Edição 528 | 17 Setembro 2018

O protagonismo chinês e o processo de redistribuição do poder

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Patricia Fachin

Júlio César Rodriguez diz que a China é um polo de atração global, mas isso não significa que está em curso uma reorganização geopolítica

Apesar de algumas análises apostarem na inter-relação crescente entre China, Índia e Rússia, três dos cinco países que compõem o BRICS, Júlio César Rodriguez pondera que “a articulação entre estes três países é limitada”. Segundo ele, “o que ocorre na verdade é que a China torna-se cada vez mais um polo de atração global e isto faz com que a maioria dos países busque parcerias e aproximações com ela. Assim, os países que fazem parte do grupo têm oportunidades adicionais de aproximação com a China e, quando podem, fazem uso do grupo para aproximarem-se dela”.

Rodriguez contesta ainda a tese de que a China está desempenhando um papel central numa possível reorganização geopolítica. “Ainda é cedo para afirmarmos que está em curso uma reorganização geopolítica”, afirma na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. O que está em curso, ao contrário, frisa, é “um processo de redistribuição de poder”. Ele explica: “As potências ocidentais perdem espaço frente aos atores da Ásia, em especial China e Índia. Esta redistribuição, por sua vez, pode resultar em novas dinâmicas regionais e mudanças nos relacionamentos estratégicos entre os países ao longo do século XXI. Contudo, ainda figuram como ator mais relevante geopoliticamente os Estados Unidos”.

Júlio César Cossio Rodriguez é professor de Relações Internacionais no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal de Sergipe - UFS. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Lisboa, também é mestre em Ciência Política e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Nos anos 2000 foi criado o BRICS , um grupo político de cooperação que reuniu economias emergentes. Que avaliação é possível fazer desse grupo 12 anos depois da sua constituição e qual é o saldo da participação brasileira nesse grupo?
Júlio César Rodriguez – O grupo inicialmente foi criado em 2009 por iniciativa dos líderes de quatro países, Brasil, Rússia, Índia e China - BRIC, e posteriormente foi convidada a fazer parte do grupo a África do Sul. No início dos anos 2000, um relatório do Goldman Sachs mencionou que estas quatro economias seriam as mais pujantes em meados do século XXI. Consideravam que tais economias teriam recursos para se tornarem cada vez mais relevantes. Inicialmente o grupo foi derivado da atuação dos líderes dos seus países, com o propósito de criar um grupo de cooperação em que estes países distintos em diversas áreas pudessem conversar sobre temas estratégicos para seus desenvolvimentos.

O grupo rapidamente configurou-se para os países membros um ativo usual de suas políticas externas. Integrar o grupo conferiu algum prestígio aos integrantes que o utilizaram como mecanismo importante de suas ações externas. Entretanto, as diferenças entre os seus membros implicam em dificuldades de coordenação e de ampliação da cooperação, por isso torna-se atualmente em um Foro de encontro dos líderes dos países que fazem parte do grupo.

O saldo da participação brasileira no grupo, em geral, em termos diplomáticos é positivo, pois permitiu ao Brasil projetar sua inserção internacional para além de suas capacidades. Todavia, este tipo de grupos de países heterogêneos e com baixa ou nenhuma institucionalização, implica em uma limitação nos benefícios aos seus participantes. Contudo, cabe destacar que a possibilidade de anualmente o país se reunir com estes atores de relevo internacional é algo positivo, pois apesar de não resultar em posições conjuntas, as reuniões permitem aproximações em áreas específicas e a ampliação das relações bilaterais entre os seus membros.

Destaco que a cada nova cúpula dos BRICS novas parcerias são feitas e a cooperação entre os países se aprofunda. Entretanto, deve-se lembrar que o grau de institucionalização de processos cooperativos é menor do que processos de integração, isto significa que oscilações políticas e/ou econômicas dos países afetam as relações entre eles. Como é o caso do Brasil nos últimos anos.

IHU On-Line - Ainda sobre o BRICS, qual é a relação do Brasil com os países do grupo hoje?

Júlio César Rodriguez – Como mencionei na resposta anterior, a atuação do Brasil junto ao grupo continua, porém as turbulências internas afetaram frontalmente a política externa do país, que se retraiu nos últimos anos. Isto implica que as relações exteriores do país tenham se retraído como um todo.

IHU On-Line – Alguns especialistas avaliam que Rússia, Índia e China são os três países que se sobressaem no BRICS, os quais estão se articulando entre si. Como avalia esse tipo de análise e qual é o significado da aproximação desses três países e, em especial, da China nessa aproximação?
Júlio César Rodriguez – Esta afirmação é complicada. Como já mencionado, trata-se de um grupo com países heterogêneos. A Rússia destaca-se por ser a herdeira principal das capacidades militares da ex-União Soviética. Possui, por exemplo, um arsenal nuclear superior ao dos Estados Unidos em número de ogivas nucleares. Por outro lado, configura-se como uma autocracia ou semidemocracia a depender do critério utilizado, e tem um regime semipresidencial, que nos últimos anos concentrou poderes no presidente. A China, por sua vez, caracteriza-se por ser economicamente mais importante que todos os outros membros, seu PIB é quase o dobro da Índia e três vezes e meia o de Rússia e Brasil. Por seu turno, a Índia apresenta nos últimos anos altos índices de crescimento econômico. Estes países também se diferem por seus regimes políticos distintos: enquanto a Índia pode ser considerada uma democracia longeva, a China, a depender dos critérios, pode ser considerada não democrática ou uma autocracia. Assim, cada um dos três pode destacar-se por alguma de suas características.

A articulação entre estes três países é limitada. O que ocorre na verdade é que a China torna-se cada vez mais um polo de atração global e isto faz com que a maioria dos países busque parcerias e aproximações com ela. Assim, os países que fazem parte do grupo têm oportunidades adicionais de aproximação com a China e, quando podem, fazem uso do grupo para aproximarem-se dela.

IHU On-Line – Alguns especialistas também avaliam que está em curso uma reorganização geopolítica no mundo por conta da ascensão da China. Concorda com esse tipo de análise? Quais são os fatores que demonstram essa reorganização geopolítica?
Júlio César Rodriguez – Ainda é cedo para afirmarmos que está em curso uma reorganização geopolítica. O que é possível afirmar é que está em curso um processo de redistribuição de poder. As potências ocidentais perdem espaço frente aos atores da Ásia, em especial, China e Índia. Esta redistribuição, por sua vez, pode resultar em novas dinâmicas regionais e mudanças nos relacionamentos estratégicos entre os países ao longo do século XXI. Contudo, ainda figuram como ator mais relevante geopoliticamente os Estados Unidos.

IHU On-Line – Como fica o Brasil nesse cenário de reorganização geopolítica? Que papel o Brasil desempenharia nesse novo contexto geopolítico?
Júlio César Rodriguez – O Brasil, nesta redistribuição de poder global e possível alteração geopolítica futura, ainda não definiu o seu papel. O papel que o Brasil pode desempenhar dialoga frontalmente com a capacidade que terá de organizar e estabilizar politicamente seu entorno estratégico, especialmente a região sul-americana. Configurar-se como potência regional que lidere processos de estabilização das tensões regionais e promova o desenvolvimento econômico coletivo poderia ser o papel a ser desempenhado pelo Brasil. Entretanto, para isto necessitaria de amplo consenso social e político interno para garantir os recursos necessários para construir coletivamente com os vizinhos sua liderança.

IHU On-Line – De modo geral, qual é o papel dos países da Costa do Atlântico nessa reconfiguração geopolítica que teria a China como protagonista?
Júlio César Rodriguez – Como mencionado anteriormente, a reconfiguração geopolítica ainda está distante de se tornar realidade. Os países da Costa do Atlântico, quer na América Latina quer na África, continuarão a ter um papel relevante no comércio atlântico, especialmente relacionados aos mercados Europeus e do Norte da América. A China torna-se paulatinamente o centro de gravidade da economia mundial, entretanto o papel das economias tradicionais, EUA e UE, não pode ser subestimado. Os dados das exportações brasileiras, por exemplo, mostram que a Ásia é o destino de cerca de 38% das exportações e América do Norte e Europa de 34%. O papel dos países Atlânticos seguirá relevante para os países que estão “virados” para ele e têm suas infraestruturas de comércio exterior voltadas ao Atlântico.

IHU On-Line – O que as relações externas entre China e Brasil demonstram sobre o modo como a China vê o Brasil num possível reposicionamento geopolítico? Os recursos naturais e a exportação de commodities são os principais produtos que interessam à China hoje ou há outros interesses em relação ao Brasil?

Júlio César Rodriguez – Esta é uma questão relevante. O Brasil é um parceiro importante da China em termos econômicos e políticos. Têm atraído diversos investimentos chineses e desenvolve projetos conjuntos com a China em diferentes áreas de inovação tecnológica e científica. Entretanto, ao olharmos para a balança comercial do Brasil com relação à China, vemos que há uma característica preocupante de aumento das exportações de commodities e de importações de produtos manufaturados. Isto implica em uma relação econômica desigual, na qual os benefícios da distribuição de renda derivada da industrialização ficam no lado chinês e os riscos da desindustrialização ficam para o lado brasileiro. Com relação aos interesses chineses no Brasil, há uma gama de setores que a atuação chinesa ocorre, mas posso destacar que os setores vinculados ao setor agroexportador e de mineração vêm ganhando espaço. Por outro lado, os investimentos chineses em setores estratégicos como o energético também vêm ganhando espaço no país.

IHU On-Line – Essa postura chinesa diante de um país como o Brasil se repete com outras nações?
Júlio César Rodriguez – A atuação chinesa na América do Sul é similar ao caso do Brasil, porém modificam os produtos de interesse. A China não costuma ter uma posição única para toda uma região, define prioridades e atua caso a caso.

IHU On-Line – Muitos economistas criticam a política econômica brasileira, em especial porque ela é centrada na exportação de commodities para países como a China. Entretanto, para além dessa política, o Brasil poderia ter feito uma política diferente? Em que sentido?
Júlio César Rodriguez – É fácil ao analista olhar para o passado, reconhecer os erros e receitar soluções. Contudo, as decisões econômicas tomadas ao longo do início do século XXI estiveram vinculadas à promoção do crescimento econômico do país, ancorado, em parte, na balança comercial favorável. Assim, as oportunidades aos setores exportadores de vender para o mercado chinês em expansão foram decisivas para que este setor tivesse crescimento. Este crescimento afetou, não diretamente, a capacidade industrial do país, que por sua vez depende de outros fatores agregados da economia; todavia, a concorrência dos produtos industriais chineses importados a menor preço afetou a capacidade produtiva das indústrias nacionais. Por isso, o que poderia ser feito era uma política econômica específica para a China. Entretanto, como mencionado anteriormente, o processo decisório de cada momento histórico deve ser entendido em função do contexto. E naquele contexto o mercado chinês oferecia grandes oportunidades tanto aos exportadores de produtos agrícolas e minérios quanto aos importadores de produtos industrializados da China.

IHU On-Line – O senhor já afirmou em outras ocasiões que nas vezes em que o Brasil alcançou proeminência no cenário global, isso se deu por conta da permissão de outros países, como Alemanha, União Soviética e China. Pode nos dar um panorama geral de como isso aconteceu e que tipo de proeminência o Brasil alcançou nesses momentos?
Júlio César Rodriguez – Sim, o que ocorre, em geral, é que o Brasil ao longo do século XX teve momentos de maior protagonismo que outros. Minha tese demonstra empiricamente que tais momentos ocorrem quando coincidem três condições: (a) a redistribuição de poder ao nível do sistema internacional, (2) o crescimento no poder material do Brasil (econômico e militar, por exemplo) e (3) a emergência de um ator internacional com grande poder, que tenha duas características: (a) queira fazer frente ao ator predominante do período e (b) se aproxime da América Latina. Estas configurações ocorreram nos anos 30, nos anos 70 e agora nos anos 2000. A chamada Barganha Nacionalista do presidente Getúlio Vargas , a Política Externa Independente e a Política Externa do final do governo de Fernando Henrique Cardoso e as dos governos Lula , se inserem nos períodos em que os fatores coincidiram. No primeiro momento o rearranjo de forças do entreguerras se caracteriza pelo crescimento no poder da Alemanha, que coincide com o início do processo de industrialização do Brasil e o início dos primeiros investimentos militares nacionais. Nesta ocasião a Alemanha, para fazer frente aos EUA, buscou aproximar-se da região e do Brasil, que por sua vez soube aproveitar-se desta situação e barganhou seus interesses junto à potência de maior poder, os Estados Unidos.

IHU On-Line – Alguns avaliam que o futuro do Brasil como potência mundial depende, entre outros fatores, de oportunidades globais. Mas quais são as oportunidades no cenário global de hoje?
Júlio César Rodriguez – A ascensão do Brasil a um patamar superior, como explicado anteriormente, depende de oportunidades estruturais. Redistribuições de poder, em especial, e a emergência de uma potência com potencial revisionista. Contudo, estas oportunidades estruturais só podem ser aproveitadas quando o Brasil também apresenta crescimento no seu poder. O atual momento da política externa brasileira, por exemplo, é emblemático disto. A redistribuição de poder estrutural está em curso, a China configura-se como potência com potencial revisionista, com aproximação da região, porém o Brasil está em crise econômica e política. O resultado é que apesar das oportunidades o que ocorre é uma grande retração na política externa do país. Portanto, ao Brasil não bastará ter a fortuna das oportunidades, é necessário que tenha a virtude de poder agir em política externa.

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