Edição 530 | 16 Outubro 2018

A multiplicidade política nas missões da Companhia de Jesus

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João Vitor Santos | Tradução: Vanise Dresch

Aliocha Maldavsky observa que a ação de jesuítas não é algo que possa ser uniforme e generalizado, assim como as relações que vão estabelecer com o poder temporal e populações nativas

A historiadora Aliocha Maldavsky define as missões jesuíticas como “instrumentos de colonização do território americano, inclusive nos espaços mais recuados onde os administradores ibéricos não conseguiam exercer um controle político e militar suficientemente estável”. Mas ter claro esse conceito não significa que há unidade na condução dessas missões. “Não existe uma ‘missão’ jesuítica, mas várias. É importante que os historiadores não reifiquem a ação dos jesuítas como se fosse única no tempo e no espaço”, completa. Ou seja, a penetrabilidade e os modos de agir dos religiosos varia de acordo com o local e as comunidades com as quais vai tomando contato. “Nas cidades, os jesuítas se dirigem a todos os fiéis, incluindo os índios, que não são os mesmos nos campos e em zonas de fronteira ou recuadas como a Amazônia”, exemplifica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Aliocha também analisa as relações dos jesuítas com as monarquias ibéricas. Segundo ela, é verdade que, em muitos momentos, padres – não só jesuítas – se associavam em prol da preservação e aproximação da realidade dos indígenas. Entretanto, ressalva: “os religiosos podem ter-se oposto aos monarcas, mas nem Las Casas nem Vieira questionam fundamentalmente a soberania dos monarcas ibéricos”. Mesmo havendo um interesse de ajustes entre os interesses ibéricos e a sobrevivência dos povos originários, a prioridade estará majoritariamente alinhada pela conversão e expansão do catolicismo. “Mesmo que os missionários se interessassem pelos usos e costumes das populações americanas, eles não o faziam por elas mesmas, mas para melhor convertê-las. Estavam convencidos de que o catolicismo era superior”, analisa a pesquisadora.

Aliocha Maldavsky é doutora em História, integra os grupos de pesquisa Mondes Américains (UMR 8168, da Université Paris Nanterre) e Missions Religieuses Ibériques Modernes na École des hautes études en sciences sociales - EHESS. Suas pesquisas compreendem temas da História Social da Religião e seu lugar nas sociedades antigas do prisma do investimento, financeiro, humano e simbólico por parte dos leigos. Entre seus livros publicados, destacamos Space and Conversion in Global Perspective (Leiden: Brill, 2014); Vocaciones inciertas: Misión y misioneros en la provincia jesuita del Perú en los siglos XVI y XVII (Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 2012) e Missions d'évangélisation et circulation des savoirs: XVIe-XVIIIe siècle (Madrid: Casa de Velázquez, 2011), editado em parceria com Marie-Lucie Copete e Ines G. Zupanov.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma podemos apreender a missão jesuítica além da perspectiva religiosa? E, nesse sentido, quais os seus principais legados para a América?
Aliocha Maldavsky – Além da perspectiva religiosa, as missões, assim como todo o empreendimento de evangelização dos ameríndios, constituem um dos instrumentos de colonização do território americano, inclusive nos espaços mais recuados onde os administradores ibéricos – espanhóis e portugueses – não conseguiam exercer um controle político e militar suficientemente estável. Nos espaços controlados, como nas fronteiras, os missionários e os religiosos têm igualmente um papel fundamental na sujeição das populações aos poderes europeus.

IHU On-Line – Embora os jesuítas representassem um braço das monarquias católicas da Península Ibérica, é sabido que em certos momentos se colocavam contrários aos interesses dos reis em prol de indígenas. Como compreender essas relações que se estabelecem a partir do século XVI?
Aliocha Maldavsky – Na escala do continente americano, os jesuítas não são os únicos a desempenhar um papel de consciência dos monarcas ibéricos. Antes deles, os dominicanos, destacadamente Bartolomeu de Las Casas , trazem uma reflexão sobre a colonização e o respeito à vida e à dignidade das populações. Os religiosos podem ter-se oposto aos monarcas, mas nem Las Casas nem Vieira questionam fundamentalmente a soberania dos monarcas ibéricos. Em suas advertências, em seus sermões, opúsculos e proposições, percebemos mais a busca de um ajuste entre os interesses dos ibéricos – econômicos, muitas vezes – e a sobrevivência de populações que esses religiosos têm como prioridade converter ao catolicismo. Sem o apoio das monarquias, os missionários não conseguem agir.

IHU On-Line – No que a missão jesuítica difere de outras ações de religiosos? E como podemos perceber isso na América Colonial?
Aliocha Maldavsky – Não existe uma “missão” jesuítica, mas várias. É importante que os historiadores não reifiquem a ação dos jesuítas como se fosse única no tempo e no espaço. Nas cidades, os jesuítas se dirigem a todos os fiéis, incluindo os índios, que não são os mesmos nos campos e em zonas de fronteira ou recuadas como a Amazônia. As “missões volantes” dos jesuítas na América espanhola visam a reforçar o trabalho dos padres encarregados da vida espiritual. Mas esses jesuítas administram muito poucas paróquias e, portanto, não se confrontam com as mesmas realidades cotidianas que os outros padres – regulares ou seculares – que vivem diariamente entre os índios.

No Brasil, as aldeias administradas pelos jesuítas se assemelham às doctrinas dos índios da América espanhola e, nesse contexto, os jesuítas enfrentam as críticas dos colonos. Nas missões das fronteiras, como no Paraguai, a autonomia é bem maior. Então, não há “uma” missão jesuítica, mas várias.

IHU On-Line – A catequização de indígenas estabelece uma nova forma de ser católico cristão, reconfigurando a ideia de sagrado? Como?
Aliocha Maldavsky – Não tenho competência para responder corretamente a essa pergunta, que supõe como resultado uma única “configuração da ideia do sagrado” depois da conversão. Posso apenas responder que a catequização dos ameríndios provavelmente não destruiu as outras formas de sagrado que existiam na América. É impossível generalizar.

IHU On-Line – Pensando no contato entre colonizadores e indígenas, é comum considerarmos que o europeu chega e destrói a cultura e a política de povos originários. Quais os desafios para se conceber não a destruição, mas a transformação do modo de vida de povos originários? E a transformação dos próprios?
Aliocha Maldavsky – A transformação ocorre para as culturas dos povos autóctones assim como ela acontece em todo e qualquer processo histórico. Todo povo tem uma história que se transforma em contato com outros povos. Porém, se, por um lado, essa transformação ocorre efetivamente tanto entre os europeus, que se americanizam, quanto entre os povos autóctones, que se adaptaram à nova configuração, por outro lado os desafios não são os mesmos para os dois lados.

Para os povos ameríndios, o confronto é violento, porque a população é dizimada pela doença, pelo deslocamento forçado e/ou pela exploração. Neste caso, o desafio da transformação é a sobrevivência. Para os europeus, a questão é o lugar a ocupar nas novas sociedades que se originam nos processos de conquista e colonização, é o status social, enquanto para os ameríndios o problema é a sobrevivência. Embora o processo se dê nos dois sentidos, ele não é simétrico, longe disso. É importante que não se lance um olhar ingênuo sobre esses fenômenos.

IHU On-Line – Como se dá a atuação dos jesuítas? E no que consiste o processo de restituição de bens dos índios no século XVI?
Aliocha Maldavsky – A devolução dos bens espoliados é uma obrigação comum a todos os cristãos. Bartolomeu de Las Casas adapta isso ao contexto americano em um tratado publicado em 1552, pelo qual ele exige que os encomenderos restituam os bens adquiridos durante as guerras injustas e aqueles extraídos abusivamente das comunidades locais. Os dominicanos logo exercem essa prática junto aos antigos conquistadores do Peru, suscitando uma onda de restituições de bens aos índios nos Andes, nos anos de 1550 e 1560.

Essas restituições são feitas mediante fundações devotas financiadas pela doação de terras, de animais (ovelhas), geralmente controladas por religiosos. Para o rei da Espanha, a restituição é um meio de pressionar os antigos conquistadores que se tornaram encomenderos. Os jesuítas chegam nos Andes em 1568 e se interessam por essa questão a posteriori, participando dos debates que acontecem com as autoridades civis. Eles adaptam a restituição utilizando-a para financiar as fundações de colégios e as missões. A má consciência dos antigos conquistadores é, portanto, usada pelos jesuítas em proveito do financiamento das instituições religiosas.

IHU On-Line – Quais as particularidades das missões na América Andina?
Aliocha Maldavsky – As missões jesuíticas na América Andina são principalmente missões volantes que apoiam a ação dos párocos das doctrinas de índios. Encontramos também uma ação missionária nas cidades e em algumas paróquias controladas pelos jesuítas, mas em número limitado, pois isso é contrário às Constituições da ordem.

Nos Andes, no século XVII, desenvolve-se também uma ação repressiva por parte das autoridades religiosas e civis sob a forma de campanhas de extirpação da idolatria que são uma particularidade local. Os jesuítas participam, num primeiro tempo, dessas campanhas (nos anos de 1610), mas delas se desvinculam (nos anos de 1660) para evitar que fossem associados à repressão exercida sobre as populações.

IHU On-Line – Quais as contribuições das cartas de membros da Companhia de Jesus para o conhecimento dos modos de vida de povos originários da América? E quais os limites desses documentos?
Aliocha Maldavsky – As cartas escritas pelos membros da Companhia de Jesus são de natureza diferente. Embora a questão se refira aos relatos das missões destinadas a um grande público ou aos membros da ordem na Europa, como as cartas anuais, esses são documentos com um caráter edificante que têm por objetivo glorificar a ação dos membros da ordem. Outros documentos, de caráter administrativo, permitem entender situações concretas e sair da esfera da propaganda. Em todos eles, é possível ler nas entrelinhas para encontrar, mesmo nos relatos edificantes, elementos úteis para a compreensão das populações autóctones, desde que sejam cruzados com outras fontes.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre as missões de jesuítas na América e no Oriente? No que essas missões se assemelham e no que se dissociam?
Aliocha Maldavsky – Podemos certamente comparar as missões americanas com as missões no Oriente, embora o que as diferencie primeiramente é o contexto colonial, bem mais presente na América do que no Oriente, onde os missionários são dependentes dos poderes locais. Um primeiro ponto em comum é a importância das elites locais como alvos da evangelização e a formação, dentro dessas elites, de intermediários – catequistas, sacristãos, cantores – pela transmissão de competências de leitura, escrita, música. Isso é encontrado tanto nos Andes e no Paraguai quanto no Japão e na Índia.

Outro ponto em comum é a importância atribuída à língua vernácula em todos os terrenos missionários e a aprendizagem dessas línguas pelos missionários, com estratégias às vezes diferentes conforme as ordens e as épocas. Um terceiro ponto em comum é a promoção das organizações coletivas laicas, como as confrarias ou as congregações marianas, para organizar a devoção católica; portanto, é o papel atribuído aos laicos na organização de novas cristandades.

A principal diferença é o grau de coerção mais elevado na América que na Ásia. Mas isso depende do lugar. Nas zonas de densa ocupação europeia na América, essa coerção é evidente. Ela é menos nítida nas zonas de fronteira, onde os missionários dependem das autoridades locais, como no Paraguai, mas também no Japão ou na China. Mas nem toda a Ásia é redutível ao mesmo esquema: em Goa , os portugueses exercem um poder que eles não têm no sul da Índia ou entre os mongóis. Consequentemente, a questão do grau de coerção não é unicamente redutível ao continente.

IHU On-Line – Quais foram os principais equívocos no projeto da Missão, tanto na América como no Oriente?
Aliocha Maldavsky – Os atores da história agem em função de fatores próprios de sua época. O historiador não tem de se pronunciar sobre erros eventuais, como se fosse possível julgar sobre o bem e o mal no século XVI a partir do século XXI. Não penso que esse seja o meu papel de historiadora.

A destruição das culturas locais, pela qual se pode lamentar posteriormente, fazia parte do projeto colonizador e evangelizador. Mesmo que os missionários se interessassem pelos usos e costumes das populações americanas, eles não o faziam por elas mesmas, mas para melhor convertê-las. Estavam convencidos de que o catolicismo era superior. Embora tendo se adaptado, em parte, às circunstâncias, eles pensavam estar agindo bem com a introdução do cristianismo.■

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