Edição 536 | 13 Mai 2019

De influenciadores digitais a ativistas de sofá: a mobilização juvenil em rede

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João Vitor Santos

Amanda Antunes observa como as novas gerações se apropriam do ambiente digital e, a partir dele, constituem representações identitárias e formas de atuação no mundo

Num mundo em que somos atravessados pelas novas tecnologias, compreender as juventudes passa necessariamente também por compreender como essas novas gerações se reconfiguram a partir dos usos do ambiente virtual. É nesse sentido que a professora e pesquisadora Amanda Antunes passa a observar os jovens nas redes. “Já é fato inquestionável a presença e importância da tecnologia e, em especial, das redes sociais digitais na vida dos jovens transformando seus meios de comunicação, mas também, para muito além disso, suas formas de construir representações, negociar identidades, elaborar apresentações de si, consumir e compartilhar seus valores e perspectivas da realidade social”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

É nessa perspectiva que Amanda analisa os chamados influenciadores digitais, aqueles jovens que fazem uso das redes para orientar uma espécie de legião de seguidores. Para ela, são como “uma referência identitária que se concretiza nas práticas de consumo, o influenciador ocupa o papel de ‘formador de preferência’, uma espécie de ‘guia confiável’ que influencia o consumo”. Mas, segundo a pesquisadora, é reducionismo associar essa influência apenas a novas lógicas de consumo. “A influência não se dá apenas em níveis amplos de audiência. Com a fragmentação da cultura, é favorecida a ascensão de personalidades ‘menores’, mas que exercem o mesmo – quem sabe mais efetivo – impacto”, acrescenta.

Assim, podemos perceber não só influência de consumo, mas também de comportamento e até de posicionamento e visão de mundo. Numa rápida análise, pode-se pensar que os jovens de hoje transpõem para a rede, por exemplo, as formas de ativismo que há algumas décadas se dava na rua. É o que alguns chamam de “ativismo de sofá”. “Ao mesmo tempo em que se deposita na juventude contemporânea uma responsabilidade e expectativa de construção do futuro, ela é frequentemente apontada como desinteressada e sem potencial de atuação relevante”, pois, supõe-se, não estaria na efetividade do mundo concreto. Mas Amanda tensiona essa visão: “as manifestações e os acalorados protestos dos últimos anos já mostraram que os jovens estão se mobilizando através das suas redes digitais, resultando numa atuação que vai muito além do ‘ativismo de sofá’”. “São novas maneiras de constituir a realidade que se vive e as experiências vividas, estando nelas, o jovem, marcadamente inserido na imagem e no contexto desta, elaborando com isso um processo dinâmico de construção de si significativamente tecido em conformidade com o outro”, completa.

Amanda Almeida Antunes é publicitária, fotógrafa, professora e pesquisadora. Possui mestrado e doutorado em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC Rio. Também é integrante do Grupo de Pesquisa Juventudes cariocas, suas culturas e representações midiáticas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreender as novas gerações desde suas representações midiáticas?
Amanda Antunes – Uma forma de entender os jovens contemporâneos é analisar suas próprias construções das experiências juvenis – cotidianas e de sociabilidade – e, principalmente, os processos interativos e de produção de significados que daí decorrem. Já é fato inquestionável a presença e importância da tecnologia e, em especial, das redes sociais digitais na vida dos jovens transformando seus meios de comunicação, mas também, para muito além disso, suas formas de construir representações, negociar identidades, elaborar apresentações de si, consumir e compartilhar seus valores e perspectivas da realidade social que lhes cerca e constrói a visão de mundo.

E tudo isso se dá no âmbito das práticas cotidianas, incluindo as mais corriqueiras que passam por estudo, trabalho, lazer ou diversão. A vida cotidiana é, sem dúvida, como já afirmou José Machado Pais (1993, p. 336) em seu livro Culturas Juvenis , “espaço privilegiado de afirmação social dos jovens”.

É através de um grande arsenal de possibilidades, recursos e ferramentas que os jovens vêm experimentando novas formas de se comunicar, se apresentar, socializar e reafirmar seu lugar no mundo “adulto”, no limite, modos de ser.

O cotidiano apresentado e representado nas mais variadas plataformas que propiciam a distribuição e o compartilhamento de inúmeras formas de produção de conteúdo é, sem dúvida, o melhor lugar onde podemos encontrar materiais que revelam identidades e representações no universo dos jovens. Nesses espaços as práticas comunicacionais se estabelecem e os códigos partilhados produzem significados, construindo, com isso, um processo interacional que acaba por fixar as representações da juventude, a partir de um repertório próprio negociado entre pares, que circula nas mídias digitais.

Desconstrução da homogeneidade

De maneira imbricada, representações midiáticas e representações construídas e negociadas pelos próprios jovens contribuem para a construção e a conformação de um imaginário sobre o universo juvenil que, quando confrontadas, ajuda-nos a compreender inúmeros aspectos sobre as gerações que se apresentam. No entanto, é importante levar em consideração que os jovens não podem ser enquadrados em uma categoria única e homogênea. Estamos falando de juventudes, com toda a pluralidade que lhe é peculiar.

A questão se amplia se entendemos a ideia de juventude numa perspectiva mais cultural, como muitos autores defendem (VAN GENNEP (1977), TURNER (1974), MORIN (2006), VELHO (1998), PAIS (1993), ROCHA & PEREIRA (2009)), ou seja, não se limita a uma faixa etária bem definida. Pelo contrário, trata-se de um fenômeno social constituído de certos valores peculiares que orientam as práticas e o ideal de vida de indivíduos de idades distintas, o que baliza um modo de ser, a partir de um certo estatuto de jovialidade, de qualquer faixa etária.

IHU On-Line – De que forma se constituem os digital influencers? Em que medida podemos considerar essa uma nova forma de liderança e referencialidade entre jovens?
Amanda Antunes – Antes, é preciso que se destaque: não estudo o universo infantil. Este tem peculiaridades que precisam ser consideradas, não podendo enquadrar as crianças na mesma categoria de adolescentes ou jovens na análise de suas práticas. De forma bastante ampla, um influenciador é, tal como o nome já sugere, o indivíduo que possui grande potencial de influência sobre os outros, de ideias, práticas, estilo de vida e (também) consumo.

Em tempos recentes, cresce de maneira significativa o número de sujeitos produzindo conteúdo nos sites de redes sociais galgando visibilidade. Quando conseguem alcançar relativa relevância, normalmente expressa pela quantidade de seguidores, tais sujeitos passam a ser reconhecidos e chamados de influenciadores digitais. São considerados assim porque as pessoas levam em consideração as suas opiniões, na hora de formar a sua, consultando e acompanhando suas exposições nas redes. Assim temos os blogueiros, twitters, youtubers, instagramers, entre outros, com forte presença nas diferentes plataformas digitais.

Eles se constituem a partir de um capital que constroem de visibilidade, mas que não se limita ao potencial de conhecimento – ser conhecido –, mas sim de reconhecimento dentro do grupo do qual faz parte ou, em outros termos, de seus seguidores, por isso o número de seguidores (ou audiência) não é o que faz desse sujeito efetivamente interessante, mas sua capacidade ou potencialidade de envolver e engajar outros indivíduos. Em geral, são pessoas que mobilizam outras em suas causas, naquilo que se envolvem, de questões sociais amplas, a mera sugestão de consumo; mas também no que são (identidade) e representam (referência).

Veracidade da narrativa do influenciador

A potencialidade de engajar os outros está ancorada na noção de veracidade da narrativa do influenciador e na representatividade dentro do grupo social do qual faz parte. O que faz dele atraente aos outros consumidores é a característica autoral e humanizada das suas mensagens (ou que, pelo menos, assim se pareça), despertando o interesse do público em geral e também de marcas.

Ser influenciador independe da chancela de marcas ou da grande mídia, mas quando isso acontece, o status se firma, principalmente quando se trata de uma grande marca ou produtor midiático, uma vez que acaba por possibilitar participação em outros projetos. Dessa forma, tem-se uma identidade e estilo de vida adequados para os fins do consumo, que se tornam um referencial e parâmetro para aqueles que o seguem.

Entendido como uma referência identitária que se concretiza nas práticas de consumo, o influenciador ocupa o papel de "formador de preferência", como chama Chris Anderson (2006), uma espécie de "guia confiável" que influencia o consumo. Mas a influência não se dá apenas em níveis amplos de audiência. Com a fragmentação da cultura, é favorecida a ascensão de personalidades “menores”, mas que exercem o mesmo – quem sabe mais efetivo – impacto.

IHU On-Line – Como a senhora analisa a relação que se estabelece entre os digital influencers e seu público? Quais as potencialidades e os riscos dessa relação?
Amanda Antunes – Nesse contexto das interações com os seguidores, o influenciador representa a possibilidade de seus seguidores de se ancorarem numa identidade acessível e estilo de vida destacável, que é legitimado pelo reconhecimento dos outros e pela marca com a qual se associa. Aqui se entende a base qualitativa que conforma a relação entre influenciador e seguidores.

O que se espera é, fazendo um paralelo com a ideia de Marcel Mauss (2015 [1950]), a “imitação prestigiosa”, na perspectiva das ações mais amplas ou propriamente do consumo. Por ocupar lugar de notoriedade, distinção e, portanto, prestígio, o influenciador se torna “imitável”, em outros termos objeto de atenção, certa admiração e imitação, no fim, de influência. A maior potencialidade percebida é a possibilidade de trazer para o foco das atenções, para os espaços de mídia e visibilidade, as causas, os valores e o que mais se faz relevante para grupos específicos, sobretudo aqueles que não possuem significativa representatividade nesses mesmos espaços. Causas feministas ou problemáticas sociais são alguns exemplos.

Influência se dá quando há transformação do outro

Valores, posicionamento político, causas defendidas, entre outros, são aspectos que ficaram bastante evidentes, nas minhas pesquisas, como extremamente relevantes aos influenciadores investigados. A influência se manifesta no impacto das transformações do outro, que podem ser das mais profundas do ser, mas também em uma complementaridade de coisas, incluindo as interferências em decisões de consumo de produtos. De alguma maneira, tais questões estão interligadas, uma vez que o consumo, enquanto fenômeno social, é um responsável por estruturar valores e práticas que orientam as ações e relações sociais, desenhando mapas culturais e identidade, como já explorou amplamente Everardo Rocha (2006).

Um bom exemplo é o caso de influenciadores que manifestam suas sugestões de marcas e produtos que reforçam sua consciência social. Nestes casos, conseguimos identificar neles “subjetividades sociocentradas”, como chama Pais (2007). São subjetividades que reforçam reflexivamente a consciência de si equacionada aos ideais coletivos. As diferentes formas de engajamento (político ou em ações sociais, por exemplo), ou mesmo a maneira de fazer proveito de oportunidades de realização de projetos que não se findam apenas no interesse individual, mas buscam um ganho comum, são exemplos de manifestações de uma “subjetividade sociocentrada”. Um comportamento pertinente a alguns influenciadores, mas que não se aplica à totalidade.

Riscos possíveis

Com relação a possíveis riscos, eu poderia apontar dois que percebo como mais problemáticos. Um deles se refere à falta de (ou uma ainda precária) regulamentação dessas práticas. Deve haver sempre a consciência da grande responsabilidade do enunciador que ocupa esse papel, principalmente em se tratando do universo da internet, onde circulam pessoas dos mais variados tipos, como, por exemplo, crianças que estão expostas a toda sorte de consumo de conteúdos diversos, categoria em que já é uma realidade a adoração de influenciadores. Como diferenciar o que é escolha de consumo de fato do sujeito ou publicização paga de produtos é uma das principais preocupações. Um dos casos mais emblemáticos que temos é o da Gabriela Pugliesi, amplamente acusada e questionada por seu comportamento como influenciadora de atividades físicas sem formação adequada. Toda influência pode se dar para o bem ou para o mal. No menor dos efeitos, um processo de influência sem um propósito maior, mas sim um objetivo voltado para o mero consumo, torna vazia a prática de tal sujeito e não favorece a construção de valores e práticas que lutam em favor da coletividade. Esta seria, portanto, uma segunda questão de risco ou de fator negativo do fenômeno.

A falta de um propósito é mecanismo de acusação associada ao típico influenciador digital, que no senso comum já está sendo percebido como aquele que possui uma “fama localizada” (ROJEK, 2008) na internet, sem um fundamento relevante em suas ações, mas tão somente porque tornou-se conhecido por ser conhecido, que recebe constantemente produtos de diferentes marcas e os publica nas redes sociais digitais. Isso é muito similar ao processo de fabricação de celebridades na mídia, também frequentemente acusadas de fúteis e inúteis.

Um poder relativo

Mas é preciso também relativizar esse “poder” dos influenciadores. A um único, não se pode atribuir tamanho poder. Na contemporaneidade, com o mundo fragmentado que experimentamos, no qual informações e possibilidades distintas se expandem com o crescimento das conexões, ampliam-se também as múltiplas ofertas de referencialidades, ou seja, de influência. Dentro do próprio universo dos influenciadores, mas também para além dele, onde temos as celebridades, ídolos, personalidades, e ainda os círculos de contato de cada indivíduo, ou seja, família, amigos, professores etc., são variadas e múltiplas as possibilidades de influência.

IHU On-Line – A senhora pesquisa a juventude no contexto carioca. Quem são os jovens do Rio de Janeiro? Que culturas os representam? E que relações podemos estabelecer entre as representações dos jovens das regiões periféricas com as das regiões como a zona sul carioca?
Amanda Antunes – Não é possível estabelecer uma única representação para entender as juventudes cariocas. Os jovens são plurais em essência. Nas minhas pesquisas, diante dos influenciadores e projetos investigados, a relação com a cidade foi algo que se fez bastante evidente.

Nas representações construídas de um “carioca típico”, este é um sujeito que tem íntima relação com o clima e o verão, as praias, gosta de andar na areia, se bronzear e pedalar no calçadão, bate palma para o pôr do sol em Ipanema ou do alto da pedra do Arpoador, joga vôlei de praia no fim de tarde, tem o corpo sarado, magro e bronzeado, e gosta de usar vestido ou bermuda e chinelos – ou, melhor, sandália Havaianas, que não é qualquer sandália de dedo –, é referência de uma moda com estilo versátil, criativo e despojado e tem um espírito festivo, que sabe aproveitar a vida. Podemos dizer que o jeito de ser carioca simboliza um estilo de vida desejado e incorporado por pessoas naturais da cidade e/ou moradores de diferentes localidades.

Muitas marcas já exploraram intensamente este estereótipo, utilizando, inclusive, influenciadores (cariocas típicos) em suas estratégias comunicacionais. No entanto, em ações mais recentes, observamos um movimento na direção de possíveis transformações na (ou ao menos ampliação da) representação, e como consequência da representatividade, do sujeito típico carioca, principalmente no que tange à sua relação com os espaços que ocupa e circula na cidade. Tais ações, sem dúvida, refletem um contexto atual de disputas e reivindicações por diversidade na comunicação das marcas, o que inclui uma valorização do subúrbio, da periferia ou, de uma maneira mais geral, daqueles lugares e pessoas que sempre ocuparam zonas de silenciamento em diferentes esferas (gênero, racial, de classe, entre outras).

O “novo carioca”

O imaginário de um “novo carioca” parece começar a se constituir. Alguém para quem não há barreiras de circular pela cidade, que percorre trajetórias autônomas, de bairros tidos como ricos às favelas, numa tentativa de eliminar as fronteiras territoriais e simbólicas construídas e tão reforçadas por gerações anteriores. Um bom exemplo é o caso das “it-girls das comunidades”, jovens moradoras de favelas ou bairros periféricos que através de produções próprias nos sites de redes sociais conquistaram um público de seguidores e se tornaram referência de estilo e comportamento para além das redes e também do lugar onde vivem.

A urgência em perceber o Rio de Janeiro, e o carioca, em representações para além da Zona Sul, é uma inquietação presente na contemporaneidade.

IHU On-Line – Como se dá a relação de jovens com a publicidade e a questão do consumo? Essas novas gerações são capazes de conceber novas formas de consumo? Por quê?
Amanda Antunes – Nos ambientes digitais, onde encontramos com bastante facilidade os jovens em interação, as relações com os objetos e a prática do consumo ganham aspectos peculiares, distintos daqueles que orientam o mundo concreto. As possibilidades de afiliação simbólica entre consumidores e marcas nos sites de redes sociais podem se dar de inúmeras maneiras, não se limitando ao âmbito da compra, o que reconfigura a relação dos sujeitos com marcas, não apenas no que se refere ao ato de consumo em si, mas principalmente aos processos de escolha e de construções identitárias e representações.

O fenômeno de influenciadores trouxe à tona novas formas de se consumir, tanto o próprio sujeito em questão – quero dizer: o conteúdo sobre si que é amplamente exposto e consumido nas redes sociais digitais –, quanto as marcas e produtos a eles associados e os valores e significados que estão envolvidos e se sedimentam a partir dos vínculos que influenciadores estabelecem com tais marcas e produtos.

Um ponto bastante significativo é o fato de jovens estarem mais interessados no que um amigo que está próximo – ou alguém que acompanha e tem a sensação de proximidade – tem a dizer, está fazendo de interessante, a música que gosta de ouvir… do que o universo simbólico que envolve, por exemplo, artistas e personalidades públicas e midiáticas. É, sem dúvida, uma quebra de paradigma quando comparado a gerações anteriores. De forma mais recorrente em tempos recentes, os influenciadores estão ocupando esse espaço de referencialidade.

O influenciador como amigo

Isso se torna possível, porque influenciadores trazem um aspecto de proximidade e autenticidade que são basilares na relação de influência, sobretudo graças ao caráter peculiar da internet, mais precisamente das redes sociais digitais, que propiciam a sensação de intimidade e facilitam a identificação por parte de quem segue. Entre estes, uma das justificativas mais recorrentes das razões de seguir e levar em consideração o que diz um influenciador é o fato de perceberem nele uma pessoa “real”, autêntica, “gente como a gente”, com quem se identificam e se inspiram, por isso acabam por ocupar um significativo papel de referencialidade.

Aqui há um interessante contraponto com as celebridades e personalidades famosas que, com frequência, até tempos recentes ocuparam de forma exclusiva esse lugar, inclusive orientando práticas de consumo. É o velho formato publicitário que aposta no endosso de produtos pela figura célebre: o testemunhal. A legitimidade passa, então, a outras mãos. Há uma tendência a se considerar muito mais as opiniões dos sujeitos comuns, em detrimento do que apresenta, principalmente no cerne da narrativa publicitária, um ator, uma personalidade ou uma celebridade midiática.

O testemunho a respeito do produto nas expressões do influenciador fica imbricada nas suas ações e práticas cotidianas, reveladas dentro de um estilo de vida pertinente a suas ações. O clássico jargão “eu recomendo” se apresenta de forma naturalizada nas publicações.

Consciência publicitária

Outro fator interessante de se observar nas publicações dos influenciadores é a existência de uma certa consciência publicitária, sobretudo nas postagens que apresentam produtos, mesmo quando perfeitamente inseridos no contexto do seu dia a dia. A narrativa é bastante similar à da publicidade. Quando promovem o produto, há ali um apelo do testemunho na primeira pessoa, que sustenta a objetificação de um estilo de vida atraente e “vendável”, pela via do consumo.

Isso faz dessas narrativas, assim como nas narrativas publicitárias, lugar ideal de circulação de imagens ricas de sentido e potencial de influência de consumo. Ao fim e a cabo, são outros personagens ocupando o mesmo papel de celebridades e garotos-propaganda, com as peculiaridades desta prática que a faz diferenciada, mas com bases bastante similares.

IHU On-Line – Recentemente, a adolescente Greta Thunberg ganhou as manchetes de jornais do mundo todo pela forma como, abraçando a luta contra as alterações climáticas, enfrentou o parlamento europeu. E, dentro da realidade brasileira, podemos compreender o ativismo de jovens?
Amanda Antunes – Embora a temática do ativismo de jovens não seja central nos meus estudos, eu posso dizer que, por exemplo, dentre esses sujeitos, que tenho chamado de “comuns-extraordinários”, que se destacam pela sua relevância e papel de referencialidade e influência, a questão da defesa de uma causa ou existência de um propósito é bastante presente e expressamente significativa. Isso fica mais evidente naqueles que o mercado tem chamado de microinfluenciadores, que são pessoas que possuem números mais modestos de seguidores e engajamentos, mas são uma espécie de especialistas ou defensores de pequenas causas e de um propósito maior. Propósito este reconhecido no círculo social do qual o influenciador faz parte e com o qual constrói relação de confiança e proximidade, nos diversos ambientes interacionais que podem não se limitar, nem mesmo se centrar, nas redes digitais.

Na afiliação que o influenciador estabelece com marcas, por exemplo, podemos perceber, em muitos casos, que o vínculo é, na verdade, uma ponte para outros objetivos que vão muito além da relação comercial e mercadológica de propagação ou aquisição de produtos, por exemplo: concretizar projetos pessoais dando visibilidade a pessoas e grupos que não têm representatividade nos conteúdos que circulam nas produções midiáticas e culturais; garantir espaço privilegiado a sujeitos excluídos, como as mulheres, sobretudo no universo das produções culturais; entre outros.

Esse foi o caso do projeto com os “fazedores” da Rider. A marca selecionou alguns produtores com certa relevância em nichos de público do Rio de Janeiro, uma espécie de porta-vozes de alguns movimentos culturais e sociais, que podemos entender como influenciadores, para a cocriação de um festival que envolvia bate-papo, palestras, shows, exibição de filmes e curtas, exposições, workshops, entre outras atividades espalhadas pela zona norte e oeste da cidade. O festival levou, de alguma forma, a marca de cada sujeito de criação, os “fazedores” deste projeto. Uma das participantes, por exemplo, para quem era importante a presença feminina de modo equilibrado em todos os setores do festival, da produção às apresentações – a causa pela qual luta –, conseguiu tirar do papel um projeto de criação de um coletivo e, persuadindo os demais envolvidos, selar um compromisso de trazer mais mulheres para trabalhar junto.

Construtores e ao mesmo tempo desinteressados pelo futuro

Isso se verifica de forma mais recorrente em níveis micros, mas também se reverbera em situações macros, podendo atingir níveis globais, com repercussões amplas. Há um paradoxo interessante aqui no contexto brasileiro. Ao mesmo tempo em que se deposita na juventude contemporânea (não apenas, mas de maneira especial) uma responsabilidade e expectativa de construção do futuro, ela é frequentemente apontada como desinteressada e sem potencial de atuação relevante, sobretudo no contexto de causas e problemáticas sociais e políticas que envolvem os projetos de sociedade que afetam todos os indivíduos. As manifestações e os acalorados protestos dos últimos anos já mostraram que os jovens estão se mobilizando através das suas redes digitais, resultando numa atuação que vai muito além do “ativismo de sofá” – como são recorrentemente acusados.

IHU On-Line – A senhora também se deteve a analisar a selfie. Como compreender a relação desses jovens com a selfie e de que forma essa relação pode nos dar pistas sobre as representações que essas novas gerações constituem?
Amanda Antunes – Sabemos que as imagens possuem grande relevância na cultura juvenil por um lado impondo sua presença através das representações produzidas e reproduzidas pela mídia, especialmente na publicidade, e por outro (não necessariamente em oposição e conflito) estabelecendo a maneira como os jovens se exibem, apresentam, comunicam e socializam. Neste processo, inclui-se a prática de selfie, registrada, postada e compartilhada na internet, que pode ser entendida como um recurso visual inserido nas atividades mais corriqueiras através do qual os jovens vêm experimentando modos de se apresentar, pertencer e ser, em constante negociação social entre si e com os outros, os adultos.

A prática é, notadamente, uma versão contemporânea de produção e exposição de autorretrato, em tempos de tecnologia digital e redes sociais on-line, que revela registros pessoais, com a necessária inserção do sujeito fotografado na cena representada, em contextos variados, desde as atividades tidas como “mais sérias”, o estudo ou trabalho, passando pelo lazer e diversão, até as mais corriqueiras como escolher uma roupa para vestir ou, até mesmo, escovar os dentes. A narrativa construída corresponde à vivência cotidiana experimentada nos enunciados publicados pelos jovens. O cotidiano, nesse contexto, adquire um aspecto excêntrico e ficcional, assim como as representações midiáticas que circulam nos mais variados canais de comunicação, inclusive nas interações pessoais, e sedimentam ideias, valores e crenças que compõem o mapa simbólico que estrutura a realidade partilhada.

O cotidiano real apresentado ganha uma dimensão estética bem parecida, em muitos casos, com editoriais de moda, cenas de filmes ou campanhas publicitárias. E esse universo imagético de selfies produz o paradoxo das experiências comuns extraordinárias (ou seja: escolher uma roupa é digno de ser espetacularizado) e, ainda, das experiências excepcionais corriqueiras (em outras palavras: tal espetáculo de cenas cotidianas tornou-se comum). O corriqueiro tornou-se suficientemente especial para ser explorado tanto na publicidade quanto nas narrativas de si construídas pelos próprios jovens.

Assim, entendo que selfie é uma prática de exposição de fragmentos instantâneos que compõem um mosaico do sujeito que se apresenta inserido no quadro da imagem, através de representações submetidas à avaliação do outro, já que é para ser vista, por ser compartilhada. Nas selfies encontramos aparência, estilo, gostos, atividades, lugares, afeições, objetos…

Formação individual e existência social

Não podemos esquecer que para os jovens, em especial, a coerência com o grupo e o pertencimento ao mesmo são essenciais para a formação individual e existência social. É neste sentido que as ferramentas de interação disponibilizadas na internet e, de modo especial, a prática de selfie, oferecem oportunidades de vínculos cruciais à juventude, que se concretizam nos significados produzidos e compartilhados nas imagens e nas interações que ocorrem a partir das mesmas. Podemos dizer que uma das motivações está na necessidade de conexão com os amigos e o desejo de obter o importante feedback que alimenta as reavaliações constantes de si, dentro da perspectiva processual da identidade, que irão garantir, em paralelo, a segurança ontológica e integração social.

Além disso, a prática de selfie está diretamente atrelada ao fenômeno do consumo, uma vez que marcas e produtos colaboram na confecção das narrativas na rede. E, como sabemos, os objetos de consumo são artefatos nas negociações identitárias. Há, portanto, uma apropriação de produtos e marcas, e os conceitos que neles estão embutidos, para o processo de construção simbólica do jovem na rede, servindo também como elemento subsidiário para as interações sociais que ocorrem nesses ambientes, através de curtidas, comentários e outros vínculos.

São novas maneiras de constituir a realidade que se vive e as experiências vividas, estando nelas, o jovem, marcadamente inserido na imagem e no contexto desta, elaborando com isso um processo dinâmico de construção de si significativamente tecido em conformidade com o outro. Desse modo, as interações, propiciadas pelas exposições de si, fazem com que a vida cotidiana ganhe significação e o sujeito sentido e existência social.■

Referências

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MORIN, Edgard. Cultura de massas do século XX: o espírito do tempo II: necrose. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
PAIS, José Machado. Cotidiano e Reflexividade. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 98, p. 23-46, jan./abr. 2007.
______, José Machado. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993.
ROCHA, Everardo. Coisas estranhas, coisas banais: notas para uma reflexão sobre o consumo. In: ROCHA, Everardo; ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; EUGENIO, Fernanda. (Org.) Comunicação, consumo e espaço urbano: novas sensibilidades nas culturas jovens. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Mauad Ed., 2006. p. 15-34.
ROCHA, Everardo, PEREIRA, Cláudia. Juventude e consumo: um estudo sobre comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2009.
ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1977.
VELHO, Gilberto. Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

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