Edição 529 | 01 Outubro 2018

O caráter político – e incômodo – da Pedagogia do oprimido

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos

Para Alexandre Saul, a atualidade desse e de outros escritos de Paulo Freire está em se colocar num movimento contra-hegemônico

“A Pedagogia do oprimido enfatizou o inegável caráter político da educação, ou seja, o fato de que a prática educativa exigirá, sempre, em qualquer contexto no qual se realize, que se indague acerca dos valores que darão direção às opções sobre a formação humana.” A frase do professor Alexandre Saul resume a essência desse texto de Paulo Freire que, de certa forma, perpassa toda sua obra. É justamente isso que faz dessas perspectivas algo incômodo. “Perturba, em especial, grupos autoritários e outros, que intencionam colocar a educação a serviço da exploração capitalista e da dominação cultural”, completa. Para Saul, nisso também consiste a atualidade de todo o pensamento freireano.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor recupera a ideia de Freire de que “não há neutralidade na produção de conhecimentos, quer por meio da ciência, quer por meio de outras formas de interpretar e intervir no mundo”. “A obra de Paulo Freire nos convoca a refletir sobre as complexas relações entre conhecimento, ideologia, classe social, cultura, pedagogia, subjetividade, intersubjetividade e as possibilidades históricas e dialéticas de manutenção ou superação do status quo”, acrescenta. “O pensamento de Paulo Freire teve sequência e segue vivo, desafiando seus interlocutores a criar novas perguntas e procurar repostas para questões que ele não teve tempo de responder, cabendo, pois, a nós, trazê-lo conosco e reinventar suas ideias na atualidade, com fidelidade aos seus princípios”, completa Saul, estimulando um dos princípios básicos de Freire: manter o pensamento em movimento e construção.

Alexandre Saul é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, docente pesquisador da Universidade Católica de Santos - UniSantos, onde atua no Programa de Pós-Graduação. Faz parte do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UniSantos, Coordena a Cátedra Paulo Freire dessa Instituição e é membro da Rede Freireana de Pesquisadores.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Há 50 anos, Paulo Freire escrevia o ensaio em que tratou da “pedagogia do oprimido”. Como compreender a gênese dessa perspectiva freireana?
Alexandre Saul – A Pedagogia do oprimido é, sem dúvida, a obra mais conhecida do professor Paulo Freire, na qual ele faz uma crítica original e radical à naturalização e à reprodução das desigualdades e injustiças sociais em sociedades estratificadas, e propõe uma educação dialógica e problematizadora, superadora do que ele nomeou de educação-bancária, na qual os educandos são objetos e não sujeitos, nos quais se depositam conteúdos. A educação dialógica é construída sob a ótica das vítimas da opressão, com participação autêntica e co-laboração, tendo como objetivo processos individuais e coletivos de libertação. Trata-se de uma obra gerada na e a partir da prática concreta de Freire, e de suas reflexões teóricas sobre ela, experienciadas em contextos de pobreza afetando parte significativa da população, marcados por governos populistas/autoritários, e de grande efervescência social e artístico-cultural, desde suas experiências com a alfabetização de adultos, no Nordeste brasileiro, no final dos anos 1950, até o seu trabalho como consultor da Unesco para o Ministério da Agricultura do Chile, durante o exílio forçado pelo golpe civil-militar, entre 1964-1969.

A necessidade de que os oprimidos possam se expressar, compreender as situações de desumanização a que estão submetidos como realidades históricas, e a de que se assumam como sujeitos da luta pela superação dessas situações, recuperando sua humanidade, constituem-se como desafios de ontem e de hoje, e estão na base da criação da Pedagogia do oprimido. Não se está falando, portanto, de uma pedagogia para o oprimido, mas, sim, de uma pedagogia construída com e pelos explorados e despossuídos, porque esses são os sujeitos da transformação que, ao libertarem-se, dialeticamente, libertam também os opressores. Transformar, para Paulo Freire, é atuar no sentido da construção de uma nova ordem social, mais justa e solidária, para todos.

IHU On-Line – Como conceber a atualidade da Pedagogia do oprimido hoje, num tempo que somos atravessados pelas tecnologias e relações que se dão em "bolha"?
Alexandre Saul – Em tempos em que se propugna a ideologia do individualismo, se exacerba a competitividade entre as pessoas, e cerceiam-se propostas plurais e críticas de pensamento, a Pedagogia do oprimido se apresenta com grande atualidade e vigor. Isso porque ela pode se constituir em um referencial analítico-propositivo para a construção de políticas e práticas de educação fortemente dialogais e potencializadoras de solidariedade, que propicia consistência à vida coletiva, de tolerância, que permite a unidade na diversidade, e de criticidade, que enseja um conhecimento antidogmático, que busca o real significado das situações existenciais dos sujeitos, e se põe como condição para ações transformadoras.

Em relação à utilização de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação - TDICs na educação, pode-se dizer que Paulo Freire, em seu tempo, esteve aberto a elas, reconhecendo-lhes o valor, desde que a tecnologia estivesse a serviço do desocultamento da realidade e do estímulo à curiosidade e autonomia dos educandos, não do apassivamento desses.

IHU On-Line – No início da década de 1990, Paulo Freire punha em prática o paradigma da formação permanente dos educadores. No que consistia essa sua proposta? De que forma essa proposta poderia inspirar os educadores de hoje, desestimulados pelos baixos salários e falta de estrutura nas escolas?
Alexandre Saul – A formação de educadores está presente em várias obras de Paulo Freire, sobretudo nas seguintes produções: “Medo e Ousadia: o cotidiano do professor”, “Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar”, “A Educação na Cidade”, e “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática docente”. A formação permanente freireana compreende o ser humano como devir, como projeto, exigindo que o educador assuma sua condição humana de inconclusão, que implica na busca incessante de “ser mais” e na possibilidade de estar sempre aprendendo/ensinando. Ela incide sobre as situações-limite vivenciadas pelos educadores e delas parte, buscando compreender suas razões, em um processo dialético e sistemático de ação-reflexão-ação, tido como exigência para se viver a relação teoria-prática e transformar a realidade.

A formação permanente é uma responsabilidade ética, política e profissional do educador, expressa na necessidade de que ele esteja em permanente formação e de que ele se prepare para uma ação docente dialógica e desveladora da realidade, que se distancie de um processo mecânico de transmissão de conhecimentos. Além disso, é uma das condições essenciais para a melhoria da qualidade da educação, sendo a humanização e a construção de uma sociedade mais justa e solidária os marcos definidores do que se entende por qualidade da educação. Como prática social e historicamente situada, a formação permanente requer presença e participação do coletivo de docentes, e afirma a necessidade da luta pelas condições objetivas que viabilizam o trabalho do professor.

Vale dizer, ainda, que essa proposta de formação valoriza e respeita os educadores como sujeitos de conhecimento, capazes de avaliar criticamente as suas práticas e decidir sobre seus percursos formativos. A concepção de formação permanente freireana reage a propostas de formação que nascem da exclusiva compreensão de especialistas sobre as necessidades dos professores, que se utilizam de forma apriorística de elementos já consagrados do campo teórico da educação e que são impostas aos docentes por seus superiores. A formação permanente dos educadores, na gestão Paulo Freire, como Secretário de Educação do Governo de Luiza Erundina de Sousa (1989-1992), abrangeu múltiplas modalidades, sendo a principal delas os “grupos de formação”, nos quais se buscava garantir o princípio da ação-reflexão-ação. Essa proposta se diferenciava dos tradicionais “cursos de férias”, “cursos de 30 horas”, “treinamentos”, “capacitações”, “reciclagens” e outros que podem até receber avaliação positiva por parte dos educadores, no momento em que são realizados.

No entanto, a repercussão desses cursos na prática cotidiana é, por vezes, considerada insatisfatória, pelos próprios educadores, por serem avaliados por eles como “muito teóricos” e desvinculados das necessidades do dia a dia. Apostava-se na escola como um espaço coletivo de ensino-aprendizagem, na qual a formação se dirigia a todo o grupo de educadores, em oposição às formações nas quais os professores participam individualmente. Esperava-se que o educador pudesse experienciar, no grupo, o mesmo processo que era esperado que desenvolvesse junto aos educandos, nas escolas. Ou seja, uma prática de análise e crítica da realidade, no transcurso de uma vivência da metodologia dialógica que permitisse a construção de conhecimentos com a compreensão de que o educador e o educando são sujeitos cognitivos, afetivos, sociais e políticos.

Sem otimismo ingênuo

É preciso, contudo, recusar o otimismo ingênuo de que a formação de educadores é a alavanca para a transformação da escola, da educação e da sociedade, assim como o pessimismo mecanicista de que só se pode fazer alguma coisa depois de mudanças infraestruturais. Isso significa nem superestimar e nem subestimar a formação docente, assumindo-a como essencial ao desenvolvimento profissional dos educadores e à reflexão crítica sobre a opção de educação que sempre precisa ser feita e que informa e orienta a prática.

Conquistar e desenvolver novos modelos contra-hegemônicos de formação de educadores é um grande desafio que se coloca para práticos e pesquisadores desse campo de estudo. Claro que isso não se faz de um dia para outro, pois exige grande esforço político, teórico e metodológico. No entanto, com inspiração em Paulo Freire, é preciso buscar fazer, dentro de limites históricos, o que é possível ser feito hoje, para tornar o que ainda não pode ser feito mais possível.

IHU On-Line – Como compreender as resistências a teoria freireana na atualidade? O que essas posições revelam e como, a partir do próprio Freire, responder a essas críticas?
Alexandre Saul – A proposta radicalmente democrática e crítica de Paulo Freire incomoda. Perturba, em especial, grupos autoritários e outros, que intencionam colocar a educação a serviço da exploração capitalista e da dominação cultural. Ao defender uma educação não doutrinária, com rigor científico, feita com seriedade e alegria, atravessada pela discussão crítica do acesso aos bens materiais de produção e reprodução da vida, da diversidade cultural, e, portanto, comprometida com a criação coletiva de uma sociedade mais justa e fraterna, Freire será sempre contestado por aqueles que rejeitam essa opção político-pedagógica.

Pior ainda é que muitas críticas desses grupos são feitas com desonestidade intelectual, ou seja, sem conhecimento do pensamento de Freire, ou falseando/distorcendo suas ideias, propositadamente. Por outro lado, algumas críticas à obra de Freire, tais como o uso de uma linguagem machista em seus primeiros escritos, partiram de grupos que tomaram seriamente seus escritos como objeto de análise e de prática, e, nesses casos, Paulo Freire esteve sempre aberto ao diálogo, incorporando sugestões e ampliando sua própria consciência em torno de diferentes aspectos da opressão, ao longo de sua vida.

De qualquer maneira, penso que, ao ler Freire, é preciso estar atento ao contexto de produção de suas obras e ao seu caráter histórico, e ter clareza de que o trabalho do autor recifense não está circunscrito ao livro Pedagogia do oprimido. O pensamento de Paulo Freire teve sequência e segue vivo, desafiando seus interlocutores a criar novas perguntas e procurar repostas para questões que ele não teve tempo de responder, cabendo, pois, a nós, trazê-lo conosco e reinventar suas ideias na atualidade, com fidelidade aos seus princípios.

IHU On-Line – Que transformações a “pedagogia do oprimido” trouxe para a área da Educação?
Alexandre Saul – A Pedagogia do oprimido enfatizou o inegável caráter político da educação, ou seja, o fato de que a prática educativa exigirá, sempre, em qualquer contexto no qual se realize, que se indague acerca dos valores que darão direção às opções sobre a formação humana. É por isso que se diz, com Paulo Freire, que não há neutralidade na produção de conhecimentos, quer por meio da ciência, quer por meio de outras formas de interpretar e intervir no mundo. Assim, no processo de educar e educar-se, os sujeitos estarão se perguntando: Por quê e para quê conhecer? Conhecimento para quem? A quem serve esse conhecimento?

As respostas a essas e outras questões explicitarão as escolhas éticas e estéticas dos sujeitos, seus interesses e sonhos, e desencadearão a necessidade de uma busca permanente por aproximar o discurso e a prática, com coerência. Freire, na Pedagogia do oprimido, posiciona-se a favor da necessidade do desenvolvimento de uma consciência crítica de si e da realidade, e da transformação de contextos sociais opressivos, ao lado dos excluídos, em uma luta esperançosa e coletiva por autonomia e emancipação. A obra de Paulo Freire nos convoca a refletir sobre as complexas relações entre conhecimento, ideologia, classe social, cultura, pedagogia, subjetividade, intersubjetividade e as possibilidades históricas e dialéticas de manutenção ou superação do status quo, a partir de um crivo ético-crítico de justiça social. Ainda, Freire propõe o diálogo como um caminho democrático e humanizador de produção de conhecimentos, desvelamento da realidade e superação da contradição educador-educando, que se opõe a teorias do conhecimento e metodologias autoritárias e pouco criativas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Alexandre Saul – Eu gostaria de propor aos leitores que conheçam a pesquisa realizada a partir da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, coordenada pela profa. Dra. Ana Maria Saul , que partilhou a docência com Freire, por 17 anos, nessa Instituição. Essa pesquisa, apoiada pelo CNPq, já se encontra em sua 3ª edição e articula pesquisadores de 20 Programas de Pós-Graduação em Educação sediados em 11 estados brasileiros. Realizada a "várias mãos", a pesquisa investiga a atualidade, a materialidade e a reinvenção do legado de Paulo Freire, em políticas públicas e práticas educativas, em diferentes contextos.

Informações sobre os resultados obtidos até o momento podem ser acessadas em dossiês temáticos, publicados na Revista e-Curriculum, do PPG Educação: Currículo da PUC-SP, e em outras produções dos pesquisadores envolvidos. Destaco, ainda, o importante papel que as Cátedras Paulo Freire e os Grupos de Pesquisa (presentemente são 40 GPs registrados no CNPq que têm Paulo Freire entre suas referências centrais) vêm desempenhando no desenvolvimento dessa e de outras investigações, sobre e a partir da práxis de Freire. No momento, no Brasil, estão instaladas nove Cátedras Paulo Freire.

Por fim, enfatizo que o pensamento de Paulo Freire, embora contra-hegemônico, segue ativo e em expansão, como é possível atestar em função da crescente produção científica e bibliográfica que tem nesse autor suporte analítico, epistemológico, metodológico e ético-político; do interesse que educadores de diferentes partes do mundo demonstram na pedagogia freireana, dado seu compromisso com a promoção de justiça social; e pelo fato de a trajetória de vida e trabalho de Paulo Freire serem fonte de inspiração para educadores progressistas, no século 21.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição