Edição 530 | 16 Outubro 2018

A escrita jesuítica desvela narrativas da história da América colonial

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João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

María Salinas analisa documentos produzidos pela Companhia como importantes fontes com outros olhares que permitem ovas descobertas

Quem estuda o período colonial não pode abrir mão de ter entre suas fontes de consulta e pesquisa documentos produzidos pelos padres jesuítas. Mais do que relatos de ações em missões, focadas na conversão, esses registros vão relevando modos de vida tanto na américa espanhola quanto na portuguesa. “Os documentos jesuítas, os escritos produzidos não só pelos missionários, mas também pelos estudiosos da Companhia, são relevantes como fontes históricas que contribuem para os estudos do período colonial americano”, enfatiza a historiadora María Laura Salinas. Para se ter ideia, muitos relatos sobre a natureza, a geografia e as populações originárias dos primeiros anos do Brasil no período colonial, e até pré-colonial, têm como autores esses religiosos. O que tem feito muitas pessoas questionarem, já que são narrativas de um sobre outros, movidas pelo desejo de expandir a cristandade. “É notório que as narrativas jesuítas manifestaram um objetivo claro. No entanto, podemos estabelecer uma diferenciação entre essas fontes de acordo com o gênero e o momento em que foram redigidas”, aponta.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Salinas ainda detalha como novas abordagens sobre esses documentos têm superado essa perspectiva de parcialidade e, com isso, revelado muitas nuances antes desconhecidas sobre o período colonial. “O material produzido pelos jesuítas é, sem dúvida, parcial, da mesma forma que qualquer documento que venha de diferentes atores coloniais neste contexto”, pontua. E desafia: “o trabalho do historiador implica transitar pelo processo de crítica da fonte e valorizar os dados e contribuições que oferecem os ditos documentos”.

A professora também destaca que muito ainda há para se conhecer sobre esse período, e as recentes abordagens multidisciplinares têm contribuído. Por isso, defende que “é necessário continuar com a revalorização da história missioneira, conscientizando os governos dos povos atuais, antigo território de várias das missões, sobre a proteção do patrimônio, a conservação dos restos e a cultura local, que se remete à experiência missionária”.

María Laura Salinas é doutora em História pela Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, instituição em que também é diplomada em Estudos Avançados em História Moderna. Ainda é mestra em História da América pela Universidad Internacional de Andalucía, também na Espanha, e pesquisadora independente junto ao Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas - Conicet. Atua também como professora na Facultad de Humanidades da Universidad Nacional del Nordeste, na Argentina. Entre seus livros publicados, destacamos Dominación colonial y trabajo indígena. Un estudio de la encomienda en Corrientes colonial (Ceaduc, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a historiografia vem compreendendo as missões jesuíticas? Quais são as mudanças mais significativas nos estudos históricos acerca das missões? Nesse sentido, que revisões historiográficas foram feitas sobre esse assunto no decorrer do tempo?
María Laura Salinas – A visão atual sobre a história das missões jesuíticas não é a mesma de algumas décadas atrás. A importância que o tema adquiriu, em geral, a valorização de seus vestígios monumentais, o processo analítico que a evolução de sua história sofreu e as diversas perspectivas teóricas e metodológicas pelas quais seu estudo se submete, nos abre um panorama significativo para sua abordagem e para o surgimento de novas questões. A historiografia sobre as Missões superou embates, controvérsias, momentos de rispidez e polêmica, sem que estas peculiaridades conseguissem dissipar o interesse pelas mesmas.

As missões jesuíticas foram entendidas pela historiografia a partir de diversos olhares e perspectivas relacionadas a diferentes contextos que foram acompanhando esse processo de construção historiográfica. Desde o final do século XIX, ao princípio e meados do século XX, houve períodos de indiferença, discussão e debate sobre as missões e a obra dos jesuítas, sucedidos por momentos de revalorização e resgate da experiência missionária no mundo jesuíta Guarani. As inúmeras publicações divulgadas nas últimas décadas como resultado de diversas pesquisas contribuíram para a reflexão e problematização de temas que talvez tenham sido estudados sob uma ótica e hoje são revisitados com novas perguntas.

A abordagem interdisciplinar que começou a ser realizada nas missões nos últimos tempos talvez seja uma das mudanças que contribuiu em maior medida para ampliar essa perspectiva e forneceu linhas transversais de análise que enriqueceram as abordagens. O interesse da antropologia, da arqueologia e da linguística – apenas para citar algumas das disciplinas que fizeram contribuições significativas nos últimos tempos – destacaram novos tópicos de pesquisa e geraram novas respostas que colocam a temática missionária na agenda acadêmico-científico, cultural, turística e governamental.

IHU On-Line – Que importância têm os escritos da Companhia de Jesus para a composição da história do período colonial na América?
María Laura Salinas – Na mesma linha de abordagens interdisciplinares a que nos referimos anteriormente, a partir de diferentes pontos de vista, as fontes desempenharam um papel fundamental, abrangendo não apenas os documentos históricos, mas também os conjuntos de estátuas e restos ainda menores, que constituem testemunhos-chave para repensar a missão e seu funcionamento. As novas perguntas, que são feitas às antigas fontes jesuíticas, vistas nos primeiros estudos, a partir de abordagens vinculadas apenas à evangelização ou às atividades da Companhia, colocam em voga a relação guarani-jesuítica no caso dos últimos tempos das missões paraguaias e a ação indígena como variável para ressignificar os estudos missionários.

Os documentos jesuítas, os escritos produzidos não só pelos missionários, mas também pelos estudiosos da Companhia, são relevantes como fontes históricas que contribuem para os estudos do período colonial americano, em geral. Em contraste com outra documentação oficial operante em diferentes arquivos americanos, estes escritos – Relatórios, Cartas Ânuas, registros demográficos, descrições, relatos da Companhia, entre outros – são escritos necessários para continuar contribuindo para a construção da história dos séculos XVII e XVIII, no espaço americano.

IHU on-Line – Em que pontos os documentos da Companhia de Jesus são diferentes dos de outras narrativas do período colonial, seja de outras ordens religiosas ou de pessoas mais vinculadas ao poder temporal?
María Laura Salinas – A documentação jesuítica cumpriu um papel preponderante, fornecendo descrições, narrativas e um olhar original sobre algumas questões que contribuem para ressignificar os estudos realizados. A escrita tem sido um dos pilares nos quais a Companhia de Jesus se apoiou. Desde os tempos de Inácio de Loyola , era premissa básica que todos os jesuítas mantivessem correspondência frequente, informando sobre as atividades realizadas e a descrição dos lugares visitados. Essa circunstância produziu no Novo Mundo, por exemplo, um material documental abundante que foi elaborado no âmbito da necessidade urgente de contar, narrar e relatar suas experiências missionárias. Por mais que o interesse estivesse centrado na questão da evangelização, a partir de uma perspectiva etnográfica, eles também descreveram as diferentes etnias com as quais estabeleceram vínculos em solo americano.

Os padres da Companhia de Jesus contribuíram para a produção de um grande conjunto de obras que incluíam tanto a crônica eclesiástica quanto a vida política e social dos distritos americanos, às quais se somaram muitíssimas monografias dedicadas aos povos indígenas ou a regiões específicas, o que enriqueceu sua contribuição à historiografia . Deve-se notar que a maior quantidade de documentação vem dos próprios jesuítas. Observa-se um desequilíbrio em relação à produção de fontes escritas da sociedade colonial e, obviamente, dos próprios grupos étnicos envolvidos no processo de evangelização. No entanto, os documentos dos jesuítas também possuem diferentes características de acordo com seus propósitos, sua origem, quem os escreve e o contexto de produção.

IHU On-Line – Apesar de ter organizado e trazido muitas informações sobre o Novo Mundo, como cartas, crônicas e diários de viagem dos jesuítas, esse material é visto por muitos como parcial a partir do momento em que revelam narrativas do católico europeu diante de um "outro" desconhecido. Você concorda com esse tipo de leitura? Como superar esse impasse fazendo uma leitura crítica e sóbria dos documentos?
María Laura Salinas – A historiografia atual tem caracterizado de diversas maneiras o corpus documental produzido pela Companhia de Jesus, uma dessas visões mais críticas defende que essas fontes apenas refletem "um discurso triunfalista do trabalho apostólico da Igreja no Novo Mundo" , enfatizando principalmente a tarefa missionária e destacando a vontade de sacrifício do sujeito missioneiro. Portanto, a partir dessa perspectiva, essas fontes não possuíam elementos para análise histórica e antropológica, pois eram meros instrumentos de propaganda de sua tarefa evangélica na Europa.

É notório que as narrativas jesuítas manifestaram um objetivo claro. No entanto, podemos estabelecer uma diferenciação entre essas fontes de acordo com o gênero e o momento em que foram redigidas. Além das fontes geradas como uma comunicação regular entre os povos e a Ordem na Europa ou as primeiras crônicas e testemunhos, houve obras que permitiram explicar as especificidades dos povos ameríndios, o que localizou os missionários como verdadeiros "antropólogos avant la lettre" , pois em seus escritos eles transformaram suas experiências em etnologias comparativas ou relatos pessoais de diários de campo, nos quais forneciam dados sobre sua interação com as sociedades indígenas.

O material produzido pelos jesuítas é, sem dúvida, parcial, da mesma forma que qualquer documento que venha de diferentes atores coloniais neste contexto (funcionários, oficiais, encomenderos, vizinhos). O trabalho do historiador implica transitar pelo processo de crítica da fonte e valorizar os dados e contribuições que oferecem os ditos documentos em diálogo com outros escritos da época e com a bibliografia que foi previamente analisada para temas semelhantes.

IHU On-Line – A partir dos escritos e documentos da Companhia, como podemos entender qual foi a influência da cultura e do conhecimento indígena sobre os jesuítas?
María Laura Salinas – Os documentos jesuíticos descrevem o mundo indígena de maneira muito completa, a princípio de maneira detalhada, a partir dos primeiros contatos e da necessidade de conhecer o "outro", mas o número de descrições diminui na medida em que o mundo indígena passa a ser conhecido. No entanto, há interesse em conhecer costumes, práticas e saberes indígenas que são interpretados e incorporados como parte de um conhecimento necessário, que deve ser parte de quem realiza o processo de conversão.

O conhecimento da língua é um aspecto-chave, pois sem a incorporação de tal conhecimento seria impossível pensar sobre os processos de evangelização, e por isso as dificuldades em algumas regiões como a do Chaco , em que a língua é conhecida por alguns poucos missionários que estão se movendo e substituindo nessas missões. A natureza, os animais, as práticas de cura, os costumes, embora seja a aspiração dos missionários erradicar, são amplamente conhecidas por eles, de modo que podemos afirmar que há uma influência notável de ditos saberes sobre os jesuítas.

IHU On-Line – Quais são as principais semelhanças e diferenças na ação dos jesuítas na América Espanhola e na América Portuguesa? Como essas características aparecem nos escritos?
María Laura Salinas – Os jesuítas na América portuguesa chegam cedo (no final do século XVI) se comparamos com a instalação das primeiras missões do Paraguai (1609-1610). Porém, em ambos os casos são agentes importantes do conhecimento geográfico e territorial que avançam no sertão, na floresta ou na selva. Por outro lado, os colégios e outras casas formaram o núcleo inicial de vilas e cidades brasileiras, além de contribuírem também para que o caso hispânico fosse o centro educativo para os filhos das elites daquelas cidades. Não há grandes diferenças entre as missões que a Ordem possuía em diferentes locais, embora a experiência dos 30 povos oferecesse conotações particulares no caso da América espanhola.

Em tempos posteriores à expulsão, é possível encontrar diferenças, segundo o olhar de alguns autores, a partir da medição da produção dos escritos de ambos os grupos de jesuítas. Mesmo que a formação dos jesuítas espanhóis e portugueses seja semelhante, a produção literária dos jesuítas portugueses é menor em quantidade e, consequentemente, em qualidade. A razão está nas diferentes condições sob as quais os políticos portugueses (Pombal ) e espanhóis (conde de Campomanes , principalmente) planejaram a expulsão de seus respectivos jesuítas . Antes da expulsão de 1767, o povoado de Hervás, por exemplo, registrou o assédio do marquês de Pombal sobre os mais importantes escritores jesuítas, como a conhecida perseguição ao escritor e líder dos jesuítas portugueses expulsos, Manuel de Azevedo. Também consta nos registros de Hervás que a expulsão de 1759 interrompeu a edição do Dicionário Latino-Português do filólogo, historiador e escritor José Caeiro.

Da mesma forma, o curso de filosofia do filósofo e orador Manuel Marques, residente em Urbania, também foi interrompido: "Escreveu: era um Curso de filosofia do qual, ao saírem os jesuítas dos domínios portugueses, havia três volumes prontos para serem impressos". Sem dúvida este curso foi enquadrado na tendência filosófica dos jesuítas desta época, que foi, certamente, o ecletismo. Os escritos dos expulsos da América Hispânica tiveram melhor sorte, constituindo uma valiosa historiografia do exílio com contribuições de conhecimento científico que merecem ser consultados para toda pesquisa.

IHU On-Line – Como o domínio colonial foi estabelecido na América a partir do século XVI? A ação das missões jesuíticas reconfigura essa dominação? Como?
María Laura Salinas – A dominação colonial é configurada a partir do século XVI de várias formas, entre elas a submissão, a violência e a conquista de territórios e povos, que parecem ser o denominador comum. A presença dos religiosos da Companhia e de outras ordens impõe práticas de dupla submissão: ao espanhol e ao frade, em alguns contextos. O religioso, com suas formas moderadas, propõe novas práticas de dominação que impõem a vida em comunidade, sedentária, agrícola e artesanal. No início do século XVII, os acordos entre o provincial Diego de Torres e o visitador Francisco de Alfaro sobre a isenção do tributo para os primeiros anos, distanciam o índio das missões da encomienda e de formas servis sujeitas aos espanhóis, e isto pressupõe, sem dúvida, um modelo diferente de dominação.

IHU On-Line – Como entender o processo de escravização indígena a partir dos documentos da Companhia? Essa ideia de "escravização" torna-se uma noção de "trabalho", especialmente nas reduções? Como?
María Laura Salinas – A ideia da escravidão indígena é uma questão que está sendo abordada em maior escala nos últimos anos, com resultados muito bons. Da historiografia, existem setores que se recusam a pensar sobre essa escravidão pela via jurídica, que considera o indígena como vassalo da coroa. No entanto, hoje em dia é necessário aprofundar-se na práxis colonial e nas formas de dominação e servidão subjacentes a outros modelos, que são impossíveis de visualizar neste contexto.
Nos documentos jesuítas, é mais difícil identificar diretamente essas práticas servis, mas, como mencionado na pergunta, uma noção de trabalho pode ser analisada sob essa perspectiva.

IHU On-Line – Quais são os desafios para entender as missões jesuíticas nos complexos processos políticos, econômicos, sociais e culturais da América colonial, indo além do espectro religioso?
María Laura Salinas – As missões estão sendo abordadas com novos olhares, fontes e perguntas. Não obstante, existem diversos caminhos para continuar. A partir de uma perspectiva acadêmico-científica, segue a problematização e a resolução de hipóteses sobre as práticas, saberes, atores, simbologia da missão, entre outros temas. O cruzamento de variáveis e a transversalidade de temas supõem um exercício metodológico que deve continuar sendo realizado.

Do ponto de vista cultural, é necessário continuar com a revalorização da história missioneira, conscientizando os governos dos povos atuais, antigo território de várias das missões, sobre a proteção do patrimônio, a conservação dos restos e a cultura local, que se remete à experiência missionária. O conhecimento dessa história por parte dos atuais habitantes do espaço dessas antigas missões seria fundamental para a construção de identidades regionais.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
María Laura Salinas – As Jornadas Internacionais sobre as Missões Jesuíticas foram espaços significativos de construção historiográfica, reflexão, acordos e camaradagem entre pesquisadores das Missões. Desde a primeira conferência realizada em 1984 na cidade de Resistência, em Chaco, na Argentina, esta reunião se consolidou e vem crescendo em número de pesquisadores e temáticas abordadas. Embora existam diversas reuniões científicas que abordem, entre suas principais temáticas, as missões ou a Companhia de Jesus em relação às missões, na minha opinião, estas Jornadas são as mais representativas, porque reúnem pesquisadores que há décadas estudam essas questões.

O interessante é que eles apresentam uma evolução em suas abordagens. Embora o foco esteja nas Missões Jesuíticas, incorporou-se uma perspectiva analítica global que nos permite visualizar a missão em um contexto muito mais amplo, que transcende fronteiras e nos permite discutir conceitos, visualizar problemas de pesquisa e compartilhar perspectivas sobre os estudos que estão sendo realizados.■

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