Edição 535 | 29 Abril 2019

“O Brasil sempre enfatizou a internacionalização de Jerusalém”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Luiz Antônio Araujo

Norma Breda dos Santos avalia a reedição na diplomacia brasileira de uma política a favor de Israel

Apontada como um movimento inédito na diplomacia brasileira, a virada pró-Israel do governo de Jair Bolsonaro segue uma longa tradição de aproximações e afastamentos entre os dois países. A professora associada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília - UNB Norma Breda dos Santos, doutora em Relações Internacionais pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales de Genebra, Suíça, e uma das principais pesquisadoras das relações entre Brasil e Israel, lembra que o posicionamento brasileiro costuma ter como pano de fundo o conflito israelense-palestino, para o qual o Brasil chegou a se propor como mediador durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A pesquisadora prepara-se para começar uma pesquisa de pós-doutorado sobre duas décadas críticas para os laços brasileiro-israelenses, que vão da Crise de Suez, em 1956, ao voto brasileiro na Organização das Nações Unidas - ONU em favor da polêmica resolução que classificava o sionismo como racismo, em 1975. Breda dos Santos recorda que o Brasil sempre se pronunciou a favor dos processos de paz no Oriente Médio, chegando a comandar missões de paz e segurança na região.

Norma Breda dos Santos é formada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Relações Internacionais - Institut universitaire de hautes études internationales, atualmente é professora associada no Instituto de Relações Internacionais (Irel), da UNB. Em 2000, Breda dos Santos organizou a coletânea Brasil e Israel: diplomacia e sociedade (Brasília: EdUnB, 2000), na qual diversos autores faziam um balanço de 52 anos de relações bilaterais.

A entrevista é do jornalista Luiz Antônio Araujo e foi cedida à IHU On-Line.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O fato de o presidente Jair Bolsonaro ter demonstrado um alinhamento tão automático a Israel tem algum efeito sobre a posição da diplomacia brasileira como um todo?

Norma Breda dos Santos – Com relação ao governo Bolsonaro, creio que ainda é cedo para saber quais os efeitos do que você qualifica como um alinhamento automático com Israel. E penso também que vale a pena lembrar que o Brasil enviou contingentes militares durante dez anos à missão de paz estabelecida pela ONU após a Crise de Suez , em 1956. Essa missão ficou estacionada na Península do Sinai, separando egípcios e israelenses. O Batalhão de Suez deu uma importante contribuição à paz entre Israel e os países árabes vizinhos e sua memória tem sido honrada pelos brasileiros. Desde 2011, a Marinha do Brasil comanda uma força-tarefa marítima da Força Interina das Nações Unidas no Líbano - Unifil, criada pela ONU. Essa força-tarefa monitora o litoral libanês e visa à manutenção da segurança na região. Mais um exemplo do comprometimento do Brasil com a ONU e a manutenção da paz. Espero que o Brasil mantenha esse comprometimento.

IHU On-Line – Uma das grandes preocupações da diplomacia brasileira em relação à região desde os anos 1940 foi o status de Jerusalém. Isso tinha a ver com o fato de ser uma questão particularmente delicada para outros países de maioria católica e para o Vaticano?

Breda dos Santos – Os diplomatas e os analistas de política internacional em geral costumam afirmar que o direito internacional é mais importante para os países de menor poder relativo no sistema internacional. Isso porque, com menos recursos materiais, como poderio bélico, as regras estabelecidas internacionalmente são fundamentais para salvaguardar seus direitos e interesses. A resolução da ONU que aprovou o Plano de Partilha da Palestina em 1947 inclui o estatuto internacional de Jerusalém, que é um cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos.

O Brasil sempre enfatizou o dever de todos os membros da ONU de respeitar a internacionalização de Jerusalém. Embora a posição do Vaticano e a sensibilidade dos brasileiros católicos não devam ser desconsideradas, trata-se de um tema que deve ser pensado sobretudo a partir dos compromissos jurídicos assumidos na ONU pelos Estados.

IHU On-Line – Em Brasil-Israel: diplomacia e sociedade (2000), a senhora afirmou que a aprovação da Partilha da Palestina pela Assembleia Geral da ONU em 29 de novembro de 1947 deveu-se mais à ação do então embaixador do Brasil, Oswaldo Aranha , que presidiu a reunião, do que às instruções do Itamaraty. Isso significa que não havia consenso na representação brasileira sobre a questão?

Breda dos Santos – Como mostraram os pesquisadores Tullo Vigevani e Alberto Kleinas , a percepção dos diplomatas brasileiros que estavam em Nova York e eram liderados por Oswaldo Aranha era bastante diferente da percepção de quem estava no Rio de Janeiro. E talvez seja mais justo especificar que era diferente da percepção do chefe do Itamaraty na época, Raul Fernandes . Curiosamente, Fernandes havia sido delegado do Brasil na Liga das Nações (organismo multilateral que antecedeu à ONU), onde tinha uma excelente reputação. Apesar de ter familiaridade com o ambiente de uma organização internacional, seu forte anticomunismo fazia com que não compreendesse que, na ONU, as duas superpotências podiam concordar pragmaticamente sobre vários temas. Uma iniciativa soviética, ou que beneficiasse topicamente os soviéticos, poderia ser apoiada pelos Estados Unidos, e vice-versa. Mas Raul Fernandes era terminantemente contra o Brasil votar “a favor da União Soviética”. Era uma situação curiosa.

IHU On-Line – Apenas a título de exemplo, o Plano de Partilha da Palestina foi apoiado tanto pelos Estados Unidos quanto pela União Soviética, desafiando o horizonte binário de Fernandes. A senhora afirma que as relações brasileiro-israelenses podem ser divididas em vários períodos. Poderia enumerá-los?

Breda dos Santos – Na verdade, essa periodização das relações brasileiro-israelenses tem em conta o conflito e os processos negociadores de Israel com os países árabes vizinhos ou com os palestinos, dependendo do momento. Apesar das várias imprecisões e do reducionismo em que se incorre no esforço de periodizar, creio que é possível dividir esses 70 anos em cinco períodos.

No primeiro, que vai de 1947 até meados da década de 1970, a diplomacia brasileira apoiou soluções conciliatórias e buscou o que o Itamaraty denominou de “equidistância” nos conflitos trazidos à Organização das Nações Unidas entre Israel e os países árabes. No segundo, de meados nos anos 1970 até a segunda metade dos anos 1980, o Brasil deu maior apoio à causa palestina, que ganhou então muita visibilidade internacional, e Israel passou a ter menor importância relativa para o Brasil. No terceiro período, os Estados Unidos assumiram grande protagonismo no processo de paz de Israel com os países vizinhos árabes e com os palestinos, processo ao qual o Brasil sempre deu seu apoio.

O quarto período coincide com os dois mandatos do presidente Lula, de 2003 a 2010, com uma diplomacia de perfil alto. No quinto, tem-se um movimento em sentido inverso: uma diplomacia de perfil baixo. Abrange os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer.

IHU On-Line – Quais foram as características de cada uma dessas etapas?

Breda dos Santos – É importante ter em mente os princípios seguidos historicamente pelo Itamaraty, como o respeito ao direito internacional, princípios que se combinam com doses variáveis de realismo. Evidentemente, as mudanças ocorridas no sistema internacional sempre tiveram peso, assim como o relacionamento do Brasil com os Estados Unidos. Nos dois primeiros períodos, ou seja, de 1947 a 1980, a ONU foi um fórum muito importante para Israel.

De 1947 até meados da década de 1970, a ausência de interesses imediatos do Brasil no Oriente Médio o leva a apoiar posições conciliatórias nas diversas questões trazidas a debate na ONU envolvendo Israel e os países árabes. É nesse período que o Plano de Partilha da Palestina é aprovado na Assembleia Geral presidida por Osvaldo Aranha.

No segundo período, a partir de meados da década de 1970, a diplomacia brasileira na ONU foi mais pragmática, o que pode ser compreendido pelo projeto desenvolvimentista do Brasil e a sua vulnerabilidade no plano energético. O governo brasileiro passou a ter uma percepção mais instrumental da ONU, onde os países em desenvolvimento passaram a ter um peso muito maior na Assembleia Geral e, entre eles, os países exportadores de petróleo. É importante lembrar que depois da Guerra dos Seis Dias (1967) , a política israelense de não sair dos territórios ocupados fez com que Israel se isolasse cada vez mais internacionalmente.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, havia uma grande simpatia da comunidade internacional com relação à criação do Estado israelense. Depois de 1967, o apoio da comunidade internacional a Israel diminuiu significativamente, e a causa do povo palestino ganhou visibilidade e maior apoio internacional. O terceiro período vai da metade dos anos 1980 até 2003. A ONU passou a ter menor peso com relação ao conflito entre Israel e os países árabes e os palestinos. O Brasil voltava à democracia, e a Guerra Fria terminava. Os Estados Unidos voltaram a ter grande proeminência no mundo e continuaram a liderar os processos de paz de Israel com os países árabes e com os palestinos. Basicamente, o Brasil sempre se pronunciou a favor desses processos de paz.

O quarto período, que abrange os dois mandatos do presidente Lula, foi marcado pelo proativismo e provável voluntarismo do governo brasileiro, que buscou exercer o papel de mediador no conflito israelense-palestino. O período seguinte, que abrange os governos de Dilma Rousseff e de Michel Temer, como mencionado, é o de uma diplomacia brasileira de perfil baixo.

IHU On-Line – Um aspecto pouco conhecido da política brasileira em relação à região é o fato de o Brasil ter se abstido em relação à admissão de Israel na ONU, em 1948. Isso significou uma reviravolta em relação a 1947?

Breda dos Santos – Não. Ao contrário: essa abstenção era consistente com o voto favorável dado pelo Brasil à Resolução 181 da Assembleia Geral que havia aprovado o Plano de Partilha e a internacionalização de Jerusalém. Ao final da guerra de 1948-1949, Israel havia ocupado o lado ocidental de Jerusalém, enquanto a Jordânia (então Transjordânia) ocupava o oriental. O Brasil preocupava-se com a implementação da Resolução 181 e das demais resoluções relativas à internacionalização de Jerusalém. Além disso, o Brasil demonstrava grande preocupação com o destino dos refugiados palestinos.

IHU On-Line – Depois de 1947, um dos momentos de maior proeminência do Brasil na ONU foi o voto, em 1975, em favor da definição do sionismo como racismo. Qual foi a motivação desse voto e como repercutiu na posição brasileira em relação ao Oriente Médio?

Breda dos Santos – O voto brasileiro a favor dessa resolução deve ser compreendido no contexto das relações do Brasil com os Estados Unidos. Durante o governo de Ernesto Geisel , foram feitos esforços para a construção de uma agenda positiva entre o Brasil e os Estados Unidos. Antonio Francisco Azeredo da Silveira chefiava o Itamaraty, e Henry Kissinger , o Departamento de Estado. O Brasil teria seu status de potência reconhecido pelos Estados Unidos. O que os documentos mostram é que Geisel estava disposto a mudar a posição brasileira para abstenção quando a resolução fosse votada no plenário da Assembleia Geral.

Entretanto, houve uma forte reação dos Estados Unidos ao voto brasileiro dado ao projeto de resolução sobre sionismo e racismo, que se tornou pública. Como conta o embaixador Vasco Mariz em suas memórias, os jornais brasileiros e norte-americanos noticiaram que, a pedido ou por pressão norte-americana, o Brasil mudaria o seu voto. Geisel e Azeredo da Silveira passaram, então, a considerar praticamente impossível recuar e mudar o voto brasileiro, o que impediria o diálogo equilibrado com os Estados Unidos. O embaixador Vasco Mariz foi escolhido por Geisel para ocupar a embaixada do Brasil em Tel Aviv, em 1977, onde ficou durante cinco anos. Sua missão principal era explicar aos israelenses o que motivou o voto do Brasil na ONU. Conta Mariz que o ressentimento judaico no Brasil e de Israel era muito grande.

Quando visitou pela primeira vez Moshe Dayan, ministro das Relações Exteriores, explicou-lhe por que não foi possível para o Brasil mudar seu voto. Conta que Dayan ouviu-lhe com muita atenção e disse: “Que pena! Eu entendo a posição do seu presidente e eu teria agido da mesma maneira que ele”.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição