Edição 533 | 01 Abril 2019

Mais do que construir casas, Brasil precisa democratizar acesso à terra urbanizada

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos e Wagner Fernandes de Azevedo

Para Orlando Alves dos Santos Junior, o problema do déficit de moradia no país é complexo e requer mudanças de concepções que assegurem não só teto, mas modos de vida dignos nas cidades

É preciso reconhecer que, nos últimos dez anos, o programa Minha Casa Minha Vida possibilitou acesso a moradias. Porém, para o professor Orlando Alves dos Santos Junior, esse acesso já se dá num momento de avanço de lógicas privatistas sobre as cidades. É uma lógica histórica, que tem relação com a terra e a propriedade privada, mas que se acentua atualmente. Constroem-se casas, mas dentro da lógica que atende ao capital especulativo do mercado. Por isso, defende que uma política habitacional é algo mais complexo. “Um dos maiores desafios, embora não seja um desafio tão recente assim, é democratizar o acesso à terra urbanizada, bem localizada, com boa infraestrutura, das classes populares”, aponta.

Na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o professor observa que essas perspectivas mercadológicas segregadoras são justamente o que se precisa superar. “Efetivamente, é conseguirmos desenvolver projetos de cidade com maior justiça social, com maior democracia, maior participação, revertendo essa lógica segregacionista e excludente que marca historicamente a construção das cidades no Brasil”, observa. “Não se pode enfrentar o poder do capital imobiliário sem abrir espaços de participação das organizações comunitárias, dos movimentos sociais, das redes e fóruns que estão discutindo as cidades, da academia e das universidades que têm seu papel também nesse debate. Enfim, uma radical democratização da gestão das cidades”, acrescenta.

É nesse particular que os movimentos sociais assumem sua importância. “Ocupações são fundamentais no enfrentamento desse projeto segregador, mas também hoje é muito interessante ver a reivindicação pelo comum”, analisa. Entretanto, para o professor, “desafio é conseguirmos articular esse conjunto de lutas. Estamos num momento muito difícil de inflexão ultraliberal que atinge também os grupos organizados da sociedade, seja pela mercantilização do espaço público, seja pela perseguição, pela coerção. O desafio é pensarmos as produções para particularmente unificar esses conjuntos de lutas num projeto de cidade efetivamente democrática”.

Orlando Alves dos Santos Junior possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestrado e doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Ainda integra o grupo de pesquisadores do projeto Observatório das Metrópoles e também coordena o projeto Rede Nacional de Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Participativos. É autor e organizador de mais de dez livros, entre eles As metrópoles e a questão social brasileira (São Paulo: Revan, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios da sociedade brasileira naquilo que diz respeito ao direito à moradia?
Orlando Alves dos Santos Junior – Um dos maiores desafios, embora não seja um desafio tão recente assim, é democratizar o acesso à terra urbanizada, bem localizada, com boa infraestrutura para as classes populares. Efetivamente, é conseguirmos desenvolver projetos de cidade com maior justiça social, maior democracia, maior participação, revertendo essa lógica segregacionista e excludente que marca historicamente a construção das cidades no Brasil. Esse é o desafio que até hoje não se conseguiu enfrentar adequadamente, pois ainda existe o problema da concentração fundiária. Fala-se muito da concentração fundiária no campo, mas ela existe também nas cidades, o que impede que as classes populares morem em espaços com boa infraestrutura nos grandes centros urbanos.

Se observarmos as grandes cidades brasileiras, perceberemos a presença de enormes vazios urbanos nas áreas bem estruturadas, áreas controladas pelo capital imobiliário. Nesses locais, há grandes proprietários que impedem que essas terras sejam destinadas a projetos de habitação de interesse social. Posso falar do Rio de Janeiro, por exemplo, da Barra da Tijuca, uma região com extensas áreas vazias, mas que não são destinadas para habitações de interesse social. Muito pelo contrário, se constrói um sistema de mobilidade como BRT e se promovem remoções de comunidades de baixa renda da Barra da Tijuca, transferindo essas comunidades para áreas mais distantes. Então, sistemas de mobilidade muito caros são construídos para viabilizar a chegada dessas classes populares para trabalhar e para retornar a suas casas, já que as elites não aceitam a convivência com as classes populares.

Nesse caso, estou falando do Rio de Janeiro, mas posso falar de Cuiabá, onde estive há pouco e também lá é possível presenciar uma cidade com imensos vazios nas áreas centrais. Ao mesmo tempo, há pressão do mercado imobiliário para expandir o perímetro urbano de Cuiabá numa perspectiva especulativa com a terra, de forma a não permitir que as classes populares habitem em espaços bem estruturados das cidades. Esse é um modelo urbano segregacionista que vigora na maior parte das cidades brasileiras. Assim, temos a reprodução de um padrão desigual, marcadamente injusto, que condena as classes populares a viverem em favelas, em áreas ribeirinhas, sem infraestrutura e passíveis de desastres ambientais periódicos, como já vimos acontecer no Brasil.

IHU On-Line – O senhor citou Rio de Janeiro, Cuiabá, mas em que outras cidades e regiões o desafio de promover inclusão socioterritorial ainda é grande? E no que consiste essa inclusão?
Orlando Alves dos Santos Junior – Pois é, citei Rio de Janeiro e Cuiabá, mas poderia ter citado Recife, Natal, Salvador, Porto Alegre, ou qualquer outra grande cidade brasileira marcada por essas fortes desigualdades. Cada uma dessas cidades tem características próprias. Por exemplo, o mercado turístico imobiliário no Nordeste é um agente produtor dessas desigualdades; há o agronegócio atuando em regiões como Cuiabá; há, também, as peculiaridades do mercado imobiliário financeirizado de São Paulo ou Rio de Janeiro.

São particularidades de cada cidade, mas que têm em comum o fato de serem marcadas por esse padrão de urbanização segregador e motivador de desigualdade social. O enfrentamento desse padrão desigual e segregador requer, em primeiro lugar, uma radical democratização da gestão das cidades. Este é um ponto central: não se pode enfrentar o poder do capital imobiliário, o poder das grandes corporações, o poder do agronegócio sem abrir espaços de participação das organizações comunitárias, dos movimentos sociais, das redes e fóruns que estão discutindo as cidades, da academia e das universidades que têm seu papel também nesse debate. Enfim, uma radical democratização da gestão das cidades.

Responsabilidade estatal

Em segundo lugar, o Estado tem uma responsabilidade no enfrentamento desse desafio. Significa que o mercado tem que estar subordinado à regulação pública. O Estado tem o desafio de desmercantilizar a produção da cidade, ou seja, a cidade tem que estar a serviço das pessoas e não dos negócios.

Viver na cidade significa que ela deve estar contemplando as necessidades das pessoas, as necessidades de saneamento, de habitação, de mobilidade, de trabalho, de lazer, de cultura, de saúde. Enfim, as necessidades para as pessoas viverem dignamente na cidade devem estar garantidas pelo Estado e isso implica em desmercantilizar a cidade. Isso significa pensar em instrumentos de regulação do solo urbano, da produção imobiliária, pensar a possibilidade de limitar a propriedade privada nas cidades. Por exemplo, por que uma pessoa pode ser dona de 100 imóveis numa cidade? É preciso limitar essa propriedade que impede que a cidade cumpra seu papel social, implementando políticas que impeçam que um agente tenha poder de controlar o uso do solo.

Também é preciso pensar políticas integradas. Não podemos pensar a política urbana, a questão da moradia, desvinculada do trabalho, desvinculada das políticas de educação, saúde e mobilidade. Não podemos pensar a política de moradia e a política urbana desvinculadas da política agrária e da necessidade de também ter uma política territorial que garanta uma vida de qualidade no campo.

Descentralização de grandes centros

Assim, a reforma agrária e a democratização do acesso à terra rural também é um elemento central não só pensando do ponto de vista do abastecimento da cidade, mas também pensando uma rede integrada de cidades que não seja hiperconcentradora, isto é, que não seja uma estrutura de cidades profundamente concentradas em grandes metrópoles. Desse modo, poderia haver uma rede mais equilibrada.

Isso implica uma política territorial também regional, articulada a essa política territorial local. Ou seja, o enfrentamento desse modelo requer políticas ativas por parte do Estado, associadas a políticas ativas de promoção da função social da cidade, de promoção da função social da propriedade, e associadas a uma profunda democratização da gestão das cidades. A questão da democratização da gestão das cidades é um elemento sem o qual acho impossível enfrentarmos esse modelo segregador de urbanização que está em vigor nas nossas grandes cidades.

IHU On-Line – A partir dessa ideia de omissão do Estado que o senhor tratou, poderia nos dizer como se dá a construção dessas cidades em que não se cumpre a função social da propriedade, da terra?
Orlando Alves dos Santos Junior – Esse processo é decorrente de uma história que é concentradora da terra e está fundada na escravidão, na superexploração da força de trabalho e no poder oligárquico que promoveu uma colonização excludente. Então, temos raízes históricas da concentração da riqueza, da terra. E nunca fizemos uma reforma urbana nem uma reforma agrária que efetivamente democratizassem o acesso à terra e, assim, a riqueza no Brasil. Os avanços que tivemos no Brasil nos últimos anos, com a Constituição de 1988 e, depois, com a instauração do Estatuto das Cidades , foram muito importantes, mas encontram inúmeros bloqueios para de fato serem efetivados.

Os instrumentos previstos no Estatuto das Cidades que deveriam estar a serviço da promoção da função social da cidade apresentam baixa efetividade. A maior parte desses instrumentos não saiu do papel. O principal instrumento que está sendo implementado nas cidades é a operação urbana, que atende aos interesses do mercado. Outros instrumentos, como parcelamento e indicação compulsória, IPTU progressivo, desapropriação com títulos da dívida pública, não estão implementados na maior parte das cidades brasileiras.

E mais do que isso: o Brasil, nos últimos anos, viveu também os efeitos desse movimento de neoliberalização, ou seja, de mercantilização. Estamos vivendo uma situação em que em vez de o Estado estar atuando na desmercantilização das cidades, enfrentando a subordinação da nossa urbanização aos interesses da lógica do mercado, temos o inverso: a mercantilização, um aprofundamento da subordinação do Estado à lógica do mercado.

Competição entre cidades

Posso dar como exemplo não só a difusão das operações urbanas que já caminham nessa direção, mas também das parcerias público-privadas – PPP. E isso num contexto em que se difunde a ideia de que as cidades competem entre si. Competem pelo investimento, pelos capitais, e isso aprofunda essa lógica de subordinação das cidades ao mercado. Se ela tem que competir com cidades vizinhas para atrair investimentos de capitais, então acaba tendo que fazer o que o mercado quer.

Isso acaba, evidentemente, distanciando a cidade das pessoas, pois, em vez de a cidade estar a serviço das pessoas, ela passa cada vez mais a estar a serviço dos negócios, do capital, do mercado. Nós precisamos não de parceria público-privada, mas de uma parceria público-pública em que aquilo que embasa, que motiva a relação entre as cidades não seja a competição, e sim a cooperação. Essa lógica da parceria público-pública romperia com essa diretriz da competitividade e promoveria uma cooperação. Se tem déficit habitacional ou se falta saneamento na cidade vizinha, ou se ela tem carência de investimento em sistemas de mobilidades, as demais cidades deveriam estar solidárias na superação desses problemas, e não competindo.

É inegável que estamos vivendo uma cultura de difusão dos rankings, pela qual se dá essa difusão da lógica da competição. Divulga-se o índice de qualidade de vida e se diz que tal cidade é melhor do que a outra. Ou qualquer um desses rankings que colocam umas cidades em melhores colocações e aponta outras com maiores dificuldades em índices cada vez piores. É como se estivéssemos num campeonato de futebol, mas não é uma partida de futebol. Do outro lado não há um time como adversário, mas pessoas vivendo e que deveriam ter os mesmos direitos de dignidade que qualquer outro cidadão.

Avanços ultraliberais e aumento da desigualdade

Os rankings deveriam estar à disposição de políticas de solidariedade das quais pudéssemos identificar carências e desigualdades para que essas desigualdades fossem solidariamente enfrentadas e todas as cidades pudessem garantir o direito à cidade e qualidade de vida digna àqueles que nela vivem. Temos que enfrentar essa lógica de mercantilização da cidade que está sendo difundida. Há uma inflexão ultraliberal a partir do golpe parlamentar que vivemos no Brasil com o impeachment da Dilma e a presidência de Michel Temer e, agora, com a eleição de Bolsonaro, que aprofunda esses princípios de mercantilização da cidade, que aprofunda também as desigualdades e essa lógica segregadora que nós, historicamente, viemos adotando no Brasil.

Estamos vivendo um momento muito delicado exatamente pelos riscos de aprofundamento dessas desigualdades. Não é sem razão que já estamos vendo o crescimento da informalidade nas ruas e o crescimento da população de rua. Ainda não existem estatísticas sobre isso, mas a experiência de passear pela cidade já evidencia que nos últimos anos houve um brutal crescimento da população em situação de rua. Estou falando das cidades de modo geral, pois isso já é consequência dessa inflexão ultraliberal e da ausência de políticas de integração social que possam enfrentar esse modelo segregador.

IHU On-Line – Gostaria de retomar os últimos dez anos, quando os megaeventos traziam a perspectiva de que haveria mudanças e transformações nas cidades brasileiras. Tinha-se a ideia de que Olimpíadas e Copa do Mundo facilitariam o acesso a serviços etc. Como o senhor avalia o saldo final desses megaeventos?
Orlando Alves dos Santos Junior – Sobre os megaeventos, se tem um resultado a ser destacado é o mico que o Brasil viveu, que as cidades viveram. De novo vou citar o exemplo de Cuiabá que está com o VLT (veículo leve sobre trilhos) parado até hoje. A PPP do Maracanã está suspensa, a PPP do Porto Maravilha está suspensa, obras estão inacabadas, há estádios que até hoje são subutilizados em várias cidades. O que os megaeventos fizeram foi aprofundar e difundir essa lógica privatista e mercadológica de gestão das cidades.

Não é à toa que os megaeventos se constituíram num dos principais processos pelos quais se difundiram e se adotaram parcerias público-privadas na gestão de transporte público no Brasil. Em várias cidades, por exemplo, estádios que foram reformados e construídos passaram a ser geridos por PPPs. Assim, a Copa do Mundo e as Olimpíadas se constituíram em veículos de difusão desse empreendedorismo neoliberal, num processo de difusão desse instrumento das parcerias público-privadas, e não estiveram a serviço da construção de cidades mais justas e democráticas, mesmo que eventualmente e pontualmente se possa identificar uma ou outra integração que tenha beneficiado a população. Em termos gerais, foram processos utilizados para legitimar projetos de mercantilização das cidades.

A Copa do Mundo e as Olimpíadas também foram acompanhadas por violações de direito à moradia, remoções e processos de reinvindicações, ou seja, não temos um passivo a comemorar nesses dois casos. Acho que os megaeventos fazem parte dessa inflexão ultraneoliberal que vivemos no Brasil e foram efetivamente utilizados para realizar essa inflexão. Evidentemente, também acho que, como vivemos em processos contraditórios, o Brasil teve, nos últimos 15 ou 20 anos, políticas que devem ser ressaltadas, destacadas e que expressam a tentativa de promover uma política urbana mais justa, democrática, como é o caso da Política Nacional de Saneamento, da Política Nacional de Mobilidade, do Conselho das Cidades, do Minha Casa Minha Vida Entidades – muito mais do que o Minha Casa Minha Vida, que promoveu habitações, é verdade, que tentou atacar parte do déficit imobiliário, mas pelas lógicas do mercado.

Poucos avanços e ainda sob ameaças

Enfim, são tentativas que devem ser destacadas e que foram importantes quando se olha para a política urbana nacional. Mas tudo isso sofre o risco de ser perdido nessa inflexão ultraliberal. O fim do Conselho Nacional das Cidades, do Ministério das Cidades, do ciclo de conferências representa um retrocesso do ponto de vista da participação. Além disso, as políticas federais que foram aprovadas nesse período ainda estão longe de se tornarem efetivas.

É um arcabouço institucional interessante, que poderia ser utilizado e acionado para enfrentar alguns dos problemas na produção das cidades, mas que não encontram, nesse momento, vontade e condições políticas para se tornarem reais. Então, não quero deixar de reconhecer certos avanços que ocorreram, mas esses avanços são muito efêmeros quando se olha a correlação de forças e os avanços desse bloco conservador no Brasil nos anos mais recentes.

Você falou em dez anos, o que compreende o tempo justamente que esse bloco conservador já domina o Governo Federal, e então dá o golpe. É o momento de transição desse ensaio reformista, desenvolvimentista que foi feito na era Lula e Dilma desconstruído por esse bloco conservador que, já dentro do governo, bloqueia, impede e subordina as ações do governo aos seus interesses. Os megaeventos já expressam isso e essa lógica acaba sendo vinculada muito aos grandes projetos de renovação urbana, de gentrificação , de expulsão das classes populares e de subordinação das cidades ao mercado.

IHU On-Line – O senhor citou o aumento da população de rua, mas gostaria que falasse mais sobre essas pessoas que são vítimas de marginalização por esses processos que ocorrem nas cidades. Para onde os indivíduos e os coletivos acabam sendo jogados?
Orlando Alves dos Santos Junior – Uma parte significativa dessa população expulsa, marginalizada, excluída, vai acabar buscando espaços de reprodução social que ainda não são dependentes do mercado, como as áreas periféricas, as favelas ou as ruas. Ou seja, um espaço de exclusão onde não se consegue acessar condições dignas de vida. Mas tem uma parte que resiste, que se organiza, que se constitui em movimento social. Considero isso de grande relevância, pois os movimentos sociais se constituem como sujeitos de contestação a esse projeto de exclusão social e estão também atuando nas cidades. Essa atuação se dá porque também estão promovendo ocupações de terrenos vazios, de áreas vazias, que não cumprem sua função social, e afirmando o direito e a legitimidade de destinar esses imóveis subutilizados para moradia popular, para que cumpram sua função social. Então, essas ocupações são fundamentais no enfrentamento desse projeto segregador. Mas também hoje é muito interessante ver a reivindicação pelo comum. Nós estamos diante da eclosão de muitos movimentos que não estão apenas reivindicando o direito à moradia e ocupando para morar. Uma parte significativa desses movimentos sociais está ocupando espaços da cidade como espaços comuns, para afirmar que a cidade deve estar a serviço das pessoas e não dos grandes interesses corporativos. O Estelita , por exemplo, é um caso significativo desse modelo de ocupação.

Assim, cresce, no Brasil, dentro dos movimentos sociais a reivindicação para além da moradia, a reivindicação do comum. Ou seja, não quero só minha casa, quero a rua, quero a praça, quero a escola, quero o posto de saúde, quero ter o direito a pensar na totalidade da cidade. Isso tem também no Rio de Janeiro, se olharmos os movimentos que tentam disputar a área central, discutindo e tentando intervir sobre o projeto do Porto Maravilha, em que se quer afirmar que o Porto não pode estar a serviço das grandes corporações. Ainda mais se levarmos em conta que o centro é uma área que tem um passado negro, um presente negro, um futuro negro, enfim, que tem uma cultura afrodescendente que tem de ser reafirmada.

Espaço para a realização de felicidade

Há uma enormidade de pequenos movimentos acontecendo no Brasil que estão reivindicando e afirmando a cidade como bem comum. É claro que esses movimentos são fundamentais para os excluídos, os que sofrem as consequências e os efeitos dessa política segregadora. Poderia falar muito mais porque também acho que essa exclusão atinge de forma diferente os diversos grupos sociais: mulheres, gays, lésbicas, travestis, homossexuais, crianças, adolescentes, idosos, negros... Assim, é preciso pensar que a cidade é de todos e de todas e que pensar a cidade como bem comum é justamente pensar a cidade em que todas as pessoas e grupos sociais podem se apropriar como espaço de realização da sua felicidade.

O desafio é conseguirmos articular esse conjunto de lutas. Estamos num momento muito difícil de inflexão ultraliberal que atinge também os grupos organizados da sociedade, seja pela mercantilização do espaço público, seja pela perseguição, pela coerção. O desafio é pensarmos as produções para particularmente unificar esses conjuntos de lutas num projeto de cidade efetivamente democrática.

IHU On-Line – Gostaria de trazer exemplos de algumas cidades que conseguem resolver esses conflitos entre interesses privados e interesses comuns?
Orlando Alves dos Santos Junior – Enquanto a cidade for produzida num modo estruturalmente injusto, como o capitalismo, onde vigora a lógica do lucro, vai ser muito difícil conseguir equacionar esses problemas. O que acho que temos são muitos exemplos de cidades que conseguiram se envolver em experimentos que caminham nessa direção. Vou citar o exemplo do Orçamento Participativo - OP, em Porto Alegre.

Enquanto existiu, o OP foi um experimento que produziu avanços importantes na participação democrática das cidades. Tive a oportunidade de acompanhar algumas etapas e ali tínhamos uma série de avanços no que diz respeito à democratização da gestão, à participação cidadã, à inversão de prioridades, a investimentos sociais que não são irrelevantes. Posso citar, ainda, o exemplo recente de Maricá, aqui no Rio de Janeiro, com a instalação das linhas de ônibus públicas com tarifa zero, implementada pela Prefeitura.

Então, há vários experimentos espalhados pelo Brasil na área da mobilidade, da habitação, de saneamento, da gestão que ilustram como o poder público pode cumprir um papel fundamental no enfrentamento dessa lógica privatista e mercadológica da produção de cidade. O enfrentamento dessa lógica é algo muito mais profundo que supõe que nós temos a capacidade de inventar novas lógicas de funcionamento da economia que não sejam baseadas na exploração das pessoas. Só a superação dos imóveis, numa visão não capitalista de produção da cidade, é que pode abrir portas para uma outra cidade. Afinal, acredito que outra cidade é possível, assim como um outro mundo é possível.

Insistência na democracia participativa

Esse modelo econômico fundado no capital já mostrou que é destruidor da natureza, das sociabilidades, das cidades, e aí os exemplos são muitos. Veja os desastres que só aumentam, a desigualdade social no mundo é explosiva, a natureza não suporta e há enormes consequências sociais, ambientais e políticas desse modo de produção. Estou falando isso do ponto de vista mais utópico, mas não podemos abrir mão da utopia, de pensar uma nova cidade ou um novo mundo. Mas acho que, no momento, o enfrentamento pode ocorrer a partir da proliferação de experimentos que sejam promotores de uma nova democracia participativa, de alta intensidade, direta, de experimentos de urbanização democráticos, justos, de economia solidária. É uma fase em que nós precisamos ser capazes de promover o conjunto de experimentos que nos unem e nos dão a possibilidade de novos modelos de cidades, de pensar a economia. ■

Leia mais

- A 'lição' das obras da Copa e Olímpiadas - Criação de mecanismos que subordinam o Estado ao setor privado. Entrevista especial com Orlando Alves dos Santos Junior, publicada nas Notícias do Dia de 26-06-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Olimpíadas Rio 2016: várias questões não foram respondidas. Entrevista especial com Orlando Alves dos Santos Junior, publicada nas Notícias do Dia de 16-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Megaeventos e a mercantilização das metrópoles brasileiras. Entrevista especial com Orlando Alves dos Santos Junior, publicada nas Notícias do Dia de 14-01-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição