Edição 524 | 18 Junho 2018

El Salvador e a integração forçada com os Estados Unidos

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Bruno Lima Rocha

“A integração com o imperialismo é defendida internamente, reforçando a condição de dependência. O projeto neoliberal é defendido pelos partidos de direita e conta com um think tank no apoio desta posição subordinada. A principal instituição doméstica de direito civil, a Fundação Salvadorenha para o Desenvolvimento Econômico e Social (FUSADES), avalizada pelo FMI e o Banco Mundial”, escreve Bruno Lima Rocha.

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política na UFRGS, doutor em ciência política e professor nos cursos de relações internacionais e jornalismo na Unisinos.

Eis o artigo.

A América Central foi palco de uma luta encarniçada, onde estava em jogo tanto a geopolítica do Continente - e também da defesa da área de domínio exclusivo do Império – como a possibilidade de soberania dos povos da região. Na década de 1980, na chamada Era Reagan (seguida de Bush Pai), Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Costa Rica e Panamá foram alvos de alguma forma de intervenção do Comando Sul, do Departamento de Defesa dos EUA. A projeção de poder do norte hegemônico aplicava a chamada “teoria do dominó”, para conter a presença da terceira onda pós-revolução cubana, na esquerda latino-americana.

A base da insurgência e do governo revolucionário do sandinismo vitorioso, a partir de 1979, na Nicarágua, era formada por famílias camponesas, oriundas ou originárias de povos indígenas, organizadas contando com a presença impactante da Teologia da Libertação. No caso salvadorenho, o martírio do padre jesuíta Rutilio Grande (março de 1977), antecedido pelo sequestro do sacerdote colombiano, Mario Bernal Lodoño (janeiro de 1977) e, posteriormente, com o assassinato do arcebispo de San Salvador, monsenhor Óscar Arnulfo Romero (março de 1980), marcaram o padrão de eliminação física e extermínio de religiosos, envolvidos diretamente ou no apoio às pastorais sociais e comunidades eclesiais de base.

A antiga província de El Salvador, o território de Cuzcatlán (de maioria “Pipil” e “Lenca”) sofreu a chamada “política de terra arrasada”. Forças especiais - como os facínoras Atlacátl, equivalente aos kaibiles guatemaltecos -, rondas de vigilância e “assessores” estadunidenses, promoveram centenas de massacres. As vítimas quase sempre eram camponeses, indígenas, religiosos e sindicalistas. O pequeno país centro-americano teve uma longa guerra civil, incluindo a opção militar plena, a partir da unidade da esquerda nacional. As organizações políticas Forças Populares de Libertação (FPL), Exército Revolucionário do Povo (ERP), Partido Comunista Salvadorenho (PCS), Resistência Nacional (RN) e Partido Revolucionário dos Trabalhadores Centroamericanos (PRTC) unificaram suas estruturas e criaram uma formação político-militar denominada Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), iniciando em outubro de 1979 e só finalizando com os acordos de janeiro de 1992.

Após a “pacificação”, o país foi quase “anexado” no Plano Puebla-Panamá, de integração forçada do istmo centro-americano. Por um lado, não recebeu a ajuda correspondente para a reconstrução da infraestrutura arrasada, tanto pela falta de investimentos, como pelos efeitos da guerra antipopular. Ao assinar o acordo de paz, El Salvador já se viu sem alternativas no cenário internacional, combinando com o desmonte da União Soviética e, por tabela, o pior momento de escassez em Cuba, o que levou o país centro-americano a uma rota, aparentemente, sem saída na busca por fundos de reconstrução do pós-guerra interno e intervenção militar dos EUA. Por outro lado, a população salvadorenha tinha (e segue tendo), no seu maior inimigo, o destino e refúgio de uma importante parcela da população. A história é paradoxal. Comunidades de agricultores com apoio dos serviços pastorais católicos montavam acampamentos de refugiados na fronteira com Honduras. E, estas mesmas redes, mantinham corredores de passagem para abrigar vítimas da perseguição do Estado. A unificação da esquerda na FMLN deu-se em 1979, justamente no governo da última Junta Militar, que fraudara as eleições de 1980, até assegurarem um acórdão com chefes políticos e empresariais, entreguistas em 1982. Na sequência, os oligarcas da Ação Democrática, PDC e ARENA, governaram durante toda a guerra civil, sendo que os Arenistas ultrapassaram o armistício, governando até 2009. No período do extermínio em El Salvador, um pacto entre civis, militares e “consultores” estadunidenses levou a milhares de salvadorenhos a buscarem abrigo e refúgio justamente nos Estados Unidos, com apoio das redes solidárias coordenadas pela Teologia da Libertação.

As estimativas mais conservadoras afirmam que existem mais de dois milhões e meio de salvadorenhos vivendo nos EUA e as comunidades ativas, de naturais e descendentes de primeira e segunda geração, já ultrapassariam os três milhões e 600 mil (chegando a quase 1% da população estadunidense). Já o último censo de El Salvador aponta que a população residente no país é de 6.344.722; logo, quase a metade dos cidadãos salvadorenhos é de imigrantes no Império. Para agravar a situação de dependência, em 1º de janeiro de 2001, o governo da ARENA dolarizou a economia, transformando o dólar em moeda corrente. Com isso, o país que entrou em guerra contra a oligarquia e o Império, passa a depender integralmente do ingresso de dólares e, obviamente, do fluxo de pessoas e remessas de naturais, residindo no país que quase os destruiu.

Outra herança advinda da guerra de extermínio, terra arrasada e integração forçada são as “maras”, versão mesclada entre máfia e gangue salvadorenha. A mais antiga e forte, a Mara Salvatrucha (MS 13) tem redes conectadas nas comunidades imigrantes - com ênfase na Grande Los Angeles, California - e domínio territorial na zona metropolitana de El Salvador, sua rival principal, Barrio 18 (com duas subdivisões, Sureños e Revolucionários), opera como espelho da inimiga estratégica. A atividade de ambas as “maras” oscila entre 30 e 60 mil membros ativos, e a associação indireta e influência em zonas e famílias chega a meio milhão de pessoas.
Na seara política, assim como na Nicarágua, a FMLN saiu com alguma coerência interna, transformando-se em um partido socialdemocrata. Disputou as eleições presidenciais após 1992, vindo a ganhar em 2009 - com Mauricio Funes -, elegendo o sucessor em 2014, Salvador Sánchez Cerén. É evidente que com tamanho grau de dependência e integração forçada com o Império resta pouca margem de manobra para qualquer governo eleito praticar o exercício da soberania. ■

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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