Edição 525 | 30 Julho 2018

O pensamento de Marx não se limita a uma visão de mundo

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João Vitor Santos | Tradução: Luiz Sander

Michael Heinrich compreende as concepções do pensador como algo em processo, que não fornece respostas prontas, mas que inspira a construir caminhos para compreender a realidade

Karl Marx produzia ciência, que como tal se constitui numa obra predisposta à crítica. É assim que o cientista político Michael Heinrich define a essência do trabalho daquele que é tido como ícone da economia política do século XIX. Para ele, é um erro tomar suas produções de forma estanque. “O maior problema com muitos ‘marxismos’ é que eles transformaram o pensamento de Marx em uma espécie de visão de mundo, uma espécie de sistema fechado, que reivindicava dar respostas a todas as questões possíveis”, aponta. “Em Marx só encontramos o início da resposta, e há muito trabalho a ser feito ainda”, completa, identificando aí a maior potência, aquilo que faz sua obra tão atual.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor destaca que somente nas últimas décadas tem sido possível fazer a crítica que Marx esperava acerca de seu trabalho, graças ao acesso aos escritos originais. Enquanto isso, interpretações equivocadas e ortodoxas nos seus conceitos reduziam a potência da obra. Um exemplo desses equívocos é tomar O Manifesto comunista como O Capital em forma compacta. “Ele é um documento histórico e, neste sentido, é estritamente impossível atualizá-lo. Deveríamos pensar sobre um Manifesto inteiramente novo, que esteja baseado nas percepções de O Capital, mas que também reflita os desdobramentos do final do século XIX e do século XX”, provoca.

Com relação ao estado de crises no Brasil, Heinrich reflete como, a partir de Marx, pode-se conceber uma reinvenção política. Para o professor, a esquerda não se deu conta do perigo que pode ser perder mais espaços a partir das eleições de 2018, já que muitos consideram mais estratégico gestar uma ofensiva que viria só em 2022. “Temo que a direita vá cuidar para que a esquerda não tenha uma segunda oportunidade em cinco anos. Pode ser que vocês tenham de esperar 25 ou 30 anos pela próxima oportunidade”, analisa.

Michael Heinrich é cientista político alemão, professor de Economia na University of Applied Sciences, em Berlim. Ainda é editor do PROKLA, revista de ciência social crítica, colaborador na MEGA-2 (Marx-Engels-Gesamtausgabe), instituição detentora e curadora dos manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels. Produziu vários estudos sobre O Capital, de Marx, sendo um dos seus livros mais famosos Kritik der politischen Ökonomie: eine einführung (Schmetterling Verlag GmbH, 2018), em tradução livre, “Crítica da economia política: uma introdução”. Aqui no Brasil, lançou em 2018, pela Editora Boitempo, Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: Biografia e desenvolvimento de sua obra.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que Marx se revela a partir de sua pesquisa para elaboração da biografia? Como esses novos estudos atualizam a leitura e o pensamento de Marx?
Michael Heinrich – Há uma tradição segundo a qual marxistas apresentaram um Marx que, como pessoa, é quase perfeito e cujas teorias são completas e resolvem todos os nossos problemas. Por outro lado, antimarxistas apresentam Marx como uma pessoa com grandes debilidades pessoais e cujas teorias são incompletas, equivocadas ou limitadas ao século XIX, com o resultado de que Marx não tem muita relevância para a atualidade. As biografias recentes de Marx escritas por Jonathan Sperber e Gareth Stedman Jones apontam nessa direção. Ao contrário dessas obras unilaterais, tento apresentar Marx como uma pessoa com todos os seus atributos positivos e negativos (que ele tinha como qualquer outro ser humano), mas verifico escrupulosamente o que de fato sabemos. Muitos biógrafos apresentam suposições como se fossem fatos. Em contraposição a isso, eu admito que, em uma série de casos, nós simplesmente não sabemos.

Além disso, apresento a obra de Marx como uma sequência de projetos planejados, aos quais ele deu início; entretanto, não conseguiu concluir nenhum de seus grandes projetos. Ele tinha de interromper, começava de novo com um marco teórico um tanto diferente, e mais uma vez tinha de parar, às vezes por causa de pressões externas, por causa de conflitos em que estava envolvido, às vezes por causa de problemas teóricos que tornavam necessários novos estudos. O Marx que apresento será muito menos completo, muito menos “pronto”; não obstante, ele logrou grandes realizações na compreensão do capitalismo moderno que são de enorme relevância para os dias de hoje. Entretanto, o estudo da obra de Marx fica um pouco mais complicado quando se seguem as concepções que apresento.

IHU On-Line – Como compreender os contextos social e intelectual em que Marx é formado? E como esses contextos se revelam em sua obra?
Michael Heinrich – O primeiro volume de minha biografia começa com um capítulo extenso sobre a juventude de Marx em Trier . Procuro dar uma impressão das experiências sociais que ele poderia ter tido em Trier (80% da população era pobre, e um Estado bastante opressor reprimia tendências liberais na sociedade) e faço um relato das primeiras influências intelectuais que recebeu em Trier e, mais tarde, na Universidade de Berlim.

Essas influências foram importantes. Por exemplo: o fato de ele ter estudado Direito se torna visível em uma série de matérias posteriores que escreveu para jornais. Entretanto, essas influências iniciais de Trier e Berlim não fizeram dele um comunista. Quando Marx começou a editar o “Jornal Renano” [Rheinische Zeitung, no original em alemão] em 1842, ele era um burguês radical, mas de modo algum um comunista. Para entender Marx melhor, temos de acompanhar mais de perto o desenvolvimento de suas concepções e as formas pelas quais suas obras já estavam mudando naqueles anos iniciais.

IHU On-Line – Quais as principais marcas e legados do “jovem Marx”?
Michael Heinrich – Acho que devemos ter muita cautela com periodizações do tipo “jovem Marx” e “Marx maduro”. Eu sustento que não há períodos fixos da vida como o “jovem”, “o adulto” ou “o velho”. Essas coisas não passam de construções dos biógrafos. Também no tocante ao desenvolvimento da obra de Marx, nego tanto a tese que propõe uma continuidade (que há um desenvolvimento contínuo sem rupturas incisivas) quanto a tese da ruptura (que há uma ruptura incisiva entre a obra do “jovem Marx” e do “Marx maduro”). Claro que houve rupturas, mas elas aconteceram em épocas diferentes e em campos de pesquisa diferentes, e não é possível construir “a ruptura” [no singular] a partir de todas essas rupturas bastante diferentes. Neste sentido, não há apenas um único jovem Marx, mas vários, com diferentes temas e realizações na filosofia, política e economia.

IHU On-Line – Em que medida podemos afirmar que Marx é fundamental para compreender o surgimento da sociedade moderna?
Michael Heinrich – Autores como Sperber ou Stedman Jones sustentam que Marx está fixado ao século XIX, mas não perguntam qual foi o caráter desse século, ao menos na Europa ocidental. No século XIX, o capitalismo industrial moderno e formas políticas modernas baseadas no parlamentarismo, nos partidos políticos de massas e os primeiros meios de comunicação de massa (jornais diários) surgiram na Europa ocidental e se disseminaram a partir de lá. Marx foi uma testemunha desses processos, um investigador e, em certos anos, também um ativista político militante. Ele analisou como um sistema econômico baseado na troca de equivalentes se baseia na exploração e, ao mesmo tempo, a reproduz, mas não em decorrência de um domínio pessoal, e sim de um domínio impessoal.

Além disso, mostrou como um sistema político que respeita seus cidadãos como juridicamente livres e iguais estabeleceu, ainda assim, um sistema de domínio estrutural de classe – não violando suas próprias regras, mas cumprindo-as. Intitulei minha biografia “Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna” justamente porque podemos aprender muito de Marx sobre as estruturas ainda persistentes da sociedade moderna.

IHU On-Line – No que consiste a gênese do conceito de socialismo para Marx? Esse conceito ainda dá conta de explicar o socialismo de hoje?
Michael Heinrich – Na obra de Marx, o conceito de socialismo/comunismo também mudou. Contudo, ele nunca se reduziu à abolição da propriedade privada dos meios de produção e à instalação de um planejamento central. O que se chamava “socialismo” no século XX tinha bastante menos em comum com o socialismo na acepção de Marx. Em minha opinião, a questão básica para o pensamento de Marx sobre o socialismo é a liberdade e a possibilidade do desenvolvimento do indivíduo, e não do indivíduo como abstração, e sim de cada indivíduo concreto, como diz o “Manifesto Comunista” na famosa afirmação de que o desenvolvimento de cada indivíduo é a condição para o desenvolvimento de todos.

Os pensadores burgueses acreditavam que se alcança a emancipação com a abolição das regulamentações feudais, com mercados livres e eleições livres. Entretanto, Marx percebe muito claramente que sob essas condições as pessoas não controlam realmente as estruturas econômicas e políticas de sua vida. Marx exige uma forma mais completa de emancipação, onde as pessoas realmente controlem as estruturas sociais que produzem. Essa questão de como podemos controlar e regulamentar os processos sociais e econômicos produzidos por nós mesmos ainda é atual. Em Marx só encontramos o início da resposta, e há muito trabalho a ser feito ainda.

IHU On-Line – Quais os limites que o marxismo acabou impondo ao pensamento do próprio Marx, inebriando um sentido mais amplo de sua obra?
Michael Heinrich – Acho que temos de distinguir entre o marxismo (como a soma das contribuições inspiradas pela obra de Marx e Engels ) e o pensamento de Marx (e Engels). Isso não implica jogar fora todas as ideias “marxistas”, mas significa, em primeiro lugar, aceitar a diferença (por exemplo, em toda a obra de Marx e Engels não se encontra um termo como “materialismo dialético”), e então podemos avaliar.

O que talvez tenha sido o maior problema com muitos “marxismos” é que eles transformaram o pensamento de Marx em uma espécie de visão de mundo, uma espécie de sistema fechado, que reivindicava dar respostas a todas as questões possíveis. O próprio Marx não só formulou a famosa frase “Je ne sui pas marxiste”, mas também mostrou sua própria distância para com um “sistema socialista”. Quando o economista alemão Adolph Wagner escreveu que a teoria do valor de Marx é a pedra angular de seu “sistema socialista”, Marx observou que ele jamais formulou um “sistema socialista” (Notas sobre Wagner). A obra de Marx constitui principalmente uma análise científica; não obstante, essa obra tem um objetivo estritamente político. Contudo, esse objetivo não implica a violação de quaisquer padrões científicos.

IHU On-Line – Marx escreve, ainda em 1867, que toda crítica científica é bem-vinda. O que propunha com essa provocação? E em que medida essa crítica estimulada vem sendo feita?
Michael Heinrich – Essa afirmação do prefácio de O Capital não é, absolutamente, uma provocação, e sim a consequência do que eu disse antes. Se O Capital é uma obra de ciência, ela deve estar aberta à crítica científica assim como qualquer outra obra de ciência, e, como em outros casos, muito provavelmente o crítico encontrará alguns argumentos que não podem ser mantidos, e eles têm de ser corrigidos e ajustados. Só se pode ficar surpreso com essa afirmação de Marx se se concebe O Capital como uma espécie de percepção definitiva. A tragédia foi que uma discussão realmente científica de O Capital só começou no século XX, décadas após a morte de Marx.

Marx publicou O Capital em alemão e argumentou no mais elevado nível que a ciência econômica tinha alcançado e – como anunciava o subtítulo de O Capital – criticou a ciência econômica nesse nível elevado. Na Alemanha, a ciência econômica não era muito bem desenvolvida nessa época. Os economistas alemães não entenderam o que Marx estava realmente fazendo em “O Capital”, e suas recensões do livro (quando faziam alguma, o que era bastante raro) eram bastante estúpidas.

Na Inglaterra, a situação era um tanto melhor e a discussão econômica se dava em um nível mais alto, mas eles não liam alemão. Quando O Capital foi finalmente traduzido para o inglês (após a morte de Marx), o discurso econômico tinha mudado consideravelmente por causa da chamada revolução marginalista. Os marginalistas identificavam as teorias de Marx com o objeto de sua crítica, a economia política clássica. Por conseguinte, também na Inglaterra, O Capital de Marx não encontrou realmente o tratamento científico que merece.

Foi só durante as últimas cinco ou seis décadas que uma discussão realmente científica de “O Capital” teve início. E agora temos a MEGA, Marx-Engels-Gesamtausgabe [Edição completa das obras de Marx e Engels], que pela primeira vez apresenta realmente todos os manuscritos de “O Capital”. Além disso, ela apresenta esses manuscritos pela primeira vez em sua forma original (os vols. 2 e 3 de “O Capital” foram fortemente editados por Engels para tornar o texto mais legível). Pela primeira vez, podemos realmente ler o que o próprio Marx escreveu. Além disso, teve início a publicação dos cadernos de anotações de Marx (seu laboratório intelectual). Em minha opinião, a verdadeira discussão científica de O Capital das obras originais de Marx apenas só começou há pouco.

IHU On-Line – O Manifesto Comunista completa 170 anos em 2018. Qual a atualidade dessa obra e em que medida, a partir da própria lógica metodológica de Marx, podemos pensar numa atualização da obra?
Michael Heinrich – O Manifesto Comunista é um documento histórico. Ele mostra o que era possível articular em meados do século XIX e é, além disso, um documento do desenvolvimento intelectual de Marx. É formulado com base no conhecimento econômico e político bastante limitado que Marx tinha nos anos de 1840, e também é bastante eurocêntrico. Não deveríamos nos esquecer de que o próprio Marx escreveu, no prefácio de 1859, que, após chegar a Londres, ele começou seus estudos de economia a partir do início, e esses estudos mudaram suas concepções em grau considerável. O mesmo se aplica à sua análise do Estado.

O Manifesto Comunista foi escrito antes da revolução de 1848 . O transcurso (e a derrota) dessa revolução, os desdobramentos diferentes ocorridos na Alemanha e na França, a ascensão de Luís Bonaparte , tudo isso mudou grande parte da concepção de Marx sobre as classes e o Estado. E foi só no final dos anos 1860 e durante a década de 1870 que Marx realmente se livrou de seu eurocentrismo.

É um erro considerar o Manifesto Comunista uma espécie de versão breve de O Capital. Ele é um documento histórico e, neste sentido, é estritamente impossível atualizá-lo. Deveríamos pensar sobre um Manifesto inteiramente novo, que esteja baseado nas percepções de O Capital de Marx, mas que também reflita os desdobramentos do final do século XIX e do século XX: o colonialismo e as lutas anticoloniais, a ascensão e derrota da União Soviética, a ascensão do fascismo, o Holocausto, as duas guerras mundiais, que levaram o sentido da guerra a uma nova dimensão, a ascensão e o declínio do Estado de bem-estar social, fome e pobreza extrema em partes do Sul Global, revoluções tecnológicas e crise ecológica – e esta é apenas uma lista incompleta das questões relevantes.

IHU On-Line – No mundo todo, e especialmente no Brasil, fala-se em crise da esquerda. Em que medida uma outra leitura de Marx pode inspirar a superação desse estado de crises? E que leitura seria essa?
Michael Heinrich – Em certo sentido, sempre há uma espécie de crise da esquerda. A esquerda nunca está em uma situação satisfatória, e sempre haverá controvérsias profundas sobre questões fundamentais. Essas crises da esquerda são formas pelas quais ela pode aprender. Entretanto, além de tais crises também há situações em que a esquerda pode falhar totalmente. Na história, temos, por um lado, tendências prolongadas de desenvolvimento socioeconômico e, por outro, situações singulares de crise política (muitas vezes acompanhada por uma crise ou um declínio na economia). Marx analisou tanto as tendências quanto os momentos singulares. Em raros momentos em meio a uma situação singular assim pode surgir uma oportunidade revolucionária, como, por exemplo, na Europa em 1848, e a esquerda deixou de aproveitar essa oportunidade.

Com muito mais frequência, essas crises políticas propiciaram uma oportunidade para uma “contrarrevolução” reacionária, o que torna necessário que a esquerda responda de maneira unificada para proteger o que já foi alcançado. Deixar de dar essa resposta pode ter consequências de longo alcance.

Brasil

No tocante à situação do Brasil, tenho a impressão de que há exatamente uma situação assim após os golpes contra Dilma Rousseff e Lula. Impedir uma vitória da direita nas eleições presidenciais vindouras não é apenas um objetivo limitado no curto prazo. Uma vitória da direita provavelmente mudaria a situação fundamentalmente. Entretanto, tenho a impressão de que uma série de grupos e partidos de esquerda não estão enxergando o grande perigo.

Talvez eles estejam pensando assim: tudo bem que um candidato de direita ganhe a eleição presidencial, e então a política econômica será horrível, mas daqui a cinco anos teremos a próxima eleição e então a situação será melhor para a esquerda e especialmente para nosso grupo ou partido. Essa consideração poderia ser um grande erro: se a direita ganhar, podemos supor que ela vá mudar o marco institucional e jurídico. No momento, isso está acontecendo na Polônia e na Hungria. Contudo, nesses países essas mudanças institucionais são, de alguma forma, limitadas pelas regras da União Europeia, mas não está claro, em absoluto, se isso será suficiente. No Brasil, não há nem mesmo essas pequenas limitações, e temo que a direita vá cuidar para que a esquerda não tenha uma segunda oportunidade em cinco anos. Pode ser que vocês tenham de esperar 25 ou 30 anos pela próxima oportunidade.■

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