Edição 536 | 13 Mai 2019

O adultocentrismo que silencia, apaga e flagela o jovem

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João Vitor Santos

Miriam Abramovay chama atenção para a necessidade de mobilizar os adolescentes à participação desde a perspectiva deles. Do contrário, é reiterar e aumentar as distâncias

Ser adolescente nunca foi fácil. Mas ser jovem no nosso tempo é ainda ter de lidar com um mundo em transformação, adaptar-se a ele, sem a certeza de que essa adaptação assegurará sobrevivência. Afinal, como destaca a professora e pesquisadora Miriam Abramovay, sequer se sabe se haverá trabalho por mais que se aposte em estudos. Entretanto, ela reconhece que os mais novos têm uma potência, uma alegria resistente. “Eles têm essa vibração, essa possibilidade de encontrar coisas novas também. Se por um lado eles são muito descrentes dessa sociedade em vivemos, por outro lado eles inventam”, pontua, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

O problema é que as transformações de nosso tempo não asseguram uma vida estável nem para adultos. Ao invés de nos inspirarmos e construirmos alternativas a partir das experiências das novas gerações, acabamos criando muros pela imposição de lógicas que nem dão mais conta do mundo contemporâneo. Um exemplo é a escola que concebemos. “Na verdade, não se deixa que essa cultura juvenil se estabeleça dentro da escola”, aponta Miriam. “Eles são muito críticos ao que acontece dentro das escolas. E muito críticos porque eles não têm espaço”, completa.

Assim, na escola se repete uma lógica social que Miriam chama de adultocentrismo, quando “toda cultura, tudo que se pensa, tudo que se quer é muito ligado ao que são os adultos”. O resultado nos adolescentes causa surpresa: suicídio e automutilação. “Isso foi algo completamente novo, que não estava nos nossos roteiros de entrevistas, mas apareceu. E apareceu por parte deles”, destaca. “Percebemos, inclusive, muita tristeza e necessidade de falar, porque eles não têm com quem falar”, acrescenta. E alerta: “quando perguntávamos por que fazem isso, eles dizem: ‘é uma forma de a gente não morrer. É uma forma de sentir que estamos nesse mundo’. Precisamos prestar mais atenção neles. É realmente impressionante e muito triste”.

Miriam Abramovay possui graduação em Sociologia e em Ciência da Educação pela Université de Paris VIII, mestrado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutorado em Ciências da Educação pelo Université Lumieèe Lyon 2, na França - École Doctorale EPIC - Education Psychologie Information et Communication. É pesquisadora, coordenadora da Área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais - Flacso-Brasil e professora da Universidade Católica de Brasília.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios para compreender os adolescentes e os jovens de nosso tempo?
Miriam Abramovay – Há sempre muitas mudanças em cada geração, e há muita dificuldade por parte dos adultos justamente porque eles são muito adultocêntricos, ou seja, toda cultura, tudo que se pensa, tudo que se quer é muito ligado ao que são os adultos. E cada geração apresenta características diferentes: nós tivemos uma geração que lutou contra a ditadura, depois tivemos uma geração muito mais voltada à questão da participação política, depois uma geração hippie, mas essas coisas não são opostas.

O que percebemos, a partir de vários estudos sobre juventudes, é que os jovens que participavam politicamente não participavam dos movimentos sociais. E nós vimos, durante trabalhos que fizemos, que esses jovens têm muitas facetas, podem participar de diferentes grupos, podem trabalhar em diferentes temas. Uma das características dos jovens é que eles têm uma maleabilidade muito grande. Recentemente, saiu uma pesquisa grande sobre os jovens dos tempos atuais que foi feita em vários países da América Latina e Europa que revela que eles também têm características diferentes, são mais descrentes na política e no governo.

Assim, vimos que os jovens foram muito criticados por serem mais voltados à sua vida profissional, ao seu futuro, ou, podemos dizer, são mais individualistas. Mas mesmo assim, acho que essa característica de viverem em grupo, pincipalmente os adolescentes, de viverem com adrenalina, continua permeando várias gerações. Existe, no caso do Brasil, uma situação social e política muito complicada que faz com que esses meninos e essas meninas fiquem muito descrentes. É uma situação social, econômica, cultural e de poucas possibilidades de abertura para esses jovens.

Resistência e vibração

Mas, por outro lado, eles têm essa vibração, essa possibilidade de encontrar coisas novas também. Se por um lado eles são muito descrentes dessa sociedade em que vivemos, por outro lado eles inventam. São os que mais estão conectados, os que mais estão pensando novas profissões que não se pensava há dez anos, há cinco ou mesmo há três anos. Também são os que mais pensam possibilidades e saídas dessa situação tão ruim e tão complicada que nós estamos vivendo.

Esta característica da juventude permeia as várias gerações: a possibilidade de invenção, de criatividade, de conexão com o mundo. Aliás, essa forma de conexão mudou, eles têm conexão com tudo nesse momento, eles sabem de tudo e, muitas vezes, muito mais que os adultos.

IHU On-Line – Como essas novas gerações apreendem o papel da escola?
Miriam Abramovay – A escola é um dos temas mais difíceis porque, em geral, eles são muito críticos ao que acontece dentro das escolas. E são muito críticos porque eles não têm espaço. Tudo isso que falamos, toda essa cultura juvenil, essa cultura que deveria entrar de fora para dentro, não acontece nas escolas, pelo contrário. Historicamente os jovens e adolescentes são muito críticos em relação à escola. Talvez, no dia a dia, eles nem percebam essa crítica que fazem à escola, pois o que acabam fazendo é reclamando, abandonando, repetindo de ano e toda uma atitude de não participação dentro da escola, o que leva a situações de violência, de abandono e repetência.

Nós vivemos falando da qualidade de ensino, fazemos todo tipo de testes dentro das escolas, mas não temos ideia da questão do clima escolar, que é uma das questões tão importantes para a qualidade do ensino quanto aquilo que está se ensinando. Nós temos uma proposta de participação dos jovens nas escolas e temos muita dificuldade que essa proposta seja incorporada pelas secretarias de Educação e sem falar pelo MEC, porque não se fala muito nesse tema. Se fala muito na questão de ensino e aprendizagem e se fala pouco na questão do clima escolar, que é tão importante.

Portanto, os jovens têm uma visão crítica, mas não estão organizados e não sabem reivindicar e, ainda, são muito reprimidos quando falam aquilo que querem. Na verdade, não se deixa que essa cultura juvenil se estabeleça dentro da escola. O que, para esses jovens, se torna muito difícil.

IHU On-Line – Numa de suas entrevistas, a senhora disse que as gerações mudam, se transformam, mas que a escola não acompanha esse processo. Por que não acompanha? Seria mais uma manifestação desse adultocentrismo?
Miriam Abramovay – A escola é engessada, a cultura escolar é engessada, ela não consegue acompanhar o que está acontecendo e não consegue mudar. Muito porque a formação dos professores também está muito ligada somente à questão da aprendizagem. E é por isso que é tão difícil mudar, pois há 50 anos ou mais se fala em mudanças na escola, se teve a questão da pedagogia institucional, entre outras tantas propostas interessantes. Isso misturado não só com a questão da aprendizagem, mas também da psicanálise, de levar isso para dentro da escola. Porém, nada disso é ensinado para os professores, nada disso é discutido. Então, se fala muito e há muitos anos, mas na verdade nada acontece.

IHU On-Line – Como deveria ser o papel da escola na conexão desses jovens com o mundo?
Miriam Abramovay – Nesse programa que a gente propõe há uma mudança na escola e que incorpora a participação dos jovens. Isso para que possam discutir e participar desse cotidiano da escola e possam também propor mudanças que poderiam acontecer no cotidiano das escolas. É algo que absolutamente não acontece, os jovens não têm nenhuma possibilidade, nenhum caminho, nenhuma abertura para que isso possa acontecer.

É difícil porque a escola é de não sei quantos séculos atrás e esses meninos estão vivendo aqui e agora, e isso gera uma dificuldade muito grande. Quando se pega figuras do começo do século XX na escola e se vê aqueles meninos todos – aliás, muito mais meninos do que meninas – de terno e o professor também de terno, eu penso: será que mudou tanto assim? Quer dizer, mudou a forma, mas há muita dificuldade de mudar o conteúdo dessa ideia de escola, de se pensar de uma forma diferente, de pensar em alunos e alunas, adolescentes e jovens participantes, de adolescentes e jovens vivendo o século XXI. Não queremos negar a cultura da humanidade, mas, além disso, é preciso se adaptar, é preciso repensar o que é essa escola.

IHU On-Line – De que forma as novas gerações se relacionam com a ideia de trabalho? Em que medida associam essa ideia a uma perspectiva de realização no futuro, na vida adulta?
Miriam Abramovay – O trabalho é inegável, todo mundo sabe que tem que trabalhar, não tem como viver sem. E esse é um rito de passagem, eles passam de adolescentes e jovens para jovens adultos quando começam a trabalhar e assumem outras responsabilidades na sociedade. Acontece que há muitas formas de trabalhar e hoje eles têm que procurar muitas saídas, porque o mercado formal não incorpora essas pessoas. Aliás, não incorpora nem quem fez universidade, imagine aqueles que ficaram no meio do caminho e que são muitos.

Os jovens têm que se reinventar, têm que reinventar formas de se inserir e atuar na sociedade. Meu escritório é na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e vejo os jovens vendendo de tudo que você pode imaginar, estão ali tentando a sua subsistência. Mas há também trabalhos que eles podem fazer com mais imaginação, trabalhos de grupo, startups etc. Enfim, eles, nessa sociedade, vão ter que se reinventar e isso é duro, porque as coisas estão mudando. Por exemplo, quando se fazia uma faculdade, se sabia que iria achar um trabalho. Já hoje isso não é tão claro para eles, o que causa também muita angústia.

Essa ideia de que eles não têm necessidades e pensamentos no futuro não é certa. Eles pensam no futuro e pensam num futuro sempre querendo uma profissão interessante. Talvez não tenham isso muito claro, mas têm uma perspectiva de futuro, sim, e querem trabalhar e fazer coisas interessantes, sejam culturais ou que for. Essa sociedade, muitas vezes, não é tão amigável a essas juventudes.

IHU On-Line – De que forma os jovens e adolescentes de hoje encaram a violência? E como esse estado de violência impacta o desenvolvimento desse jovem?
Miriam Abramovay – O que temos visto é que o medo é um sentimento que permeia toda a sociedade. Evidentemente, viver com medo, Bauman já dizia, é algo que traz consequências . E eles têm medo que roubem o celular, têm medo de sair na rua, medo de que roubem o tênis e isso efetivamente é uma questão. Por outro lado, podemos observar que esses jovens têm a capacidade de viver o aqui e o agora. Acredito que, por isso, passam um pouco por cima desse medo.

Quando falamos sobre violência com eles e perguntamos o que é violência e como veem isso, eles falam do medo, do tráfico de drogas, falam das violências que têm dentro das comunidades, das brigas de traficantes, do que eles sofrem, de roubo de celular, as meninas falam muito da questão da violência sexual. Enfim, falam de tudo isso. Por outro lado, a sensação que nós temos é a de que estão vivendo o aqui e o agora, conseguem não viver paranoicos em função disso. Aliás, não são só os jovens, todos têm que viver assim porque, senão, não se sai mais na rua.

Mas, realmente, acho que eles ainda têm uma capacidade maior de gerar felicidade depois de uma infelicidade. Nós fazemos muita pesquisa nas escolas e vemos que isso permeia a vida deles, a vida nas comunidades e a violência que existe dentro da escola também. Falam muito sobre isso de uma forma contundente, detalham o que sentem e o que pensam sobre essa questão dentro e fora da escola. Aliás, dentro da escola não é o mesmo tipo de violência.

IHU On-Line – Justamente, que violência é essa dentro da escola? É esse medo social que transborda para dentro da escola ou é outro?
Miriam Abramovay – Pode ser a violência social que transborda para a escola, mas a escola também produz suas próprias violências. Existem microviolências cotidianas, das relações sociais. Quando se fala do clima escolar, estamos tratando de uma violência aluno-aluno professor-aluno, funcionários, diretor, uma microviolência do cotidiano que vai corroendo o clima escolar.

Não se pensa nisso de uma forma séria e não se faz alguma coisa sobre isso. É por esse motivo que nosso programa se chama convivência escolar, para que esses meninos, pelo menos no ambiente escolar, possam viver de uma forma mais efetiva.

IHU On-Line – E para superar essa violência? O caminho é mesmo chamando o jovem à participação?
Miriam Abramovay – Pode não acabar com a violência, mas fica mais claro se você fizer um diagnóstico do que está acontecendo nas escolas e a partir daí traçar um plano de ação com esses estudantes. Se começarem a participar de forma efetiva, evidentemente vai haver uma mudança no clima escolar.

E podem ser coisas mínimas. Em nossos trabalhos, não pense que as realidades mudaram revolucionariamente toda a estrutura da escola. Não é isso não. Mas com algumas ações se pode fazer com que todo mundo seja mais feliz na escola, um lugar em que, tantas vezes, há muita infelicidade.

IHU On-Line – Gostaria que a senhora trouxesse exemplos, falasse um pouco mais dessas transformações.
Miriam Abramovay – Nós montamos o programa e fizemos uma experiência com o Ministério da Educação em sete estados, depois tivemos a oportunidade de fazer a mesma coisa com o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, mas ficamos frustrados pelo tempo, pois nas duas experiências deveríamos trabalhar dois anos e acabamos somente em um. Ainda assim, pudemos ver experiências interessantes, com mudanças pequenas. Por exemplo: um diretor que não conversava com nenhum aluno e havia regras muito rígidas na escola. Isso é uma questão do clima escolar, pois muitas vezes as regras não são fruto de um consenso. Ou melhor: elas nunca são, são obrigatórias. E isso pode incomodar e incomodar muito.

Veja: um diretor diz que não se pode usar jeans escuro, só pode usar jeans azul-claro, ou então só pode usar o tênis preto. Tem muita gente que não tem tênis preto, e muita gente tem somente o jeans escuro. Isso, em algumas escolas, era motivo de conflito com o diretor. O que a gente conseguiu foi levar essa demanda e discutir com esse diretor e com todos na escola sobre qual deveria ser a regra para uso do uniforme. Eles podiam brigar por outras coisas, mas a intenção era fazer com que o conflito por causa do uniforme acabasse.

O fato de os jovens poderem participar e ter espaço na escola é importante. Nós trabalhamos, por exemplo, com educomunicação. Além da nossa pesquisa, eles também pesquisavam a sua própria realidade e usavam esse material como forma de comunicação. Eles fizeram programas de rádio durante os recreios, fizeram cartazes, peças de teatro, dança, e tudo isso fez com que o clima escolar mudasse. Creio que pequenas coisas podem ser pensadas para que se efetive uma mudança nesse chamado clima escolar.

IHU On-Line – A senhora vem destacando que essa falta de olhar, de buscar uma compatibilidade com o jovem dentro da escola acaba gerando violência. Agora, isso também não ocorre no ambiente social? Os jovens tidos como rebeldes não seriam na verdade incompreendidos e oprimidos por lógicas sociais “adultocêntricas”?
Miriam Abramovay – Quando se fala que o jovem é violento, é preciso saber que isso não se dá sempre obrigatoriamente. Quando se fala de jovem, criamos uma fantasia de que todo jovem é igual. E não é assim, eles são diferentes assim como os adultos não são iguais. Por isso que se fala em juventudes e adolescências, no plural. Existem jovens diferentes, com personalidades diferentes, com vontades e desejos diferentes. Eles têm em comum a questão de que vivem em grupo, que é uma característica juvenil da adolescência. A alegria é outro ponto importante em comum, assim como de procurar viver o perigo da adrenalina. São coisas que têm em comum, mas o restante pode ser completamente diferente.

Essa visão que a sociedade tem de que os jovens são violentos é real, como você coloca. Mas há jovens violentos e outros não, como há adultos. Evidentemente, quando se olham as estatísticas, percebe-se que os que mais morrem são do sexo masculino e são jovens. E aí se faz uma generalização de que os jovens são violentos. Esses jovens são muito pobres, vivem em favelas, mas existem jovens de classe média, existem jovens de classe alta. Também existem jovens que estão no grupo do tráfico, jovens que estão em grupos que roubam, mas existem outros jovens que estão em grupos de teatro, no cinema, na praça, em lugar de jovem.

Veja como mesmo grupos que não são de classe média estão em grupos como os de surfe, por exemplo. É o caso do Rio de Janeiro, nas favelas que estão perto das praias da cidade. E isso é muito impressionante. Mas, enfim, existem grupos de todos os tipos entre esses jovens. E os adultos não conseguem ver isso, entendem de uma forma prejudicial e negativa.

IHU On-Line – Em uma das suas pesquisas mais recentes, a senhora se deteve no papel da Educação para jovens afetados pela violência no Ceará e no Rio Grande do Sul. Em que medida esses dois estados representam dois extremos da realidade de jovens no Brasil? E o que mais lhe chamou atenção nesses estudos?
Miriam Abramovay – Pois é, não representam essa diferença que a gente esperava. E isso quer dizer que eles têm mais as características em comum do que as características de diferença. Encontramos coisas muito semelhantes nos dois lugares, inclusive na questão que tratei recentemente em outra entrevista sobre a automutilação e o suicídio. Para nosso espanto, encontramos as duas questões de forma muito semelhante nos dois lugares, o que nos impressionou muito.

Além disso, há outras características semelhantes como quando falam da escola, das comunidades. Claro que no que falam das cidades há diferenças, viver no Ceará é diferente de viver no Rio Grande do Sul, inclusive pelo clima, mas em outras questões existem muitas semelhanças e muito mais do que nós esperávamos.

IHU On-Line – Como compreender essas questões de suicídio e automutilação nesse contexto das juventudes?
Miriam Abramovay – Isso foi algo completamente novo, que não estava nos nossos roteiros de entrevistas, mas apareceu. E apareceu por parte deles, foi um tema espontâneo. Começaram a falar disso, nós ficamos muito espantados e, claro, a partir de então abrimos espaço para todos falarem. E isso aparece de forma muito semelhante nas duas capitais e apareceu sucessivamente nos grupos focais que fizemos.

Percebemos, inclusive, muita tristeza e necessidade de falar, porque eles não têm com quem falar sobre isso. Era uma coisa muito aflitiva para nós porque, quando se faz grupo focal, se conversa com esses meninos e essas meninas por duas horas, depois, se houver necessidade, o grupo se repete por mais duas horas, mas fica só nisso. Não se dá continuidade nessa relação com eles. Por isso, quando aparecem problemas como esses é muito aflitivo. Podemos avisar a escola, mas é só isso.

Por isso, acho que um tema importante que está sendo discutido é o da rede de proteção. Ou seja, a escola não vai dar conta de tudo e nem tem que dar conta de tudo, mas ela tem que estar atenta porque existe, na assistência social e na saúde, possibilidade para que se forme uma rede de proteção e que se atenda, até de forma coletiva, e se fale no tema. Não adianta um dia só para falar do tema. Isso tem que ser algo combinado com outros setores para que se dê continuidade.

IHU On-Line – Mas como o suicídio e a automutilação aparecem na conversa e na realidade desses jovens e adolescentes?
Miriam Abramovay – Tem um autor, David Le Breton , que fala muito sobre adolescente e corpo, que tem um livro chamado Antropologia da dor . Ele fala que se cortar e se automutilar é uma forma de não se suicidar, é uma forma desses jovens sentirem a dor e a dor de estarem nesse mundo. Ou seja, quando se automutilam eles sentem que eles existem e é uma forma de evitar o suicídio.

É realmente impressionante, porque há muitos e muitos que se automutilam. E não é uma questão de internet ou uma questão de moda. Claro, um diz para o outro, evidentemente, que de algum lugar eles descobriram isso. Inclusive, nos depoimentos, quando perguntávamos por que fazem isso, eles dizem: “é uma forma de a gente não morrer. É uma forma de sentir que estamos nesse mundo”.

IHU On-Line – Podemos pensar que a sociedade não os compreende até o ponto de eles terem de fazer isso para se sentirem parte de uma sociedade?
Miriam Abramovay – Exatamente. E a sociedade é a família, pois os outros amigos da mesma idade não dão conta porque vivem os mesmos problemas. Então eles estão nesse mundo, mas estão mal nesse mundo. Precisamos prestar mais atenção neles. É realmente impressionante e muito triste.

Não sei se já perceberam, mas, às vezes, faz o maior calor e esses meninos estão andando de casaco. A gente pensa, por que se tapar, mas aquilo ali é uma forma de tapar mesmo, de ninguém ver, esconder e se esconder. Tudo isso a escola não vai resolver, mas precisa prestar atenção. Por que, senão, quem vai prestar atenção?

O desespero na escuta do desconhecido
Eu sempre fico impressionada com a questão dos grupos focais, porque quando fazemos grupo focal chamamos oito, dez pessoas, e a gente não conhece esses meninos, não temos relações com eles, nunca os vimos, e eles falam tudo. É impressionante como eles falam, como eles contam tudo, como é a escola, como é a casa, como é a comunidade, como são eles e tudo mais.

IHU On-Line – Isso revela uma falta de escuta?
Miriam Abramovay – Sim, é a falta de escuta. Mesmo entre eles – aliás, isso em Porto Alegre me impressionou muito – estão rindo e tudo, mas quando você entra num grupo focal e eles começam a falar, você percebe que eles não são sequer amigos. Isso também é importante porque eles têm que viver em grupo; jovens são gregários, por isso têm que viver em grupo. Se aquelas pessoas que estão lá não se consideram nem amigos é porque alguma coisa errada está acontecendo no mundo.■

Leia mais
- "Os jovens mudaram, e a escola não acompanhou". Entrevista com Miriam Abramovay, reproduzida nas Notícias do Dia de 17-03-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Sete reflexões para a educação após o ataque à escola em Suzano. Entrevista com Miriam Abramovay, reproduzida nas Notícias do Dia de 21-03-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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