Edição 527 | 27 Agosto 2018

O ser humano como veneno do mundo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Julie Dorrico e Ricardo Machado

Denilson Baniwa, artista visual, denuncia por meio de sua obra a possibilidade de destruição do mundo pela, entre outras formas, política do agronegócio

Um reclame publicitário contemporâneo, patrocinado por uma montadora de automóveis em parceria com a maior emissora de TV do Brasil, invade diariamente a casa dos brasileiros para dizer que o “Agro é pop”. O que há de velado no comercial é a mensagem de que todos aqueles povos que resistem ao modelo estariam na “contramão” da história. “A política do agronegócio com o apoio da grande mídia e de grupos conservadores têm difundido a ideologia do desenvolvimento econômico ao mesmo tempo que fomenta um discurso de ódio e preconceito contra as populações indígenas como justificativa ao impeditivo ao progresso do país”, ressalta Denilson Baniwa, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Reativamente, porém, o contato dos indígenas com a cultura digital, por exemplo, é visto de forma preconceituosa por parte da população. “O progresso tecnológico da humanidade vem contribuir em diversos setores da sociedade e é instrumento a serviço dos seres humanos. Já a identidade cultural está ligada à história de um povo, seus signos, suas pertenças, visões de mundo, cosmologia e o sagrado”, explica o entrevistado ao apresentar suas razões do porquê não se pode alegar que os povos tradicionais imersos nas tecnologias contemporâneas não perdem suas identidades.

Ao abordar temas relacionados aos desajustes climáticos e ambientais, que têm sido mote de suas exposições, Baniwa considera que a destruição do mundo é possível. “Estamos vivendo esse tempo onde a destruição dos seres humanos é bem provável, pois estamos destruindo tudo o que encontramos pela frente: os oceanos cheios de lixo, as florestas que viraram pastos sem vida, as cidades poluídas, as doenças que são derivadas do estilo de vida atual, as violências proporcionadas pela manutenção do poder”, argumenta. “É provável que este mundo vá acabar logo, se não formos mais conscientes. A notícia boa é que logo após a destruição, haverá uma renovação onde o próprio mundo irá se curar, pois o veneno do mundo é o ser humano, onde reside toda sorte de maldade”, complementa.

Denilson Baniwa é natural do Rio Negro, interior do Amazonas. É artista visual e atualmente reside no Rio de Janeiro. Por ter acesso aos meios ocidentais e educação acadêmica, pôde criar uma forma de unir o contemporâneo ao tradicional indígena. Seus trabalhos vão desde sua vivência enquanto ser indígena ao metafórico que se apropria de ícones ocidentais para comunicar a luta e pensamento indígena brasileiro, usando como suporte telas, instalações e meios digitais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Na exposição Terra Brasilis: o agro não é pop (2017), você, por meio da arte plástica, denuncia a exploração da natureza brasileira em favor das monoculturas pelos ruralistas. Você vê o agronegócio como uma economia que impulsiona o genocídio dos povos indígenas no país?
Denilson Baniwa – Sim. O projeto nacional de expansão agrícola e permissividade do uso de agrotóxicos conduzido pelos interesses do agronegócio e encabeçado pela frente ruralista do atual governo tem intensificado o conflito de terras, execuções de lideranças indígenas, envenenamento por pulverização de agrotóxico via aérea, a contaminação das águas potáveis e do solo e expulsão dos povos originários de suas terras, deixando-os à própria sorte. A política do agronegócio com o apoio da grande mídia e de grupos conservadores têm difundido a ideologia do desenvolvimento econômico ao mesmo tempo que fomenta um discurso de ódio e preconceito contra as populações indígenas como justificativa ao impeditivo ao progresso do país.

A política do agronegócio impacta a todos e o desconhecimento dessa questão anuncia um desastre humanitário em curto prazo. De acordo com representantes do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, há um genocídio anunciado sobre 120 comunidades indígenas decorrentes da expansão do agronegócio, mineradoras e madeireiras, nos espaços em que sobrevivem.

IHU On-Line – Ainda em Terra Brasilis, podemos ver a denúncia do preconceito pela sociedade brasileira para com os indígenas. Se um sujeito indígena usa celular, cartão de crédito, possui blog, fala outros idiomas, ele é assumido como alguém que perdeu sua alteridade. O que você diria sobre essa crença?
Denilson Baniwa – Esta crença diz respeito ao desconhecimento sobre o que vem a ser identidade cultural. O progresso tecnológico da humanidade vem contribuir em diversos setores da sociedade e é instrumento a serviço dos seres humanos. Já a identidade cultural está ligada à história de um povo, seus signos, suas pertenças, visões de mundo, cosmologia e o sagrado. Dessa forma a utilização de “modernidades” ou novas ferramentas não significa o abandono ou a perda da cultura indígena, pode, inclusive, ajudar a fortalecer a identidade e transpor mudanças que ocorreriam naturalmente ou forçadamente pela violência externa.

IHU On-Line – Você considera que há uma ocupação do território, mas realizado de modo simbólico por artistas e estudantes indígenas no espaço urbano, fazendo exposições?
Denilson Baniwa – Certamente, estamos ocupando um território simbólico e hegemônico que historicamente construiu um imaginário da identidade nacional de forma excludente e discriminatória. Essa ocupação se verifica justamente pelo não reconhecimento que indígenas possam ser produtores de arte e conhecimento além do que está preestabelecido pelo imaginário da Academia e da sociedade. Os povos nativos sempre foram representados, expostos e estudados por meio do seu silenciamento. Dessa forma a arte produzida por indígenas, seja ela qual for (artes plásticas, cinema, teatro, fotografia etc.), nunca estará destituída de seu sentido e intenção política, mesmo que inconscientemente.

IHU On-Line – Por que é importante perceber que o trânsito da aldeia para a cidade, e da cidade para a aldeia, pode fortalecer as lutas dos povos indígenas?
Denilson Baniwa – O trânsito entre a cidade e a aldeia estabelece uma ponte possível de comunicação e aquisição de conhecimento da cultura do outro, sobre suas Leis, educação, relações sociais e políticas, inclusive suas ferramentas e possibilidade de defesa contra abusos. Desta forma foi possível aos indígenas encontrarem meios de lutar por seus direitos e garantir autonomia, por exemplo.

IHU On-Line – Como as tecnologias digitais podem contribuir com as lutas e as pautas indígenas?
Denilson Baniwa – Desde os anos pré-Constituição de 1988 que os povos indígenas viam a importância de se apropriarem dos meios de comunicação com debates presentes em suas discussões e esses meios já eram utilizados em prol do Movimento Social Indígena. Nos tempos atuais, esta necessidade permanece presente e se faz cada vez mais importante, pois através destas tecnologias e conhecimentos é possível realizar o reconhecimento e monitoramento territorial, a divulgação das questões indígenas dentro e fora do país, criar redes de povos onde possam unir ideias e estratégias, dentre outras possiblidades que são possíveis por meio das novas tecnologias.

IHU On-Line – Quais os desafios políticos enfrentados pelo povo Baniwa?
Denilson Baniwa – Assim como outros povos do Rio Negro, os maiores desafios estão na manutenção do território, da subsistência e da cultura. Para isto são pensadas estratégias de educação diferenciada, atualização dos métodos de produção de alimentos, manejo e proteção dos recursos existentes.

IHU On-Line – O povo Baniwa sofre ou sofreu com perdas territoriais? Como está a situação do povo atualmente?
Denilson Baniwa – Por se encontrar em local de difícil acesso, o território Baniwa ainda é bem protegido em relação a outros povos, como por exemplo, os povos do Centro-Oeste que sofrem constantemente com o avanço do agronegócio. Os principais inimigos no Rio Negro são a mineração ilegal, os madeireiros e o tráfico de drogas que usam as fronteiras como rotas de transporte. Os Baniwa (e outros povos) estão na fronteira do Brasil, Colômbia e Venezuela, onde há bastantes atividades de narcotraficantes e paramilitares dos outros países.

IHU On-Line – A natureza, para o ocidente, foi instrumentalizada e, por isso mesmo, tomada como um lugar de extração de recursos com fins lucrativos. A cosmologia Baniwa prenuncia algo sobre a devastação das florestas?
Denilson Baniwa – Para os Baniwa o mundo começou com grandes catástrofes que resultaram do mau uso do poder e por desentendimentos entres os seres que habitavam a terra; após os deuses antigos reconstruírem o mundo, quem mantém a ordem são os pajés, chamados Guardiões dos Cosmos.

A destruição do mundo é uma possibilidade presente, pois está marcado pelo mal que ainda vive dentro das pessoas. Estamos vivendo esse tempo onde a destruição dos seres humanos é bem provável, pois estamos destruindo tudo o que encontramos pela frente: os oceanos cheios de lixo, as florestas que viraram pastos sem vida, as cidades poluídas, as doenças que são derivadas do estilo de vida atual, as violências proporcionadas pela manutenção do Poder.

É provável que este mundo vá acabar logo, se não formos mais conscientes. A notícia boa é que logo após a destruição, haverá uma renovação onde o próprio mundo irá se curar, pois o veneno do mundo é o ser humano, onde reside toda sorte de maldade.

IHU On-Line – Nas redes sociais sua última exposição se chama Relacionamento (agro)Tóxico. Poderia nos falar sobre o sentido que ela enseja?
Denilson Baniwa – Quando comecei a pesquisar para construir as obras do Terra Brasilis O Agro não é Pop, pude ter acesso a vários estudos e notícias de como estamos comendo e bebendo veneno todos os dias sem saber.

Relacionamento (agro)Tóxico é um misto de sentimentos e pode ser interpretado de várias maneiras. Eu quero pensar que as obras falam sobre como Nós somos aquilo que comemos, somos construídos do que nos alimentamos e isto vai desde o alimento em si, envenenado com agrotóxico, até o que nos alimentamos subjetivamente. O que lemos, o que assistimos, o que ouvimos e o que consumimos de entretenimento, ou seja, o que é nosso veneno por escolha própria. Além disso, como alimentamos relacionamentos que nos envenenam. Relacionamentos tóxicos, no trabalho, no dia a dia, na roda de amigos, na cama e nos negócios. Vivemos em tempos que tomamos coragem de denunciar abusos de poder e abusos em relacionamento, o que é bom para que se crie um sentimento coletivo de empatia. Porém o que sobra disso tudo é uma ferida aberta que não se cura sozinha, daí partimos pra novos tóxicos que aliviam ou a gente finge que aliviam. Estamos doentes, seja pelo alimento no prato ou pelo alimento social. É urgente que tomemos consciência disso! ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição