Edição 523 | 04 Junho 2018

Um manifesto mal digerido

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Eduardo Vicentini de Medeiros

“Quase nenhum intelectual dessas perenes capitanias hereditárias do pensamento acertou a bússola pelo polo magnético da Revolução Caraíba. Se, encarapitados no London Eye, na Torre Eiffel ou no Empire State Building, perguntarmos aos gringos o que há de absolutamente fresco no cercadinho tupiniquim das Humanidades, o resultado será decepcionante. Talvez o perspectivismo ameríndio do Viveiros de Castro livre a nossa cara. E o que mais? É irônico que Oswald tenha escrito “A Crise da Filosofia Messiânica” para um concurso na Universidade de São Paulo - USP, berço esplêndido de nosso ranço historiográfico”, escreve Eduardo Vicentini de Medeiros, sobre os 90 anos do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, completados em maio de 2018.

Eduardo Vicentini de Medeiros é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas na Universidade de Santa Cruz - Unisc.

Oswald de Andrade | Imagem: Wikipedia

Eis o artigo.

Estamos em débito com Oswald. Noventa anos se passaram da publicação do Manifesto Antropófago e andamos para trás. Ouvimos pouco do que ele disse. Não compreendemos quase nada do que ele já havia entendido.

Os artistas, dizia o velho Pound, são as antenas da raça. Em grande medida porque vislumbram as possibilidades vivas de uma época. Oswald era uma antena e tanto, captando o que Pindorama tinha de melhor para oferecer ao mundo. Augusto de Campos, outra antena de sofisticada sintonia para captar finos biscoitos, afiançou que a Antropofagia Oswaldiana era “...a única filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos movimentos artísticos que produzimos”. Fecho com Augusto. Onde pode estar esta filosofia aprè Oswald? Ninguém sabe, ninguém nunca viu ou ouviu. Tivemos o Tropicalismo é bem verdade. Mas e na academia, qual o saldo?

Quase nenhum intelectual dessas perenes capitanias hereditárias do pensamento acertou a bússola pelo polo magnético da Revolução Caraíba. Se, encarapitados no London Eye, na Torre Eiffel ou no Empire State Building, perguntarmos aos gringos o que há de absolutamente fresco no cercadinho tupiniquim das Humanidades, o resultado será decepcionante. Talvez o perspectivismo ameríndio do Viveiros de Castro livre a nossa cara. E o que mais? É irônico que Oswald tenha escrito “A Crise da Filosofia Messiânica” para um concurso na Universidade de São Paulo - USP, berço esplêndido de nosso ranço historiográfico.

Mas de que rio deságua todo meu pessimismo? Qual a contabilidade do débito para com o Manifesto Antropófago? Pois bem, vejamos.

‘Contra todas as catequeses’, demandava o Manifesto. E o que vemos? A já volumosa bancada da Bíblia querendo emplacar a mais implacável nominata da história desta desventurada República. Na tímida resistência, populações indígenas se organizam para tentar eleger um representante por Estado, para fazer frente aos ruralistas e ao desmonte da Funai e da política de demarcações. Quem vocês acham que vai se dar bem nessa corrida pelo voto? A Bíblia, o Boi ou o Cocar? Caso reste cocar ou cabeças de índios, em razão do genocídio em curso e do desrespeito aos costumes de nossos povos ancestrais. Em Porto Alegre, índio que anda com seu macaquinho bugio a tiracolo recebe voz de prisão da Guarda Municipal. Quando leio notícias como essa, narrando o preconceito nosso de cada dia, lembro do Graça Aranha: “O Brasil não recebeu nenhuma herança estética dos seus primitivos habitantes, míseros selvagens rudimentares. Toda a cultura nos veio dos fundadores europeus”. Nunca é demais alertar que Oswald escreveu seu Manifesto em franca oposição a esta descaracterização dos índios na cultura brasileira.

‘Só me interessa o que não é meu’, bradava Oswald. E o que estamos assistindo em solo nacional é a cavalgadura da intolerância e o ensimesmamento das bolhas digitais. O lema da vez é: só me interessa o que é igual a mim. O que não é meu, só me interessa se rolar uma comissão por fora!

“Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão.[..] Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia”. Ah, que saudade das comissões e do nepotismo do Vieira! Pelo menos sabíamos onde ficava o dinheiro. Agora as comissões passam por doleiros e propinodutos à destra ou à sinistra. Para atinar onde estará o dinheiro, criamos acordos pouquíssimo transparentes do Ministério Público Federal com o Departamento de Justiça do Grande Irmão do Norte.

Mas como nepotismo pouco é bobagem, o deputado Wladimir Costa, aquele do rojão de confetes, comemora a nomeação do filho para cargo público no Pará – curral eleitoral da família – com essa daqui: “A missão é dada, a missão será cumprida! Deus nosso senhor Jesus Cristo no comando!” Mas a lábia não é só do Wladimir e seus cupinchas. A lábia do Padre Vieira ainda está aqui, lépida e insidiosa como nunca, ecoando sem o brilho retórico do original, nos plenários das casas legislativas. E, concessa maxima venia, nos tribunais superiores onde a criatividade hermenêutica e as intenções de ocasião parecem andar de braços com uma semântica a la Humpty Dumpty: “‘When I use a word’, Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, ‘it means just what I choose it to mean — neither more or less’”.

“Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.” Pois bem, se não bastasse o crescimento da bancada da Bíblia, agora nem dinheiro público para o Carnaval parece que restou no espólio da ressaca dos Campeões Nacionais. Faremos Carnaval, mas só se for autossustentável. De acordo com o entendimento turvado e a vontade férrea de um gênio legislante do Sul Maravilha, nem mesmo a Lei Rouanet deveria ser utilizada para patrocinar poucas vergonhas ou cousas que “atentem contra a moral pública”. Nessa cruzada conservadora, o Carnaval que se cuide!

“O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.” Dia desses foi parar no Supremo Tribunal Federal - STF uma discussão sobre a Lei 3.468/2015, aprovada pelos valorosos vereadores de Paranaguá. Uma parte da lei em questão pretendia restringir políticas de ensino sobre ‘gênero’ e ‘educação sexual’ nas escolas. Iniciativas similares ocorreram em Crato (CE), Pedreiras e Ribeirão Preto (SP), Jacobina (BA), Bela Vista (MS) e Recife (PE). Por sorte e algum juízo, o STF barrou, mas a ‘Moral da Cegonha’, ou seja, a sexualidade envergonhada e o desconhecimento da diversidade do desejo sexual para além das calças do ‘pater famílias’, é um dos sinais mais claros de que andamos para trás. Noventa anos se passaram e a homofobia, a transfobia, a lesbofobia e a bifobia estão mais resistentes do que nunca. No entanto, não há sentimento de autoridade que aplaque a curiosidade da prole. O patriarcado já mostra suas fissuras por todo lado. Resta saber quantos outros noventa anos serão precisos para nos aproximarmos minimamente da restauração do Matriarcado de Pindorama. ■


Leia mais
- Lemas para o bicentenário de Thoreau: simplifique e desobedeça. Artigo de Eduardo Vicentini de Medeiros publicado na revista IHU On-Line, nº 509, de 21-8-2017.

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