Edição 525 | 30 Julho 2018

O fetichismo da mercadoria

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Anselm Jappe | Tradução: Vanise Dresch

Marx explicou o papel determinante das coisas e dos objetos nas relações interpessoais. Daí o seu conceito de fetichismo da mercadoria

“A teoria do fetichismo permite explicar, entre outras coisas, um fenômeno que Marx ainda não podia conhecer bem: a crise ecológica. O papel cada vez maior das tecnologias e os ganhos de produtividade gerados por elas reduzem o trabalho necessário para uma determinada mercadoria, reduzindo assim, também, o seu valor e o sobrevalor que ela contém. A única solução – apenas temporária – é produzir mais exemplares da mercadoria em questão e estimular uma demanda equivalente”, escreve Anselm Jappe, em artigo originalmente publicado na revista francesa Alternatives Economiques, “Dossier Marx”, n° 103, abril de 2018, cedido pelo autor à IHU On-Line. “Sair do fetichismo significaria, então, que a sociedade seja capaz de retomar seu destino em mãos. Mas isso não será possível sem sair das próprias bases do fetichismo: dinheiro e trabalho, mercadoria e valor”, prossegue.

Anselm Jappe é filósofo e ensaísta nascido na Alemanha. Fez seus estudos na Itália e na França, onde vive atualmente. É reconhecido por ter escrito livros como Guy Debord, sobre a vida e a obra do pensador e ativista francês (Petrópolis: Vozes, 1999). Recentemente publicou o livro As Aventuras da Mercadoria (Lisboa, Portugal: Editora Antígona, 2006), que reconstrói a trajetória filosófica e política da crítica do valor. Entre outras publicações em português estão Violência, mas para quê? (São Paulo: Hedra, 2011) e Crédito à morte (São Paulo: Hedra, 2010), ambos construídos com ensaios publicados por ele em revistas francesas.

Eis o artigo.

O primeiro capítulo do Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, traz uma frase célebre: “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Até hoje, o primeiro conceito que a grande maioria das pessoas associa ao nome de Karl Marx é seguramente o da “luta de classes”. A luta de classes remete imediatamente ao proletariado, sobretudo aquele das fábricas.

Alguns leitores da obra de Marx, ao mesmo tempo em que insistem na atualidade desta, privilegiam aspectos diferentes daqueles que costumam ser considerados. Tais abordagens se concentraram, durante muito tempo, na questão da “alienação”, temática desenvolvida, principalmente, nas obras da juventude de Marx. Trata-se, então, de denunciar não só a exploração econômica, mas também a globalidade das condições de vida criadas pelo capitalismo.

“Segredo”, “misterioso”, “hieróglifo”

Nas últimas décadas, o que tem chamado a atenção dos marxistas críticos é, com frequência, o conceito de “fetichismo da mercadoria”. Essa expressão é seguidamente empregada no discurso corrente, mas para designar de maneira vaga uma espécie de adoração excessiva às mercadorias, referindo-se mais à psicologia do consumidor. No pensamento de Marx, o termo “fetichismo” tem um significado bem mais amplo e mais profundo. Encontramos referências ao fetichismo em toda a sua obra, desde os seus primeiros artigos.

No entanto, é no final do primeiro capítulo do Capital, publicado em 1867, que Marx fornece a abordagem mais detalhada do fetichismo, no subcapítulo intitulado “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”. Nessas poucas páginas, mesclam-se considerações filosóficas, referências históricas e citações literárias, num estilo eufórico que recorre a formulações paradoxais do tipo “sensível suprassensível” e ao emprego de palavras como segredo, misterioso, caprichos, enigmático, hieróglifo, misticismo, forma fantástica etc. Tais termos demonstram que Marx entra numa terra incógnita da reflexão. Outra abordagem do fetichismo pode ser encontrada no final do Livro III do Capital.

Em termos mais gerais, o fetichismo é determinado pelo fato de que, na sociedade mercantilista, as relações interpessoais apresentam-se como relações entre coisas. E as relações entre as coisas apresentam-se como relações entre pessoas. Esse conceito suscitou interpretações bastante divergentes. Segundo os marxistas tradicionais, ligados ao movimento operário, Marx estaria denunciando uma mistificação das verdadeiras relações de produção capitalistas: a exploração do operário estaria ocultada – velada – detrás de uma relação aparentemente objetiva entre os “fatores de produção”, notadamente o capital, o trabalho e a terra. O fetichismo consistiria numa forma de ideologia apologética. Poderíamos dizer, até mesmo, de embuste.

Alguns poucos marxistas, a partir da década de 1920 com Georg Lukács , passando pelos autores da Escola de Frankfurt e pelos situacionistas, abriram caminho para uma interpretação contemporânea que atribui grande importância ao fetichismo. É o caso, principalmente, da “crítica do valor” .

O valor criado pelo trabalho abstrato

Nessa perspectiva, o conceito de fetichismo é um dos pivôs de toda a crítica da economia política de Marx. Podemos falar, até mesmo, de uma identidade entre a teoria do valor e a teoria do fetichismo. Marx introduz o fetichismo depois de ter analisado, no início do Capital, as categorias basais do capitalismo: a “mercadoria”, paralelamente ao seu valor de uso, possui um “valor” que é representado pelo “dinheiro”, mas criado pelo “trabalho abstrato” ou, melhor dizendo, pelo “lado abstrato do trabalho”.

No capitalismo, o trabalho não é considerado socialmente por sua utilidade, mas pelo tempo necessário para realizá-lo, sem levar em conta o seu conteúdo. Todo trabalho possui duas dimensões ao mesmo tempo: ele produz algo, um objeto ou um serviço, e, como tal, cada trabalho é diferente um do outro. Mas enquanto gasto de energia humana medida pelo tempo, todos os trabalhos são iguais; distinguem-se apenas pelo seu aspecto quantitativo.

Concretamente, uma garrafa de vinho e uma mesa são bem diferentes; numa perspectiva abstrata, a única diferença entre os dois objetos reside no fato de que a garrafa representa, digamos, meia hora de trabalho e a mesa, uma hora. De fato, quanto menos tempo for necessário para produzir uma mercadoria (e seus componentes), menor é o seu valor (e menos ela custa).

O aspecto verdadeiramente revolucionário – muitas vezes subestimado pelos próprios marxistas – dessa análise é o fato de não conceber o dinheiro e o valor, a mercadoria e o dinheiro, como fatores “evidentes” ou “naturais” presentes em toda sociedade por menos “evoluída” que seja. Marx demonstra que esses são elementos específicos do capitalismo e estabelece também seu caráter destrutivo.

Numa sociedade baseada nessas categorias, não pode haver controle consciente da economia. Os seres humanos veem as mercadorias criadas por eles e suas interações (os preços, o mercado, as crises etc.) como divindades que os governam. A referência irônica à religião contida no conceito de fetichismo adquire aqui todo o sentido: o homem se inclina diante de coisas sem saber que elas são seus próprios produtos. Ao mesmo tempo, não se trata de uma fatalidade: essa subordinação do homem aos seus produtos é o resultado do modo de produção capitalista (mesmo que ela prolongue formas anteriores de fetichismo, principalmente religiosas).

No fetichismo da mercadoria – que é inseparável da sociedade capitalista e só com ela desaparecerá –, o lado concreto dos produtos, dos trabalhos e, em última análise, de qualquer manifestação da vida humana é posto em segundo plano, atrás do lado “quantitativo”. O lado concreto é apenas o “portador”, a “representação”, a “encarnação” de uma substância invisível, abstrata e sempre igual: o trabalho reduzido unicamente à sua dimensão temporal.

O valor contém o sobrevalor [ou a mais-valia], que gera o lucro e cuja busca motiva os capitalistas. No entanto, Marx não faz uma crítica moralista: a “sede de lucro” é somente uma das peças da engrenagem. O que caracteriza a sociedade fetichista é o seu caráter anônimo e automático. Todos os atores cumprem apenas leis que foram criadas “nas suas costas”. O mercado cessará a produção de brinquedos em proveito da fabricação de bombas se isso for mais lucrativo, sem levar em conta o lado “concreto” destas e suas consequências. A lógica fetichista ignora a diferença concreta entre a bomba e o brinquedo, comparando apenas duas quantidades de trabalho abstrato. Se, por escrúpulo, um capitalista não aceitasse essa lógica, ele seria rapidamente eliminado do mercado. As mercadorias “sensíveis” (concretas) são submetidas à sua invisível natureza “suprassensível”, dada pelo trabalho abstrato.

Uma explicação da crise ecológica

Bem antes de ser uma sociedade de classes baseada na exploração, o capitalismo já é, num nível mais profundo e estrutural, uma sociedade absurda, destrutiva e autodestrutiva, porque o lado abstrato – não humano – prevalece sobre o lado concreto e humano. Os seres humanos vêm a reboque das coisas que eles produzem e sobre as quais perderam o controle. Nenhuma concordância consciente é possível, nem mesmo entre os capitalistas: cada ator produz isoladamente, e é só no mercado que seus produtos adquirem a posteriori uma dimensão social e criam um “laço social”.

A teoria do fetichismo permite explicar, entre outras coisas, um fenômeno que Marx ainda não podia conhecer bem: a crise ecológica. O papel cada vez maior das tecnologias e os ganhos de produtividade gerados por elas reduzem o trabalho necessário para uma determinada mercadoria, reduzindo assim, também, o seu valor e o sobrevalor que ela contém. A única solução – apenas temporária – é produzir mais exemplares da mercadoria em questão e estimular uma demanda equivalente. O problema é que o consumo de recursos e energia cresce de maneira exponencial, somente para evitar que o montante global de valor caia. A teoria do fetichismo contém também, portanto, uma teoria da crise tanto econômica quanto ecológica.

Para que a sociedade retome seu destino em mãos
A teoria do fetichismo não exime os homens – as classes dirigentes principalmente – de suas responsabilidades. Contudo, ela ressalta outro aspecto: o grande vício do capitalismo consiste no fato de que os homens não são senão os executores de uma lógica que parece residir nas coisas, mas que é, na verdade, o resultado das ações humanas. Sair do fetichismo significaria, então, que a sociedade seja capaz de retomar seu destino em mãos. Mas isso não será possível sem sair das próprias bases do fetichismo: dinheiro e trabalho, mercadoria e valor. Que vasta tarefa! Não será realizada em um único dia.

Percebe-se, no entanto, que essas categorias se dissipam por toda parte: a sociedade do trabalho não tem mais muito trabalho a oferecer, e o dinheiro “verdadeiro” (não o “capital fictício” do crédito, como o chama Marx) começa a escassear. No capítulo sobre o fetichismo, Marx fala de “uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho individuais como uma única força social de trabalho”. Esta seria uma sociedade pós-fetichista.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição