelações a respeito da exploração dos metadados (nossos cliques no computador e no celular) o mostra.

IHU On-Line – De que forma Guimarães Rosa, em sua obra, concilia paradoxos como lirismo e reflexão, regionalismo e universalismo, ingenuidade e erudição, concreto e metafísico? Como isso também é capaz de ilustrar as contradições próprias de ser brasileiro?

Kathrin Rosenfield – Acho que já abordei essa questão nas respostas anteriores. De forma que posso resumir aqui apontando primeiro a maestria estilística e imaginária de Rosa que combina tonalidades da lírica grega e romântica com formas ensaísticas e reflexivas (a dicção sóbria das reflexões nos ensaios de Montaigne e a forma romanesca-e-ensaística de Musil). A resposta à próxima pergunta aborda em que medida isso toca nas fissuras e no dilaceramento existencial brasileiro.

IHU On-Line – Qual a importância de ler e reler a obra de Guimarães Rosa no Brasil atual?

Kathrin Rosenfield – Rosa foi muito consciente da dificuldade das mudanças rápidas. Numa época quando o Brasil tentava mudar tudo do dia para a noite – construindo Brasília, destruindo as paisagens urbanas com um modernismo mal compreendido, importando ideias de engajamento social e político sem raízes nos costumes locais – Rosa falava das crenças profundas, da ingenuidade e das superstições do sertão. Quando as gerações dos anos 1970 e 1980 valorizavam a dimensão sociocrítica das obras de Machado e de Rosa – muitas vezes explicitando e colocando sob a lente de aumento alusões muito tênues – eu via muito mais as cautelosas ambiguidades de Machado e de Rosa. Suas vozes sempre cordiais, seu comportamento sempre adaptado aos costumes de um país profundamente conservador, ritualístico e classista me falaram do perigoso apego a crenças e convicções que podem parecer anacrônicas para intelectuais formados nas universidades da Sorbonne, Stanford ou Columbia. Mas o moto “viver é perigoso” de Riobaldo, e as aventuras – sempre maravilhosas-e-assombrosas – de todos os personagens rosianos mostram que Rosa estava muito consciente do potencial arcaico do seu país e da humanidade como um todo. Acredito que o momento atual mostra a lucidez de Rosa e de seus personagens que sempre temem o ressurgimento de conflitos violentos ancorados na mentalidade brasileira: nas suas velhas estruturas patriarcais, religiões integralistas, intolerância social, racial e de gênero e a polarização política. ■

Leia mais

- Leitura de Guimarães Rosa ensina a viver sentindo e dando sentido à vida. Entrevista especial com Kathrin Rosenfield, publicada na revista IHU On-Line, nº 503, de 24-4-2017.

- A exploração do conhecimento racional até seu limite. Entrevista especial com Kathrin Rosenfield, publicada na revista IHU On-Line, nº 475, de 19-10-2015.

- Sertão é do tamanho do mundo. 50 anos da obra de João Guimarães Rosa. Revista IHU On-Line, número 178, de 2-5-2006.

- Machado de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil. Revista IHU On-Line, número 275.

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