Edição 531 | 17 Dezembro 2018

A jovem mística que “desenterra Deus do fundo do coração dos outros”

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João Vitor Santos

Mariana Ianelli reconstrói a Etty Hillesum livre de qualquer amarra, que é capaz de encontrar o divino até mesmo entre os perversos

“Ela não se sentia nas garras de ninguém. A maneira como essa mulher age coincide com o que ela sente, pensa e escreve.” É assim que a poeta Mariana Ianelli define Etty Hillesum, a jovem holandesa que decide viver entre judeus no campo de concentração. Mas essa mulher não escolhe apenas sentir a dor. Ela busca conhecer o seu interior. “Etty como que faz as pazes com seu próprio sofrimento, com a saúde fraca, as dores de cabeça, um aborto, ela vai se unificando, criando um espaço interno de silêncio, conseguindo um equilíbrio entre fora e dentro”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E, uma vez encontrando esse equilíbrio, é dele que espalha o sorriso em meio a tanto desespero. “A partir daí, bem no meio do inferno de sua época, no meio de gente que se desesperava ou desistia ou negociava a vida a qualquer preço, ela pôde estender a mão para o outro”, completa.

Entretanto, se engana quem pensa que a jovem buscava dar alento apenas aos menores. O Deus que ela alcança através de cultivo de seu “eu interior” lhe gera um brilho e esse brilho, segundo Mariana, a faz capaz de perceber Deus até mesmo entre aqueles que promovem o sofrimento. “Era esse brilho que importava defender até as últimas, e fazia Etty observar com interesse todo tipo de gente, inclusive o comandante do campo, os guardas, os dirigentes judeus, os judeus alemães. Etty queria desenterrar Deus do fundo do coração dos outros, assim, exatamente nesses termos”, pontua.

Ainda sobre sofrimento, Mariana ainda destaca que “Etty insiste que ainda nos falta, aos ocidentais, aprender a sofrer, aprender a não repudiar a experiência da dor, porque a energia que alguém empenha em resistir ao sofrimento poderia estar sendo empenhada em algo mais fecundo”. Assim, deixa claro que não é necessário “remoer” o sofrimento, ainda mais em tempos de penúrias. A lição da jovem mística é a de que “é urgente cultivar um espaço de calma para restauração das nossas forças”. “A lição que Etty depreende da guerra, e que transcende circunstâncias históricas, é uma lição espiritual”, sintetiza Mariana.

Mariana Ianelli é poeta, ensaísta, cronista e crítica literária brasileira, com mestrado em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Entre suas produções, destacam-se os livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003) e Fazer silêncio (2005), finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006, além de Almádena (2007), finalista do prêmio Jabuti 2008, Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Entre tantas imagens fortes de Etty Hillesum está aquela em que, do trem que vai levá-la do campo de concentração para a morte, ela joga para a amiga um cartão em que diz “deixamos o campo cantando”. O que essa passagem revela sobre essa mulher?
Mariana Ianelli – Essa partida de Etty Hillesum, cantando, é realmente impressionante, lembrando que, no mesmo trem, uns vagões à frente, iam seus pais e o irmão mais novo. Isso revela exatamente o que a própria Etty expressou nos seus cadernos, um ano antes: que ela não se sentia nas garras de ninguém. A maneira como essa mulher age coincide com o que ela sente, pensa e escreve. Quando passa a frequentar, ainda voluntariamente, o campo de Westerbork , é como se estivesse pronta para aceitar Auschwitz como qualquer outra coisa terrível, porque àquela altura já nada podia quebrá-la por dentro. Sua alma não estava em jogo nessa partida.

Para isso, Etty esteve se preparando durante dois anos, lutando interiormente, e escrevendo sobre essa luta interna em seus diários, se limpando do ódio, do rancor, do medo, cuidando da alma. Etty como que faz as pazes com seu próprio sofrimento, com a saúde fraca, as dores de cabeça, um aborto, ela vai se unificando, criando um espaço interno de silêncio, conseguindo um equilíbrio entre fora e dentro. E então, a partir daí, bem no meio do inferno de sua época, no meio de gente que se desesperava ou desistia ou negociava a vida a qualquer preço, ela pôde estender a mão para o outro, pôde se dar para o outro, viver o dia a dia num campo de trânsito e escrever sobre o que via sem submergir. Etty preparava a bagagem dos que eram convocados para o transporte e não submergia. Depois foi ela mesma com seus pais e seu irmão, cantando. Isso revela que sua alma continuava viva.

IHU On-Line – Como compreender a dinâmica do silêncio e da escuta em Etty Hillesum?
Mariana Ianelli – Há uma imagem à qual Etty recorre frequentemente em seus diários para descrever sua paisagem interior. Ela sega o matagal que esconde a vista, depois capina a terra, até que pouco a pouco o exercício da meditação vai abrindo uma planície imensa e imperturbável dentro dela. Essa planície a acompanha aonde ela vai, uma paisagem cultivada nos momentos de oração, meditação, silêncio. É nesse lugar que Etty se põe à escuta.

Se pudéssemos recorrer a outra imagem, agora, para sintetizar a natureza espiritual dessa escuta, seria aquela dos anjos de Wim Wenders sobre os nossos ombros, ouvindo e sofrendo nossas angústias, nossos traumas, nossas pequenas ternuras. Etty se abre para essa compaixão quase sobre-humana e vai em busca do que se passa no mais íntimo do outro. Numa das entradas dos diários, em 16 de setembro de 1942, percebemos bem essa dinâmica do silêncio e da escuta numa espécie de oração, que é dirigida, dessa vez, não a Deus, mas aos homens que Etty observa em Westerbork, indo e vindo, sempre atarefados. Ela pede intimamente para ser a guardiã da alma desses homens.

Mais adiante, Etty formula o desejo místico de ser “o coração pensante de todo um campo de concentração”, frase que se tornou famosa. E, finalmente, a última frase, do último caderno dos diários de Etty de que se tem notícia (o caderno que Etty manteve no campo de Westerbork se perdeu): “Gostaria de ser um bálsamo para muitas feridas”. Essa frase está gravada num monumento à beira do rio Ijssel, em Deventer, cidade onde Etty passou sua adolescência. Representa, espiritualmente, com seu característico acento cristão, o ápice da entrega amorosa de Etty, sua máxima abertura para o outro.

IHU On-Line – De que amor fala Etty Hillesum em seus escritos?
Mariana Ianelli – Etty fala de um amor que é refúgio, confiança, proteção. Ela começa a cultivar esse amor rezando, o que exige dela a quebra de um primeiro bloqueio, porque até então, com 27 anos, Etty nunca tinha pronunciado o nome de Deus, nem se ajoelhado. O que ela passa a cultivar, na medida em que esse exercício da oração vai ganhando espaço e importância, é uma parte de Deus dentro dela.

Quando, mais adiante, Etty consegue canalizar esse amor para os gestos mais simples, é sua parte de Deus vindo à tona, buscando a parte de Deus que existe no outro. O amor pelo outro passa a ser uma extensão desse amor maior. Numa carta de agosto de 1943 à amiga Maria Tuinzing , Etty fala desse sentimento, radicalmente místico e poético ao mesmo tempo, quando diz que “o amor pelo nosso semelhante é como um brilho elementar que nos sustenta” e que o “nosso semelhante por si só quase não tem nada a ver com isso”.

Era esse brilho que importava defender até as últimas, e fazia Etty observar com interesse todo tipo de gente, inclusive o comandante do campo, os guardas, os dirigentes judeus, os judeus alemães. Etty queria desenterrar Deus do fundo do coração dos outros, assim, exatamente nesses termos. Achava que só individualmente, cada um trabalhando por dentro esse refúgio comum, uma nova geração mais humana poderia começar a ser gestada. Quando as pessoas elas mesmas se permitissem emanar algo além de ressentimento, quando interrompessem o ciclo do ódio. Para Etty, não era Deus que devia acudir a humanidade, mas o contrário.

IHU On-Line – Etty Hillesum tem admiradores em todos os campos, superando a ideia de fronteiras entre Oriente e Ocidente. Como observa essa grande adesão dos leitores aos seus escritos?
Mariana Ianelli – Podemos pensar a universalidade de Etty, e o entusiasmo de seus leitores, sob vários aspectos. Do ponto de vista da linguagem, a metáfora de um “coração pensante” talvez seja o que melhor simboliza o caráter universal dessa interlocução, que não se dá (ou não se basta) no plano das ideias, mas no fundo de um coração. Essa linguagem, que irradia de um ponto central, tem ressonância em diferentes culturas, filosofias e religiões.

Vale citar Karima Berger , e seu livro Les Attentives , de 2014. Esse ensaio tem o espírito de uma imensa carta de amor assinada por uma leitora de Etty. Argelina, muçulmana, Karima se identifica com a menina de uma fotografia (de um recorte de jornal) que Etty mantém perto da sua escrivaninha, a quem ela chama de “pequena marroquina” em seus diários. Karima reconhece, também, no recinto de silêncio dentro de Etty, o mihrab das mesquitas. Essa amizade profunda, inter-religiosa, de coração a coração, que Etty inspira, é sem dúvida uma das chaves para se compreender a admiração e o entusiasmo dos seus leitores.

Uma bibliografia atualizada, somente em francês, já reúne mais de quarenta títulos sobre Etty Hillesum, sem contar dezenas de artigos em coletâneas e outros estudos. Os leitores de Etty são, de fato, amigos de Etty.

Outro aspecto a considerar é o meio intelectualmente fecundo, embora psicologicamente difícil, em que essa mulher se criou, o talento para o estudo das línguas (o pai, judeu holandês, foi diretor do liceu de Deventer), a presença da música (o irmão mais novo era pianista e compositor), a intimidade com a língua e a literatura russas (a mãe era russa). Além disso, o entorno sempre cheio de pessoas, todas muito diferentes, é outro aspecto igualmente relevante. Em Amsterdã, Etty foi governanta na casa de Han Wegerif , e ali convivia diariamente com uma família bastante heterogênea (a descrição a seguir é dela): uma alemã cristã, uma estudante judia, um pequeno-burguês social-democrata e um jovem estudante cristão. Ela considerava uma “tarefa” manter todos unidos, ainda que os conflitos da época vazassem cada vez mais para dentro de casa. Depois, o convívio com o círculo de Julius Spier , o Conselho Judaico e, por fim, o campo de Westerbork, onde literalmente um mundo em miniatura se concentrava.

Toda essa multidão de pessoas interessava a Etty, ela buscava ouvir a todos. Sem deixar de mencionar a riqueza de leituras cruzadas que há nas cartas e nos diários, Mestre Eckhart , Santo Agostinho , Dostoievski , Freud , Jung , Rilke , Kierkegaard , Nietzsche , Tolstoi , a Bíblia, e tantos outros. Tudo isso atesta uma amplitude de afinidades e conexões, uma empatia, uma abertura, que possivelmente se desdobra hoje numa multidão de leitores. Acrescentando, finalmente, nosso contexto de época, de corações aflitos, um contexto mais que propício para receber o que Etty tem a nos dizer.

IHU On-Line – Que narrativa Etty Hillesum tece do mundo que a cerca?
Mariana Ianelli – Etty tece uma narrativa cheia de nuances, em que o trágico se mistura com o cômico, o maravilhoso com o banal, o banal com o terrível, igual à vida. Por exemplo, nem tudo era pesadelo no dia a dia em Westerbork, havia também momentos dignos de beleza, e Etty mostra isso maravilhosamente nas suas cartas. Ela não se contenta com esquemas nem maniqueísmos, está sempre procurando ver mais fundo e sob outras perspectivas. Sua visão de mundo não é só feita de palavras e pensamento, é também uma visão de mundo que nasce da experiência do corpo e do sentimento, e aí é que reside a potência da escrita de Etty: ela coloca à prova a linguagem e, para isso, seu meio de exercício é a própria vida, as pessoas à sua volta, sua época.

Ela tece realidades matizadas, por assim dizer, em que paisagens do espírito coexistem com paisagens humanas. Se o cerco vai se fechando com interdições, confiscos, convocatórias, Etty continua a sentir que respira um “ar não racionado” e que o céu sobre ela é sem fronteiras. Prisioneiro, para Etty, era o soldado para lá do arame farpado. O terrível de sua época era Auschwitz, mas em outras circunstâncias, outra época, podia ser a Sibéria. Essa compreensão maior das coisas, de ver mudar a roupagem, o cenário da história, sem mudarem os sentimentos, alimentava em Etty o interesse pelas pessoas, que afinal estão sempre a misturar, nelas mesmas, o bem e o mal.

Uma vida sem esquemas

Sabendo que a vida não cabe em esquemas, ela procura um rosto humano no soldado, ou percebe, além do ódio evidente dos nazistas, o ódio menos óbvio, mas igualmente destruidor, entre os seus. De maneira que Etty está sempre a buscar o que ela chama de uma nova linguagem para dar conta dessas nuances. Aquilo que ela descreve como paisagem do espírito ou vida interior é algo que precisa se misturar à vida cotidiana, emanar do corpo e agir sobre a realidade. Quando a linguagem de Etty se põe à prova desse modo, é para abandonar qualquer espécie de estetismo e buscar uma “sinceridade cristalina”, essa na qual toda mística, segundo ela, deveria se basear.

Há um episódio que ocorre com Etty em Westerbork que lembra o ocorrido com Anna Akhmátova nas filas das prisões de Leningrado . Etty pergunta a alguém, na plataforma dos transportes, enquanto observa os vagões serem carregados de gente: “Conseguirá alguma vez alguém descrever ao mundo exterior o que aconteceu aqui?” Porque seria preciso discernir, no meio daqueles trens e barracões lotados, as pessoas, cada uma com suas contradições, seus sonhos, seus medos.

IHU On-Line – Que grande experiência reside e é relatada nos diários de Etty Hillesum?
Mariana Ianelli – A experiência de um destino construído desde dentro, sem autoboicotes. A arquitetura de um espaço íntimo de silêncio desde onde a relação com o mundo e as pessoas se transforma. Ninguém nos pode fazer mal, Etty insiste em dizer. Pode não restar mais nada, ela continua a se sentir em casa debaixo do céu. O jasmineiro nos fundos da sua casa pode ser completamente destruído por um temporal, porque, em algum lugar dentro de Etty, esse jasmineiro continua a dar flor.

Portanto, é também a experiência de uma liberdade inviolável, que vai se fortalecendo ao longo dos diários, transformando o ânimo dessa mulher, desbloqueando-a para certas palavras, como amor e Deus, que antes ela evitava por soarem pretensiosas, até que passa a vivê-las na prática. É também a experiência de uma repotencialização dessas palavras, como amor e Deus, num contexto que as mesmas parecem perder sentido.

Etty denomina Julius Spier, que aparece citado logo nas primeiras linhas dos diários, o “parteiro da sua alma”, o que “desenterrou Deus do seu interior”. Os diários, justamente, (ao todo onze cadernos preservados entre 1941 e 1943) como que dão conta desse desabrochar da alma de Etty. Entre os escritores mais citados (e são muitos), há um que ela denomina seu mestre: Rainer Maria Rilke. Vale a pena lembrar a importância de Rilke nessa jornada espiritual de Etty, tanto quanto a de Julius Spier, porque o que os diários relatam é também a experiência extraliterária de uma poesia possível, hoje, agora.

IHU On-Line – Etty Hillesum faz da sua experiência em Westerbork, região próxima de onde hoje é a Holanda, a busca pela esperança. Quais os desafios para compreender essa mística que é capaz de ver cor no cinza da dor? Como nutrir a esperança em meio ao desterro?
Mariana Ianelli – Cento e quarenta anos antes de Etty frequentar a província de Drenthe, onde fica Westerbork, no norte da Holanda, Van Gogh esteve ali, e, durante três meses, pintou alguns quadros e aquarelas de uma paisagem verde-terrosa, de horizonte aberto, com um grande céu predominando sobre os campos. O que Etty acrescenta a essa paisagem, quando ela chega ali, primeiro como voluntária, depois como interna do campo, é, por exemplo, a surpresa de um tremoceiro-roxo, um pôr do sol que ela vê sentada num caixote ou o retrato de um momento de seu pai lendo Homero para meninos doentes. São “porções de eternidade”, na pintura de Etty.

Tudo acontece no presente e é também atemporal. Naquele lugar, árido em tantos aspectos, a vida continua cheia de sentido para Etty. Nem tudo é melancolia e cansaço, o sofrimento é um componente entre outros, só um dos tons, de uma paisagem riquíssima em matizes. Cada dia em Westerbork, para Etty, é uma vida. O que importa para ela é “cem por cento ser”, esteja onde estiver, dure o tempo que durar. Podem expropriá-la de tudo, ela não se sente expropriada. A semente de esperança, nesse caso, depende de um novo tempo ir se preparando, humanamente, dentro de cada um.

IHU On-Line – Num mundo que não para, numa sociedade da informação e do estresse, como o silêncio e a poesia podem nos abrir caminhos para a busca interior, daquilo que é essencial?
Mariana Ianelli – O silêncio permite uma abertura, uma brecha para sentir uma outra duração, um outro ritmo, que não se afina com essa vida alucinada de estímulos por minuto, mas se afina com a experiência da poesia, no que nela há de profundamente pessoal. Porque Etty praticava essa abertura, porque exercitava cotidianamente a leitura de poesia (entre outras leituras), em especial a poesia de Rilke, quando chegou o momento de ela deixar o conforto da sua escrivaninha em Amsterdã para viver num dos barracões lotados de Westerbork, esse refúgio de silêncio, fortalecido na prática, foi também com ela.

Enquanto chegavam e partiam os trens para o Leste, Etty abria uma brecha naquele cotidiano cinzento para, de repente, olhar gaivotas. É como se a poesia a ajudasse a ler melhor a própria vida nessas filigranas de beleza que coexistem com o horror. Se alguém não experimenta essa outra duração, se alguém vai levado de cá para lá, de estímulo em estímulo, a alma pode enfartar, como diz Byung-Chul Han em A sociedade do cansaço , pensando nos nossos dias. Era contra esse colapso da alma que Etty trabalhava dentro de si mesma e na sua relação com o outro, sempre buscando despertar para vida essa interioridade com a qual a poesia, em geral, se comunica.

IHU On-Line – Qual a potência de Etty Hillesum para se compreender e encarar os desafios de nosso mundo/tempo com o amor e a alegria?
Mariana Ianelli – Etty nos faz ver uma dupla vida que todos levamos, mas de que nem todos se dão conta: a vida ao redor, que a toda hora nos enreda em circunstâncias diferentes, e a vida que cada um vive em si mesmo, espiritualmente. Essas vidas coexistem, se comunicam, atuam juntas, e Etty dá expressão a esse movimento, diga-se, nem sempre harmonioso. Quando por fora tudo desmorona e o que está em jogo é o que alguém tem por dentro, é então que esta segunda vida é chamada a mostrar a sua força.

Etty insiste que ainda nos falta, aos ocidentais, aprender a sofrer, aprender a não repudiar a experiência da dor, porque a energia que alguém empenha em resistir ao sofrimento poderia estar sendo empenhada em algo mais fecundo. O que Etty aponta, em outros termos, é que não há necessidade de enfatizarmos o sofrimento, sobretudo em tempos de sofrimento evidente, mas sim é urgente cultivar um espaço de calma para restauração das nossas forças, um refúgio de silêncio, um momento de repouso.

Preparar a vida nova requer um trabalho justamente em favor da vida e do que dá sentido a ela. “A dor é imperativa, mas não a dor / da dor”, diz um poema de Adriana Lisboa , e esses versos poderiam ser de Etty Hillesum. A lição que Etty depreende da guerra, e que transcende circunstâncias históricas, é uma lição espiritual. Cada um deve “retornar ao próprio centro” e trabalhar dentro de si a vida nova.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Mariana Ianelli – Escrevi alguns artigos e crônicas sobre Etty Hillesum e o campo de Westerbork. Também um ensaio, “O livro de horas de Etty Hillesum”, publicado na coletânea Mística e Literatura (Fonte Editorial, 2015) organizada pelo prof. Faustino Teixeira.

Tomo a liberdade de transcrever aqui dois poemas, também escritos a partir da leitura das cartas e dos diários.

UMA FLOR ENTRE AS PÁGINAS
E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus. Etty Hillesum Olhai o jasmim como cresce Entre o muro lamacento e o telhado, Como continua a florir no meio dos campos gelados – Nem o lírio dos Evangelhos Nem a rosa branca de Rilke Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles. [Do livro O amor e depois, Editora Iluminuras, 2012] UMA ESTRELA NOS CAMPOS Com Etty Hillesum Trabalhava. Trabalhava numa primavera fria esperando ser como a lua, ser como um pasto: uma vasta paisagem tranquila – e desenterrava Deus de sob pedras e cascalhos. O caminho até o cais era feito entre soldados (todos tão pequenos por trás de seus crimes). E trabalhava mais: era uma estaca no mar, era um pedaço de granito, era o próprio mundo prestes a ser destruído. E trabalhava mais: estava com os deportados, com os desaparecidos, estava com uma flor num retângulo de jardim. De minuto a minuto, forjando a calma em pessoa, o sorriso de Buda, um terreno baldio. E já havia partido, muito antes de partir, debaixo de um céu sem palavras: era uma estrela nos campos, era a mulher já sem nome do vagão número 12, na direção do Leste, cantando com alegria.
[Do livro Tempo de voltar, Edições Ardotempo, 2016]■

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