Edição 530 | 16 Outubro 2018

A história natural e da ciência como valor missionário

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João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

Miguel de Asúa analisa como a troca de saberes sobre práticas médicas, uso de ervas e conhecimento de flora e fauna se configura com um outro ponto de conexão e aproximação entre jesuítas e povos indígenas

A experiência de missão para os jesuítas pode ser compreendida através dos movimentos de aproximação com os povos indígenas. Uma das faces dessas aproximações se dá na troca de informações entre índios e religiosos europeus no que diz respeito ao uso de plantas para fins medicinais e até mesmo para conhecer esse Novo Mundo. O historiador Miguel de Asúa explica que os jesuítas tinham uma certa liberdade, através da qual deveriam agir com seu propósito de evangelização. É por isso que muitos vão desenvolver o que podemos chamar de projetos científicos. “Acredito que o ponto mais significativo do projeto jesuíta, que implicitamente começa com a História Natural e Moral das Índias de José Acosta é ter que dar conta de um universo totalmente novo, de um ‘Novo Mundo’, com sua imensa geografia, seus povos, seus animais e plantas nunca antes vistos”, analisa. “A história natural dos jesuítas tinha um valor missionário”, ou seja, para evangelizar era preciso conhecer e esse conhecimento vinha da troca desses saberes.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Asúa observa como essas trocas vão transformando tanto jesuítas quanto indígenas. Quando chegam na América, boticários e enfermeiros jesuítas trazem um conhecimento europeu de tratamentos medicinais de base herbórea. Assim, é natural que passem a aderir a práticas indígenas no uso de novas ervas. “No entanto, é preciso ter cuidado em não criar uma imagem ‘romântica’, não pensar que os jesuítas recebiam de braços abertos o saber curativo indígena: em muitos casos havia desconfiança, já que estava vinculado a práticas mágico-religiosas que os padres viam como ‘diabólicas’”, ressalva. “Vale pensar sobre o que aconteceria se missionários cristãos do futuro chegassem a um planeta habitado por diversas criaturas e civilizações, e tivessem que falar sobre isso, contar como são as coisas para o povo da Terra. Bom, esse “falar de”, esse discurso, que em grande medida estava relacionado com o mundo natural é o que os jesuítas criaram: uma nova forma de falar sobre algo não visto”, explica.

Asúa reconhece que o caráter global de troca de saberes que a Companhia de Jesus vai empregar acaba revelando uma espécie de conexão completamente nova à época. “Poderíamos dizer que os jesuítas foram os pioneiros de tudo isso, da mesma forma que inauguraram uma forma de conceber o mundo como unidade na diversidade, algo que nos é acessível atualmente, mas em uma chave secular”, resume.

Miguel de Asúa possui doutorado em Medicina pela Universidade de Buenos Aires, mestrado em História e Filosofia da Ciência e doutorado em História pela Universidade de Notre Dame. Membro do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas - Conicet, da Argentina, é professor de História do Instituto de Pesquisa de Ciências e Engenharia Ambiental na Universidade de San Martin e professor de filosofia no Colégio Máximo de San Miguel. Entre suas publicações, destacamos Ciencia y literatura (Eudeba, 2004), A New World of Animals: Early Modern Europeans on the Creatures of Iberian America (Routledge, 2005), Los juegos de Minerva (Eudeba, 2007) e La ciencia de Mayo (Fondo de Cultura Económica, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consistia a prática científica, isto é, “o fazer ciência”, no século XVI? Quais eram os critérios que delimitavam a prática científica?
Miguel de Asúa – No século XVI, os critérios eram muito diferentes dos atuais. Na época do Renascimento, havia uma combinação entre ciência antiga-medieval (basicamente, fundada pelos escritos de Aristóteles ), a magia e o conhecimento oculto, a nova ciência, e o mecanismo que recém estava surgindo. Tomemos como referência dois livros fundamentais que foram publicados no ano-chave de 1543, que às vezes são utilizados para demarcar o começo da Revolução Científica: o de anatomia de Andrea Vesalius (De humani corporis fabrica ) e o de cosmologia e astronomia de Copérnico , com o Sol como centro do universo (De revolutionibus orbium coelestium ). Ambos foram “revolucionários” de uma maneira muito incompleta – eu as chamo de “revoluções conservadoras”, porque muitas das coisas antigas se mantiveram.

IHU On-Line – E, atualmente, o que é a prática científica, o que delimita o “fazer ciência”?
Miguel de Asúa – Quando começo os cursos rápidos de Filosofia da Ciência, que às vezes ministro para estudantes de ciências, sempre pergunto a mesma coisa. Creio que a resposta mais lógica a esta pergunta seria: “ciência é o que fazem as pessoas que se dedicam à ciência”. Isto parece uma banalidade, mas não é.

É melhor fundamentarmos bem nossa definição sobre a realidade. Se tomarmos uma revista líder, como a Science ou a Nature , e buscarmos entre todas as coisas que foram publicadas ali o que houver de comum entre os artigos, será muito difícil encontrar um denominador mínimo comum (e isso que estamos deixando de fora as ciências exatas – aqui estou considerando “ciência” como as ciências empíricas naturais). O que há de comum entre a Física do estado sólido e a Ecologia das zonas úmidas? Ou entre a Cosmologia Quântica e a Farmacologia dos Receptores de Membrana? De qualquer forma, tudo isso é muito diferente da jovem ciência da Idade Moderna. Por isso, quando falamos de “ciência” nos séculos XVI, XVII ou XVIII, estamos falando, em sentido análogo, de algo que é em parte igual e em parte diferente do que é feito atualmente.

IHU On-Line – De que forma, na experiência das missões jesuíticas, podemos compreender a articulação entre saberes científicos globais e culturas locais, tomando como referência a América Colonial do século XVI?
Miguel de Asúa – As missões funcionaram como uma estrutura global. Agora, todos falamos de “globalização” e este não é um conceito fácil de entender. Isso quer dizer que eles levaram um padrão comum de pensamento e ação para todos os lugares. Esse padrão, como já é conhecido, era por sua vez estruturado e flexível, e por isso obteve sucesso.

Em relação ao nosso tema, o aspecto “estruturado” correspondia à “ciência” contemporânea europeia (coloco-a entre aspas para enfatizar que está pouco relacionada com o que entendemos como tal, como já foi dito na pergunta anterior). A flexibilidade estava na adaptabilidade, na receptividade ao conhecimento local. Isto sucedia o aspecto científico como qualquer outro, a arte ou a política (as formas de governo). Os jesuítas não distinguiam muito o que hoje consideramos áreas separadas. A cultura renascentista ou barroca era muito mais integrada nesse sentido.

IHU On-Line – Como os contatos com os povos indígenas da América impactaram os saberes científicos da Companhia de Jesus? E em que medida a cultura indígena também se transformou a partir desse contato?
Miguel de Asúa – Acredito que o ponto mais significativo do projeto jesuíta, que implicitamente começa com a História Natural e Moral das Índias de José Acosta , é ter que dar conta de um universo totalmente novo, de um “Novo Mundo”, com sua imensa geografia, seus povos, seus animais e plantas nunca antes vistos. Tudo isso em termos de evangelização. Apesar do anacronismo histórico, vale pensar sobre o que aconteceria se missionários cristãos do futuro chegassem a um planeta habitado por diversas criaturas e civilizações, e tivessem que falar sobre isso, contar como são as coisas para o povo da Terra. Bom, esse “falar de”, esse discurso, que em grande medida estava relacionado com o mundo natural (ainda que também teve um aspecto histórico e cultural, que é a outra metade deste discurso) é o que os jesuítas criaram: uma nova forma de falar sobre algo não visto.

Isso não dependia das culturas locais. O que aconteceu é que logicamente houve um processo de aculturação, no qual as culturas nativas incorporaram muitas técnicas. A erva-mate, a base da economia das missões, é o exemplo mais chamativo: os jesuítas descobriram a maneira de cultivá-la e isso transformou profundamente a sociedade guarani (e a relação desta com seu meio ambiente, que não é pouco), porque permitiu outro tipo de exploração e também uma maior produtividade do que a que tinham quando colhiam a planta em estado silvestre.

IHU On-Line – No que consistia a cultura científica na região do Rio da Prata entre o final do século XVIII e início do século XIX? Qual o papel dos jesuítas nesse contexto?
Miguel de Asúa – Enquanto os jesuítas estavam lá, até 1767, o ano da expulsão, é legítimo dizer que, em grande medida, a cultura esteve em suas mãos – o padre Guillermo Furlong S. J. exagerou a respeito da importância dos jesuítas, certamente, mas não de maneira demasiada! Havia lá outras ordens e congregações, mas é certo que os jesuítas tiveram o papel mais relevante. Isso aconteceu em duas áreas que nem sempre se distinguem: por um lado, as universidades, que eram em grande parte tradicionais e conservadoras; por outro lado, as missões, essa sociedade de fronteira, na qual havia a possibilidade de experimentar, havia mais liberdade de pensamento e de ação, pois, diante da experiência da missão, estavam surgindo todas as categorias escolásticas – para qualquer pessoa que tenha visitado a selva, por mais que tenha sido como turista, não é difícil entender isto.

Com a expulsão dos jesuítas, os franciscanos tomam sua posição no Rio da Prata, mas também começa a aparecer, a ganhar destaque, a chamada “ilustração católica” ou ibero-americana, que foi uma ilustração eclética, na qual buscou-se negociar entre conteúdos antigos e novos. Nesse sentido, penso (há outros colegas que enxergam as coisas de maneira diferente) que os jesuítas aqui foram basicamente barrocos e a abertura entre eles para essa ilustração foi muito tímida ou polêmica.

IHU On-Line – Quais as contribuições de indígenas para a constituição dessa cultura médica e científica no Rio da Prata?
Miguel de Asúa – É justamente essa região onde se verificou a transferência mais forte dos conhecimentos locais sobre a natureza para a cultura letrada europeia. É natural que os boticários e enfermeiros jesuítas tivessem recorrido ao saber local como medicina botânica. É preciso levar em consideração que a medicina europeia, de raiz galênica, era também basicamente herbórea, de maneira que havia certa continuidade enquanto prática. A professora Eliane Deckmann Fleck , da Unisinos, investigou e descobriu manuscritos farmacológicos que dependiam em grande parte do uso guarani das plantas, com uma “racionalização” europeia – isso fica notório no tratado do irmão Pedro Montenegro , que foi o mais importante deles.

No entanto, é preciso ter cuidado em não criar uma imagem “romântica”, não pensar que os jesuítas recebiam de braços abertos o saber curativo indígena: em muitos casos havia desconfiança, já que estava vinculado a práticas mágico-religiosas que os padres viam como “diabólicas” e, além disso, estes eram muito firmes na farmacêutica europeia: nas missões usavam-se drogas locais como substitutos, mas havia uma preferência pelas europeias, que já eram conhecidas (tudo isso é lógico e humano: uma pessoa prefere o que já conhece e traz consigo, e, pouco a pouco, vai descobrindo outras coisas, o que há de novo e em algum caso poderia ser melhor, situação que também acontecia).

IHU On-Line – Como se dava a atividade científica nas reduções jesuíticas?
Miguel de Asúa – Eram os jesuítas aqueles que, individualmente, faziam coisas pelas quais sentiam vocação. Mas é preciso tomar cuidado para não exagerar as coisas: alguns jesuítas dedicavam-se a isto e sempre, sempre, dentro do âmbito da atividade missioneira. É uma tradição que está viva na Companhia de Jesus e que é possível percebê-la ainda hoje: cada jesuíta segue sua vocação, mas dentro do estilo espiritual e de evangelização que enxerga todas as coisas em Deus. O que era escrito tinha, direta ou indiretamente, significado missionário, seja por si só ou para contribuir com o funcionamento cotidiano das missões (como por exemplo, a medicina e a farmácia, mas também a astronomia e a geografia, que eram eminentemente práticas, para orientar e determinar as coordenadas dos povos das missões).

IHU On-Line – A Companhia de Jesus também assume um protagonismo na organização das histórias naturais do Novo Mundo. Qual a importância desses trabalhos, especialmente de cronistas e viajantes jesuítas, para o campo das ciências naturais? No que o trabalho desses religiosos se difere das práticas de outros cronistas e viajantes?
Miguel de Asúa – A história natural dos jesuítas, como assinalamos antes, tinha um valor missionário. Um renomado arqueólogo argentino, já falecido, “Pepe” Pérez Gollán , uma vez me disse que ele pensava que as histórias naturais dos jesuítas eram semelhantes a field guides (guias de campo) para os futuros missionários, textos que permitiram conhecer a geografia, flora, fauna e os povos entre os quais teriam de viver. Acredito que, em grande medida, isso aconteceu assim. Não são escritos “científicos” para os parâmetros do século XVIII – a história natural desse século era a de Lineu e Buffon , e os jesuítas de nossas regiões não a usavam, e ainda mais, não queriam usá-la. Algum deles, inclusive, afirmam que o que eles fizeram não é história natural, mas um relato em linguagem cotidiana acerca das plantas que trouxeram e dos idiomas que conheceram.

A questão da linguagem é algo fundamental, porque o registro das criaturas está relacionado com o aprendizado dos idiomas: os nomes de plantas e animais fazem parte de dicionários de línguas nativas, léxicos que deviam aprender para evangelizar. Novamente, tudo termina confluindo na tarefa da missão. Um reconhecido especialista em ciência jesuítica, Mordechai Feingold , argumentou que houve jesuítas que cultivaram as ciências por si próprias, sem fins religiosos. Pode ser, mas em todo caso, isso não transcorreu no Novo Mundo, nem nas missões, mas na Europa.

IHU On-Line – De que forma os manuscritos de “matéria médica” dos jesuítas, atravessados pelos saberes das culturas originárias da América, impactam o campo da ciência médica da Europa dos séculos XVIII e XIX?
Miguel de Asúa – Não tiveram muito impacto. Os herbários jesuíticos das missões não foram publicados na Europa, mas circularam como manuscritos. No entanto, havia exportação de drogas. A principal, o caso mais famoso, foi a quinina , descoberta no povoado de Loja (Equador), que foi uma das primeiras com utilização específica (ou seja, medicamentos efetivos contra a causa de uma doença).

Os jesuítas montaram um comércio muito grande com a quinina e com outras drogas – por exemplo, a partir do Rio da Prata, exportava-se o aguaribay . Mas também eram importadas muitas drogas que, no que compete aos jesuítas que dependiam da Espanha (o caso do Brasil é diferente, obviamente), tinham que seguir a rota do Pacífico e esses medicamentos eram caríssimos. Daí surgiu a necessidade de buscar substitutos locais. Isso acontecia também em todas as regiões de missão, na América no Norte (atual Canadá), na Índia e no distante Oriente.

IHU On-Line – Os processos de independência da América impactaram de alguma forma as atividades científicas desenvolvidas nas reduções jesuítas?
Miguel de Asúa – No tempo da independência, a partir da segunda metade do século XIX, os jesuítas já haviam sido expulsos há 40 anos e as reduções seguiram seu caminho histórico sem elas. Eu não estudei esse período. Outros colegas, como o renomado Ernesto Maeder , que lamentavelmente faleceu há pouco, ou a historiadora estadunidense Julia Sarreal , ocuparam-se disso.

IHU On-Line – Como a experiência da relação entre jesuítas e indígenas pode inspirar novos caminhos para o desenvolvimento das ciências médicas e naturais no nosso tempo?
Miguel de Asúa – A experiência jesuítica nas missões foi resultado de uma encruzilhada histórica particular. Resta delas um espírito de abertura, de curiosidade e de busca para entender o que, à primeira vista, parece incompreensível. Em áreas mais específicas, é crescente o interesse da indústria farmacológica (uma das maiores do mundo) para investigar a matéria médica local e encontrar drogas úteis. Nesse sentido, poderíamos dizer que os jesuítas foram os pioneiros de tudo isso, da mesma forma que inauguraram uma forma de conceber o mundo como unidade na diversidade, algo que nos é acessível atualmente, mas em uma chave secular. Por isso, não é sempre fácil traçar paralelos históricos: os jesuítas sempre pensaram pela perspectiva do divino e a cultura global contemporânea corre em grande medida por caminhos de negação do sagrado ou por suas formas não cristãs.■

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