Edição 533 | 01 Abril 2019

O autointeresse não é incompatível com o bem-estar social. Leituras sobre a obra de Adam Smith

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin

Angela Ganem volta ao autor para pensar o indivíduo e o coletivo desde a perspectiva do neoliberalismo

As obras Teoria dos Sentimentos Morais e A Riqueza das Nações, do filósofo e economista britânico Adam Smith, fornecem “pistas teóricas para desconstruir o indivíduo neoliberal egoísta e perverso contemporâneo” e “elementos para a construção de um pacto social ético justo que evite a barbárie anunciada”, diz a pesquisadora Angela Ganem à IHU On-Line. Segundo ela, Smith faz “uma leitura crítica do capitalismo”, compreendendo-o como um “movimento cíclico de desenvolvimento e sujeito a crises”. Embora Smith seja conhecido pela tese de que a riqueza das nações é fruto da atuação de indivíduos motivados por seus próprios interesses, Angela pontua que “a leitura do mercado autorregulável em Smith supõe que sujeitos movidos por interesses privados não egoísticos e não necessariamente incompatíveis com interesses dos outros são viabilizados por uma mão invisível que gera bem-estar social”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Angela explica que alguns autores fizeram leituras reducionistas da obra de Smith e, particularmente entre os teóricos do mercado, ressalta, “o sujeito cortado pela moralidade de Smith é substituído pelo homem econômico racional, egoísta e maximizador”. Nesse sentido, adverte, “a riqueza está associada à escassez e o valor é a utilidade”. Ela exemplifica: “Um século após, em Hayek, sua teoria do mercado sublinha as regras da concorrência e, assentado na teoria evolutiva darwiniana, do sucesso dos mais aptos”.

Entretanto, frisa, “na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith desenvolve o conceito de simpatia e de amor próprio que emergem de relações intersubjetivas. Mas o sujeito simpático smithiano da Teoria dos Sentimentos Morais é o homem prudente da Riqueza das Nações, um sujeito que desenvolve seu amor-próprio dentro destas relações intersubjetivas. Esta é a grande contribuição de Smith para a compreensão do sujeito e dos seus comportamentos, sobretudo vis-à-vis ao sujeito egoísta, autocentrado dos nossos dias, que tem os traços das leituras reducionistas que seus herdeiros fizeram de sua obra”.

A economista proferiu a palestra "A ética e a filosofia moral de Adam Smith face às leituras reducionistas de sua obra", no último dia 27-03, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dentro do V Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia. Acesse o vídeo da conferência. Veja programação completa do Ciclo está disponível.

Angela Ganem possui graduação em Economia pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestrado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutorado em Economia pela Universidade de Paris X. Foi coordenadora da Pós-graduação em Economia da UFF, editora da Revista Econômica e diretora da Escola de Governo da Baixada Fluminense. Foi professora visitante e atualmente é professora colaboradora do Instituto de Economia da UFRJ.

A entrevista foi originalmente publicada nas Notícias do Dia de 27-03-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que consiste a tese do liberalismo econômico de Adam Smith? Por que com essa teoria Smith se tornou uma das principais referências da economia moderna?
Angela Ganem - Penso que só é possível compreender a importância da contribuição de Smith e a solução do mercado como ordem natural no plano mais amplo da história das ideias e da revolução científica moderna dos séculos XVI/XVIII. Neste quadro se deu o mais expressivo movimento antropomórfico registrado na história em que o homem passa a sujeito e objeto do conhecimento. Os filósofos modernos, entre eles Smith, se esforçaram para responder a uma importante questão: como explicar a ordem social sem recorrer à explicação divina? Ou como os homens movidos por suas paixões, ao invés de guerrearem e se destruírem, conseguem viver em sociedade? Os contratualistas responderam a essa questão através da solução do contrato, em que a explicação mais acabada é a de Hobbes. Para os estudiosos da história das ideias do período, a tese explicativa do contrato social de Hobbes teria sido superada pela explicação do mercado de Smith, considerada a palavra final da modernidade. Neste sentido Smith se qualifica entre os grandes sábios modernos, a teoria do mercado se torna a matriz da ordem liberal e a economia política nasce como ciência.

IHU On-Line - Adam Smith é bastante conhecido por sua tese de que a riqueza das nações resulta da atuação de indivíduos que, motivados por seus próprios interesses, promovem o crescimento econômico dos países e leva ao bem-estar da sociedade. Quem são os herdeiros de Smith que reduziram ou ideologizaram a sua teoria?
Angela Ganem - A explicação da ordem social pelo mercado ou pela mão invisível expressa o resultado de uma disputa teórica no seio da economia a partir de Smith e que vem até os nossos dias. Smith funda a economia observando-a tanto pela leitura do mercado como pela ótica da produção, da acumulação e do excedente. Na ótica da produção, a riqueza é gerada pelo trabalho através do excedente ou do mais-valor. Trata-se de uma leitura crítica do capitalismo, que o compreende em movimento cíclico de desenvolvimento e sujeito a crises.

Já a leitura do mercado autorregulável em Smith supõe que sujeitos movidos por interesses privados não egoísticos e não necessariamente incompatíveis com interesses dos outros são viabilizados por uma mão invisível que gera bem-estar social. Ocorre que dentro da trajetória dos teóricos do mercado, o sujeito cortado pela moralidade de Smith é substituído pelo homem econômico racional, egoísta e maximizador, e o bem-estar é traduzido pela noção de equilíbrio geral. A riqueza está associada à escassez e o valor é a utilidade. E um século após, em Hayek, sua teoria do mercado sublinha as regras da concorrência e, assentado na teoria evolutiva darwiniana, do sucesso dos mais aptos.

IHU On-Line - Quais são os problemas filosóficos e econômicos apresentados por Smith em Teoria dos Sentimentos Morais e em A Riqueza das Nações? Como esses problemas se conectam?
Angela Ganem - Não os vejo como problemas, vejo-os como fundamentos de duas obras seminais de Smith. Teoria dos Sentimentos Morais com o fundamento das virtudes, a simpatia no sentido de aprovação e reconhecimento, e A Riqueza das Nações com os interesses privados não necessariamente incompatíveis com o interesse do outro, como ponto de partida de sua explicação para a emergência da ordem do mercado. A dificuldade aparente está em mostrar a rica articulação das duas obras.

IHU On-Line - A senhora argumenta que é preciso analisar as duas obras em conjunto. Quais são os ganhos dessa abordagem?
Angela Ganem - A teoria de Sentimentos Morais é um tratado sobre a moralidade em que Smith escala as virtudes, mostrando o que é bom e deve ser desenvolvido e o que é mau e deve ser descartado, ou seja, aquilo que merece ser aprovado e do que não merece. Existe uma escala de virtudes, da prudência à magnanimidade em que o sujeito que cuida de si e de sua família é um sujeito virtuoso, prudente, e o segundo, que cuida do país, um sujeito magnânimo. O primeiro merece aprovação, o segundo, aplauso. Isto significa que a ética emerge de relações sociais, não é apriorística.

Na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith desenvolve o conceito de simpatia e de amor próprio que emergem de relações intersubjetivas. Mas o sujeito simpático smithiano da Teoria dos Sentimentos Morais é o homem prudente da Riqueza das Nações, um sujeito que desenvolve seu amor-próprio dentro destas relações intersubjetivas. Esta é a grande contribuição de Smith para a compreensão do sujeito e dos seus comportamentos, sobretudo vis-à-vis ao sujeito egoísta, autocentrado dos nossos dias, que tem os traços das leituras reducionistas que seus herdeiros fizeram de sua obra.

IHU On-Line - Quais são, de modo geral, os argumentos daqueles que propõem que as obras sejam analisadas separadamente?
Angela Ganem - Esta discussão diz respeito ao chamado problema Adam Smith inaugurado pela Escola Histórica Alemã no século XIX em que participaram defensores da unidade e os da ruptura da obra. Os defensores da ruptura têm como principal questão fundar a economia como autônoma, livre da moral, o sujeito como um ser isolado movido por interesses egoísticos, e a mão invisível da Riqueza das Nações, um prelúdio da Teoria do Equilíbrio Geral Walrasiana.

IHU On-Line - Qual é a atualidade dessas duas obras e como elas poderiam contribuir para pensar o desenvolvimento da economia e a garantia do bem-estar das sociedades no nosso tempo?
Angela Ganem - O pensamento crítico filosófico e psicanalítico se volta hoje de forma contundente para a compreensão do indivíduo contemporâneo, seus valores, sua ética individualista. O indivíduo egoísta, indiferente ao outro, ou com ódio do outro, expresso na ascensão do nazifascismo nas sociedades contemporâneas é o oposto do sujeito simpático, ético, generoso, ligado ao olhar e ao reconhecimento do outro. Smith não apenas fornece pistas teóricas para desconstruir o indivíduo neoliberal egoísta e perverso contemporâneo como nos dá elementos para a construção de um pacto social ético justo que evite a barbárie anunciada. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição