Edição 528 | 17 Setembro 2018

China é um Estado capitalista autoritário e paternalista com características socialistas

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João Vitor Santos | Tradução: Luisa Somavilla | Edição: Vitor Necchi

Eugenio Menegon afirma que o Partido Comunista teme discussão e discórdia, bem como o exercício da escolha democrática dos cidadãos

Mesmo que um verniz ideológico ainda seja ensinado e adotado pelos burocratas, a China cresceu a partir de um modelo nacionalista baseado no crescimento econômico. “O modelo político da República Popular da China é de um Estado capitalista autoritário e paternalista com características socialistas”, define Eugenio Menegon. “Na verdade, é um paradoxo apenas na superfície.” Na sua visão, o país “tem aproveitado as novas tecnologias para exercer controle sobre a dissidência e a população em geral, reprimindo as minorias étnicas”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele cita “o triste caso de Hong Kong”, que mostra o quanto o Partido Comunista teme, principalmente, “a discussão e a discórdia, bem como o exercício da escolha democrática dos cidadãos da China”. Reconhece, no entanto, que “o nacionalismo, a ‘privatização’ da vida individual e a riqueza econômica são os elementos que os indivíduos, principalmente grande parte das novas gerações, estão dispostos a apoiar e a seguir”.

Menegon aponta que “o crescimento econômico tem sido fundamental para a ascensão da China”. Notadamente nos últimos 40 anos, “a liderança chinesa conseguiu desencadear forças empresariais reprimidas na China e dar liberdade suficiente para permitir às pessoas ‘enriquecer’ e criar alguma ‘esfera privada’ para aproveitar a vida”. Ressalva ainda que nem todos venceram nesse processo, pois “ainda há regiões pobres e principalmente grupos étnicos como os uigures, em Xinjiang, e os tibetanos, que foram o lado perdedor da história (para não falar no meio ambiente)”.

Ao analisar as transformações mais significativas que o país vem vivendo desde o período imperial, Menegon afirma que “a distribuição de terras aos camponeses pelos comunistas, entre o final dos anos 1940 e início dos 1950, é, sem dúvida, a mudança mais importante trazida pela revolução”. Com isso, “uma estrutura de classes antiga foi reformulada”.

Eugenio Menegon é graduado em Línguas e Literaturas Orientais pela Universidade de Veneza, na Itália, mestre em Estudos Asiáticos e doutor em História pela Universidade da Califórnia em Berkeley. É professor de História da China na Universidade de Boston.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Dentro do próprio Oriente, a China tem muitas especificidades. Quais as principais diferenças do modelo chinês na comparação com outros países? E como compreender o protagonismo que a China vem assumindo na relação com outros países orientais?
Eugenio Menegon – O modelo político da República Popular da China - RPC é de um Estado capitalista autoritário e paternalista com características socialistas. Na verdade, é um paradoxo apenas na superfície. Embora o verniz ideológico comunista ainda seja ensinado e usado por burocratas, o país desenvolveu-se no sentido de um modelo nacionalista alimentado pelo crescimento econômico e tem aproveitado as novas tecnologias para exercer controle sobre a dissidência e a população em geral, reprimindo as minorias étnicas.

Um número relativamente pequeno de pessoas do Partido Comunista da China exercem controle sobre os mecanismos de poder, em conjunto com familiares e aliados políticos e com o apoio de grandes empresas. Isso faz com que o Estado chinês seja mais capaz de resistir a tempestades econômicas e políticas do que sociedades democráticas, mantendo o fetiche da "estabilidade" a todo custo. O principal significado é ter uma administração estável praticada pelo Partido Comunista, para sempre.

A recente concentração de poder nas mãos de Xi Jinping representa uma involução no modelo de liderança coletiva e mudança geracional introduzido por Deng Xiaoping em 1978 para remediar os excessos do maoísmo . O tamanho e a economia do país, bem como suas despesas militares nos últimos tempos, tornam a RPC uma força formidável na Ásia Oriental. Mas este é um modelo político, não cultural. Sociedades chinesas como Taiwan evoluíram pacificamente no sentido do pluralismo e da democracia. Ser chinês não impede que haja democracia. O triste caso de Hong Kong mostra que o que o Partido Comunista teme é principalmente a discussão e a discórdia, bem como o exercício da escolha democrática dos cidadãos da China. No entanto, hoje, na China, o nacionalismo, a ‘privatização’ da vida individual e a riqueza econômica são os elementos que os indivíduos, principalmente grande parte das novas gerações, estão dispostos a apoiar e a seguir. Enquanto a economia vai bem, o Partido Comunista está bem, mesmo sem uma reforma política (que definitivamente não está em pauta).

IHU On-Line – A partir de uma perspectiva histórica, como compreender o protagonismo que a China vem assumindo no cenário global nos últimos anos?
Eugenio Menegon – Já ouvi o seguinte: “É a economia, tolinho!”. Certamente, o crescimento econômico tem sido fundamental para a ascensão da China. Nos últimos 40 anos, a liderança chinesa conseguiu desencadear forças empresariais reprimidas na China e dar liberdade suficiente para permitir às pessoas "enriquecer" e criar alguma "esfera privada" para aproveitar a vida. Nem todos venceram nesse processo, ainda há regiões pobres e principalmente grupos étnicos como os uigures, em Xinjiang, e os tibetanos, que foram o lado perdedor da história (para não falar no meio ambiente).

A tecnologia hoje oferece soluções para a China ser um verdadeiro líder global e tentar reduzir os problemas da rápida industrialização, corrigindo os danos ambientais e sociais com melhor infraestrutura e novas tecnologias. Mas não há nenhuma mudança política à vista. Sugiro procurar a fantástica série de Anuários da China para obter mais informações e também o comentário do grande especialista no assunto, Geremie Barmé , para ter uma melhor compreensão das raízes profundas de mudança e continuidade.

IHU On-Line – Quais as transformações mais significativas que o país vem vivendo desde o período imperial?
Eugenio Menegon – A distribuição de terras aos camponeses pelos comunistas, entre o final dos anos 1940 e início dos 1950, é, sem dúvida, a mudança mais importante trazida pela revolução. Uma estrutura de classes antiga foi reformulada. As relações de gênero também se equalizaram, chegando à nova lei de casamento em 1950. Quando as coisas não davam certo, a pretensão do Estado era direcionar a economia ao centro e deixar a ideologia, e não a tecnologia e o conhecimento, determinar a política.

O desastre do Grande Salto para a Frente e a fome que aconteceu a seguir, assim como a Revolução Cultural , foram tentativas de Mao de conservar o poder e implementar a “revolução contínua”. Isso impediu o avanço da China como uma nação moderna durante décadas. Os Estados Unidos, o Ocidente e a União Soviética colaboraram para deixar a China sem saída ideologicamente. Desde 1978, a adoção do “capitalismo com características chinesas” impede os problemas do esquerdismo ideológico, mas deixa a verdadeira reforma política estagnada.

IHU On-Line – Como a China de hoje apreende o Ocidente, de questões culturais a econômicas?
Eugenio Menegon – A China é um país. Talvez seja melhor falar do que compõe a China em sua dimensão humana: seu povo, seus políticos e burocratas, acadêmicos... A China é tão grande quanto a Europa e muito mais populosa. É um lugar complicado e diversificado. A visão do governo sobre o "Ocidente" (que hoje já não existe: deve-se falar em Estados Unidos, União Europeia e assim por diante) também é um cenário complicado. Existem diferentes políticas em relação a diferentes atores: os Estados Unidos de Trump ainda fazem parte de um “Ocidente” monolítico? Xi Jinping abraçou o manto da globalização contra o protecionismo dos Estados Unidos e outros populismos europeus.

Em termos de cultura, em nível popular, as indústrias da cultura e do entretenimento dentro da China são tão grandes, e o mercado interno é tão grande, que o discurso interno pode se sustentar sem fazer referência ao “Ocidente”. Isso não significa que as formas culturais do mundo exterior não são adotadas (música pop sul-coreana, rap, filmes de Hollywood), mas são reinterpretadas e às vezes politicamente adaptadas na China. Alguns artistas ainda estão tentando resistir e ter consciência crítica, mas é difícil. Muitos deles são mais conhecidos fora do que na própria China. Os acadêmicos ficam entre a linha política do Partido Comunista e sua própria integridade intelectual. Eles andam sobre um terreno difícil e poucos se atrevem a falar o que pensam. Porém, ainda há debates acadêmicos e artísticos, de maneiras mais prudentes e sigilosas.

IHU On-Line – A China é muito coesa no que diz respeito a questões culturais. A forma como os chineses protegem sua cultura de influências externas pode ser uma chave para também se compreender sua ascensão econômica e geopolítica? Como?
Eugenio Menegon – Não acredito que “proteger a cultura chinesa” seja uma questão. A cultura da China não corre o risco de extinção. Na verdade, minha esperança é que pessoas fora da China aprendam mais sobre seus povos e culturas, pelo menos tanto quanto muitos chineses sabem sobre as nossas culturas. As subculturas sociais e culturas étnicas dentro da China (uigures, tibetanos e outras minorias) correm o risco de ser destruídas pelo chauvinismo Han e a homologação tecnológica ou domesticadas pelo turismo e pelo exotismo.

IHU On-Line – O conceito de humanismo, como conhecemos no Ocidente, aparece de alguma forma na cultura chinesa? Quais as implicações sociais e políticas disso?
Eugenio Menegon – A China tem uma excelente tradição de humanismo, desde a Antiguidade. Ser alguém melhor era uma preocupação de muitos de seus filósofos, de Confúcio a Chuang-Tzu e toda a tradição confucionista. O indivíduo muitas vezes era incorporado à coletividade (família, Estado), mas ainda há um profundo sentimento de que, no final, temos que enfrentar a eternidade como indivíduos também. Segundo o historiador Sima Qian , da dinastia Han, “千人之諾諾不如一士之諤諤 – a condescendência da multidão não se compara à recusa de uma pessoa” (Sima Qian – 司馬遷, século I a.C.). Isso não mostra como o indivíduo chinês tem uma responsabilidade de enfrentar a injustiça, a subserviência e o populismo? Isto tem consequências importantes na política: imperativos éticos individuais, que também são as bases do bem comum, devem enfrentar as injustiças cometidas pelos poderosos, mesmo à custa da morte.

IHU On-Line – A relação econômica entre China e países do Ocidente pode implicar também em assimilação de valores culturais chineses?
Eugenio Menegon – Precisamos aprender sobre a China e sua cultura, cada vez mais. A cultura chinesa como um todo tem muito a oferecer ao mundo, e até agora nós compramos suas mercadorias, mas pouco compreendemos os valores culturais chineses. Aqui eu falo sobre o sólido material transmitido a partir da Antiguidade e os pensamentos inovadores de intelectuais e artistas de vanguarda, antes de serem assimilados e comercializados na China e no mercado internacional de ideias e artefatos. O artista Ai Weiwei é um brilhante exemplo de integridade e genialidade, bem como de independência do poder. Eu não necessariamente incluiria entre os melhores exemplos da difusão cultural chinesa a versão higienizada e politizada difundida pelos Institutos Confúcio, embora acredite que mesmo essas instituições têm um papel positivo em despertar o mundo exterior para a importância e a beleza dos valores da cultura chinesa.

IHU On-Line – A partir das alianças que a China vem estabelecendo com diversos países, tanto no Oriente como no Ocidente, podemos considerar que estamos diante de um outro processo de colonização? Por quê?
Eugenio Menegon – Essa onda de “colonização chinesa” é puramente econômica por enquanto. Os países de terceiro mundo e particularmente seus líderes (que são corruptíveis) têm a responsabilidade de decidir se os acordos são justos ou coloniais. As organizações econômicas internacionais precisam prestar atenção e ajudar as economias pobres a andar com os próprios pés, sem se render a nenhum poder único (os Estados Unidos fizeram isso no passado, agora China e outros juntaram-se). Se a China ‘entrega as mercadorias’ sem os meios de produção, manipulando as finanças de um país e controlando a mão de obra local, respeitando as regras democráticas, permitindo que os países escolham seu próprio caminho de desenvolvimento, não vou ser eu o hipócrita a apontar o dedo para Beijing. Mas isso SE...

IHU On-Line – Tomando como exemplo o cristianismo na China, podemos falar que há no país um processo de inculturação da fé cristã e valores mais ocidentalizados? Por quê?
Eugenio Menegon – O cristianismo, relativamente falando, é uma nova fé na China. As raízes da Igreja Católica atual vêm dos anos 1580; das Igrejas Protestantes, dos anos 1850. O budismo chegou à China no ano 200 a.C. Por isso, obviamente, tem uma história mais longa como religião estrangeira. Deve haver 12 milhões de católicos e de 75 milhões a 100 milhões de protestantes na China hoje, todos sob a liderança chinesa. Os protestantes, principalmente os evangélicos, são a religião que mais cresce na China hoje, e é difícil contar e controlar as igrejas cristãs. Com igrejas nacionalmente reconhecidas ou com raízes locais, a inculturação está de fato acontecendo. A real questão é a repressão e o controle do governo: é uma longa tradição chinesa que não vai desaparecer tão cedo.

IHU On-Line – Como o senhor observa as relações entre a China e o Vaticano?
Eugenio Menegon – Acho que o Partido Comunista tem mais vantagens nessa relação, e o Vaticano está em uma posição mais fraca na negociação. Moldar seus princípios para se ajustar ao governo chinês não necessariamente será bom para os católicos na China. Estudei a história de um determinado lugar na China, onde a confrontação com o governo não é novidade. A sociedade está mudando, e para o catolicismo o verdadeiro desafio é a migração maciça do campo para a cidade: a base rural da igreja está desaparecendo, e os católicos não estão inovando nem se espalhando em cidades, como os evangélicos e outros protestantes. Acho que a urgência do Vaticano de se "resolver" com a República Popular da China e encontrar um lugar legítimo no país pode ser muito mais um sinal de ansiedade acerca destas mudanças sociorreligiosas do que qualquer outra coisa.

IHU On-Line – Qual a influência dos missionários cristãos, especialmente os jesuítas, na China a partir do século XVI?
Eugenio Menegon – A influência dos missionários jesuítas na China ficou mais visível em projetos de construção do Estado, na corte imperial, durante os séculos XVII e XVIII. O impacto dos métodos científicos europeus introduzidos pelos jesuítas, no entanto, fica circunscrito, já que permaneceram limitados principalmente ao governo dinástico para projetos de alta segurança (cartografia, balística). Algumas ideias (desde matemática e astronomia até a perspectiva geométrica na pintura) se espalharam entre os membros de um pequeno setor das elites intelectuais, mas eu diria que foi o impulso das missões do século XIX, depois de 1850 (principalmente protestantes e urbanas), que realmente exerceram uma influência duradoura na China (na medicina, na ciência, na engenharia, na educação), visível ainda hoje. ■

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