Edição 523 | 04 Junho 2018

O Mistério na tessitura da Vida: A espiritualidade de Gilberto Gil

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Faustino Teixeira

"Num ritmo de otimismo que encanta, Gil vai tecendo o seu canto com as marcas da alegria, como um hino de celebração da vida", escreve Faustino Teixeira.

Faustino Teixeira é teólogo, professor e pesquisador do PPG em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.

Eis o artigo.

Trata-se de tarefa desafiante tentar captar a experiência espiritual na trajetória criativa de Gilberto Gil. Foi o desafio que busquei responder nas breves notas que seguem, a partir de um convite de conferência realizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UFJF. Foi um mergulho nas canções desse compositor singular e inaugural, assim como nas biografias disponíveis e entrevistas realizadas pelo compositor baiano. O panorama geral é convidativo, descortinando dimensões singulares da visão espiritual de Gil.

O amor pela vida
De início, podemos destacar o profundo amor pela vida alimentado por Gil e cantado em diversas canções, como na estrofe de Amo tanto viver (1980):

Todas as vezes que eu canto é amor
Transfigurado na luz
Nos raios mágicos de um refletor
Na cor que o instante produz1 (CR, 282)

O que vislumbramos é um canto de alegria, temperado pela fé na vida e nas forças que dinamizam o tempo:

Tudo que eu sei aprendi
Olhando o mundo dali
Do patamar da canção (...)

Tudo que eu canto é a fé, é o que é
É o que há de criar mais beleza
Beleza que é presa do tempo
E, a um só tempo, eterna no ser (CR, 282).

Num ritmo de otimismo que encanta, Gil vai tecendo o seu canto com as marcas da alegria, como um hino de celebração da vida. É o que vemos também na canção Cores vivas (1980):

Tomar pé
Na maré desse verão
Esperar
Pelo entardecer
Mergulhar
Na profunda sensação
De gozar
Desse bom viver (CR, 293).

A canção tinha sido encomendada para a trilha de uma novela, Água viva, e o compositor aproveitou o ensejo para destacar esse seu “encanto de viver”, essa densa simpatia pela dinâmica vital que envolve todos os fenômenos. A canção, de fato, virou um “hino da vida oferecido à vida”2. Com base em Oswald de Andrade, Gil indica que “a alegria é a prova dos nove”, traduzido também no verso da canção “Geleia Geral” (1968 – CR, 105), expressa poeticamente por Torquato Neto. Trata-se de algo “irrecusável”, assinala Gil, que deve compor o ritmo do coração:

Seja lá qual for a grande ou pequena vicissitude, seja lá qual for a grande ou a pequena tristeza, a grande ou a pequena decepção, o grande ou o pequeno flagelo, tem de achar um jeito de alegrar o coração3. E alegrar no sentido bem suave, moderado, a alegria na dose suficiente para a satisfação do equilíbrio interno, para o estabelecimento do silêncio obsequioso que a gente tem de ter em relação à loucura do mundo4

O mundo espiritual
Gilberto Gil foi alguém sempre marcado pela vida espiritual, mas curiosamente o passo de abertura para a experiência interior ocorreu por ocasião de sua prisão, em dezembro de 1968. Antes mesmo desta época já estava em curso o movimento tropicalista, com presença destacada do compositor, e que foi um traço de vanguarda na música popular brasileira5. Em 1967 tinha sido lançada a canção inaugural, Domingo no parque, com a presença dos Mutantes; e em 1968, o disco tropicalista Gilberto Gil, com outras canções de destaque como “Procissão”. Nesta canção, em particular, manifestava-se um pensamento mais sintonizado com o marxismo, em conexão com o engajamento de Gil no Centro Popular de Cultura (CPC). A religião aparecia ali como um dado de alienação, e Gil chega mesmo a ironizar o cristianismo:

E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na Terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver (CR, 60).

A prisão de Gil aconteceu no final de dezembro de 1968, junto com Caetano Veloso. Os dois foram libertados em 19 de fevereiro de 1969, uma Quarta-Feira de Cinzas. Seguem então para Salvador, permanecendo em estado de confinamento até a partida para o exílio, em julho de 1969. Gil permanece no exílio até janeiro de 1972, quando retorna com sua mulher Sandra e o filho Pedro. Caetano e sua mulher, Dedé, tinham retornado antes.

A experiência na cadeia foi decisiva no desenvolvimento de sua vida espiritual. Como ele mesmo diz, foi ali que sua busca espiritual manifestou uma “face mais visível”, bem como sua “ânsia mística”. E argumenta: “Todo esse primeiro polimento, essa primeira retirada da poeira da superfície do meu ser foi feita ali dentro da prisão” (CR, 113). Na prisão, Gil faz suas primeiras leituras sobre a alimentação macrobiótica e dá início a um “vegetarianismo incipiente”. Acessa também informações sobre ioga e dá início a exercícios de relaxamento e respiração. Naquele espaço limitado, restritivo, Gil busca caminhos de libertação, na linha de uma “visão ascética da vida” e de um “voo mais alto”6. Algumas canções nasceram no período, como “Vitrines”, “Futurível” e “Cérebro eletrônico”. Nesta última, aborda contrastes e ensaia diálogos entre o mundo dos homens e o mundo de Deus. O tempo era de modernização, do avanço cibernético, das primeiras viagens espaciais e da afirmação da ficção científica, exemplificada no filme de sucesso: 2001, uma odisseia no espaço. Com “Cérebro eletrônico”, Gil reconhece a força das máquinas, com seus “botões de ferro” e “olhos de vidro”, mas sublinha também sua limitação. Elas comandam e fazem “quase tudo”, mas permanecem penúltimas:

Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Hum, hum
Eu falo e ouço
Hum, hum
Eu penso e posso (CR, 112)

Naquela situação-limite da prisão, de seu encurtamento programado, firma-se um “sonho” que é real, do “conhecimento da condição divina” e da mudez das máquinas. São as primícias de um processo de interiorização e meditação que vai se irradiar posteriormente em outras canções, como “Preciso aprender a ser só” (1973) e “Realce” (1979). Mediante o recurso a uma brincadeira linguística, Gil revela a potencialidade do mundo interior: “Eu preciso aprender a só ser” (CR, 156).

Uma verdade deve ser dita. Os caminhos desbravados pelo tropicalismo produziram uma aproximação à contracultura e, com ela, às formas e práticas extra-ocidentais de cultura. É o que sublinha Antonio Risério em entrevista publicada na Coleção Encontros7. Ele acrescenta: “E agora estávamos de volta, por assim dizer, ao Brasil. Fomos de Krishna aos babalaôs. Do I-Ching ao Xingu”8. Outro companheiro de Gil, Rogério Duarte, fala deste mergulho interior9. Ele também esteve preso, sentindo igualmente um “chamado interno”, com um processo que reconhece como “paralelo ao de Gil”. Ao voltar do exílio em Londres, Gil foi morar com Rogério, e juntos começaram a estudar a Eubiose. Ele relembra um trecho da canção de Gil, “Objeto sim, objeto não” (1969), reconhecida como “panfleto neomitológico” que busca refundar a aliança da ciência com o mito:

Eubioticamente atraídos
Pela luz do Planalto Central
Das Tordesilhas
Fundarão o seu reinado
Dos ossos de Brasília
Das últimas paisagens
Depois do fim do mundo (CR, 124)

Esta dimensão sincrética do tropicalismo, abraçada por Gil, veio reconhecida por Caetano Veloso na nova edição de Verdade Tropical: “O Brasil é religioso. Eu posso ser ateu, mas o tropicalismo não o é – e o Brasil muito menos”10.

O clima que circundava o campo do tropicalismo era pontuado pelo aura do Oriente, com pontuações precisas: de hare-krishnas, tarôs e I Chings. Daí as referências contidas na canção “Oriente” (1971):

Se oriente, rapaz
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração (CR, 143).

Junto com a busca interior, o processo de despojamento pessoal, que vai circundando Gilberto Gil a partir daquele momento. Ele lembra disto numa entrevista concedida a Cissa Guimarães:

À medida que você se desprende de si próprio, a ideia de interiorização muda. Eu cada vez me desprendo mais de mim mesmo. Cada vez quero saber menos o que sou, o que significo, o que importo para os outros. Cada vez mais me atribuo menos importância. Então, a interiorização de Deus vai junto com isso. É aí que está Deus, para mim, exatamente onde já se diluíram quase todas as possibilidades de individuações11.

Com a volta do exílio, a partir de 1972, Gilberto Gil toma contato mais próximo com o candomblé. Isso não tinha ocorrido antes, em dimensão de profundidade. O campo espiritual vem, assim, enriquecido com a nova presença. Junto com esta aproximação, a descoberta do profundo significado do carnaval da Bahia12. A vaidade de ser baiano já tomava conta de suas composições anterior, como “Eu vim da Bahia” (1965):

Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
De outro lado o Senhor do Bonfim
Que ajuda o baiano a viver
Pra cantar, pra sambar pra valer
Pra morrer de alegria (CR, 63).

Depois do exílio esse sentimento ganha vigor, somando-se à consciência vibrante da herança africana: “Não há brasilidade possível sem nossa ascendência africana em todos os sentidos: cultura, pulsação espiritual, herança genética, tudo”13. Nas canções, percebe-se agora a presença recorrente dos Orixás: de Iansã, a “Senhora do Mundo” (CR, 152); de Aganju e Xangô (CR, 218), de Logunedé, filho de Oxum (CR, 271) e do pai Oxalá, com seu toque de felicidade (CR, 294). Gil reconhece que “toda menina baiana tem um santo, que Deus dá” (CR, 270), e que em cada canto da Bahia há uma conta e “pra cada santo uma mata, uma estrela, um rio, um mar” (CR, 331). E cada conta vai montando um colar singular de religiosidade, proteção e alegria:

Hoje já ninguém duvida
Está na alma, está na vida
Está na boca do país
É o gosto da comida
É a praça colorida
É assim porque Deus quis (CR, 331).

O vínculo é forte e firma-se como rocha no coração. E quando as coisas titubeiam, é a eles que vem pedir ajuda ou consolo:

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré
Todo o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi (CR, 169).

Em jogo de Búzios, pelas mãos de Mestre Di, Gil descobre que era de Xangô, e numa linda canção, “Babá Alapalá” (1976), reverencia o orixá Aganju, que é um Xangô menino:

Alapalá, egum, espírito elevado ao céu
Machado astral, ancestral do metal
Do ferro natural
Do corpo preservado
Embalsamado em bálsamo sagrado
Corpo eterno e nobre de um rei nagô
Xangô (CR, 218).

Gil recorda também sua amizade com Mãe Menininha, a quem visitou várias vezes e para ele jogou os búzios. Foram anos de singela aproximação, nas festas em Gantois e outras situações diversificadas. Daí a tristeza de acompanhar sua travessia, compondo para ela um réquiem:

Foi
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser – ora iêiê, ô (...)

Ouve nossa oração
Escuta a demanda de cada um
Manda teu doce axé
Recomenda ao santo o teu candomblé
Fala com cada um
Fala com cada um
Fala com cada filho fiel
Canta pra todos nós
Derrama sobre todos o teu mel (CR, 393).

Por todo canto, o Mistério

Envolvida por tantos aprendizados, a fé de Gil foi ganhando a forma de um mosaico, onde se arregimentam várias coisas. Uma fé que abraça as diferenças e que vibra sob o toque da sede de Unidade. Sublinha em entrevista esta vinculação: “A ideia de unidade, pra mim, é uma coisa do universo. O universo pra mim é uno, é integral”14. Esta unidade, porém, convive bem com a diversidade: “A minha fé ficou assim, um apanhado, um mosaico dessas coisas todas. Tenho respeito por elas e por quem, digamos assim, se confina num desses territórios religiosos por vontade própria, por natureza e índole”15.

O que muitas canções de Gil buscam expressar, todo o tempo, é a presença do mistério, e por toda parte. Seu canto reflete este pasmo diante da grandeza do mistério. É o que está claro na canção “Esotérico” (1976): “Mistério sempre há de pintar por aí” (CR, 213). E os olhos precisam ser educados para captar essa beleza, que se irradia pelos fenômenos da natureza, como o luar:

O luar
Do luar não há mais nada a dizer
A não ser
Que a gente precisa ver o luar (CR, 287)

Tudo o que brilha na natureza é uma prolongação do nosso corpo, e ainda mais, é parte integrante de nosso corpo. É o que reverbera em Gil: “Nós somos natureza”. Tudo que acontece no tempo reverbera, irradia, provocando uma singular ressonância. Mesmo o movimento distante de uma folha na relva, em qualquer lugar do universo, tem um impacto sobre nós. Estamos todos inseridos numa malha de relações, como num rizoma, onde as linhas remetem-se umas às outras. E a canção é capaz de expressar essa dinâmica:


De surgir
Uma estrela no céu cada vez que ocê
Sorrir (CR, 286).

O fascínio pelo mistério perdura nas canções de Gil e ganha um conteúdo vivo em todo o trabalho que antecedeu o CD Quanta, de 1996, que foi sendo gestado desde 1992. Captou a “ideação do mistério em ação” em suas leituras sobre o quantum da matéria. E revela: “Quando descobri o mundo quântico, eu disse: ´Ah, olha aí: dobraram-se finalmente`. Descobriram que não são nada sem o mistério”16. O mistério envolve o mundo das pessoas17, e também o mundo transcendente:

Seu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais” (CR, 213).

O que dardeja ocultamente na natureza vem captado de forma singular pelo artista e torna-se expressão poética:

Debaixo do barro do chão da pista
onde se dança
Suspira uma sustança sustentada por
um sopro divino
Que sobe pelos pés da gente e de
repente se lança
Pela sanfona afora até o coração do
menino (CR, 227).

A canção das coisas

O que encanta nas canções de Gil é a leveza, a sutil percepção dos pequenos e simples detalhes da vida. O cotidiano ganha um colorido particular. São construções poéticas delicadas e reveladoras:

Vamos fugir
Pronde haja um tobogã
Onde a gente escorregue
Todo dia de manhã
Flores que a gente regue
Uma banda de maça
Outra banda de reggae (CR, 347)

O compositor arma sua tenda no chão da vida, atento ao ritmo do dia-a-dia. A cabeça é leve e os pés firmam-se no chão:

Eu estou onde tudo esteja
Ou seja
Onde quer que esteja em mim
O céu, o chão, o não, o sim
A vontade de Deus (CR, 173)

A vida e seu rumo são pontuados por desígnios gratuitos. O decisivo é a disposição de escuta, com leveza: “Agora calo, calço o chinelo, reparo a flor” (CR, 190). Ou então, como na canção “Refazenda” (1975):

Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar (CR, 196).

E o bonito é poder demorar-se entre as coisas, captando as suas formas e o seu fragor, como expresso na canção “Retiros espirituais” (1975). O momento irredutível de “estar defronte de uma coisa e ficar” (CR, 202). Aqui notamos o influxo positivo da fórmula Wu Wei (não ser, não fazer, não agir), tomada da tradição taoísta. Trata-se de um “deixar-ser”, sem que isto signifique passividade, mas disponibilidade ativa ao canto das coisas. É o tempo que se inaugura na cadência de cada instante (CR, 225). Gil, em estilo único, que faz lembrar a sétima Elegia de Duíno (Rilke), celebra a grandiosidade do momento: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora” (CR, 234)18. E o compositor comenta a respeito: “O ´aqui e agora` reivindicado pelos místicos: a situação confortável, que deveria ser buscada e atingida pelo homem, de integridade na vivência de cada momento, de cada centímetro de espaço ocupado” (CR, 234). É um convite que se apresenta para todos, de refestança:

Só não pode quem não quiser
Ver que o céu da Terra é azul
Ver que o verde é verde
Que a vida viaja
E com a vida a gente vai
Vai, vai, vai (CR, 240).

No rastro da canção, a percepção alerta dos passos que marcam o dia, dos dias lindos que tornam “mais branca a roupa no varal”. Sem dúvida, “o sentido desta vida é ao invés, azular a cor do branco e clarear” (CR, 252). Tudo que brota e vibra no tempo é rebento:

Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento (CR, 269).

O sussurro do Deus Mu-dança
Em meio ao ritmo do mistério, a presença do Deus Mu-dança, utilizando aqui o recurso linguístico adotado por Gil para caracterizar o traço essencial da transformação, que também opera no mundo da divindade: “O eterno Deus Mu-dança” (CR, 390). Para além dos códigos rígidos que operam em muitas tradições religiosas, das reflexões sensatas, o recorte de um Deus que “está solto”19, diluído e irradiado no tempo; de um Deus que convoca à transformação.

O clima espiritual que acompanha uma tal reflexão é de singular otimismo, de acolhida simpática, de esperança num horizonte benfazejo. Num ângulo um pouco distinto do “niilismo essencial” defendido por Caetano na canção “Oração ao tempo”, Gil manifesta sua esperança na permanência e na transformação. Não se trata de deixar de ser, como aponta Caetano, mas ser de uma forma distinta, integrada:

Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os
Sentidos (CR, 344)

Com “Tempo rei” (1984), Gil deixa aberta uma porta para algo pós, sempre embalado pelo toque de otimismo. Assinala em entrevista que prefere “os corpos que ressuscitam e se levantam apesar de tudo”20. Daí sua tranquilidade de lidar com a questão da morte, entendida como deusa, como “rainha que reina sozinha” (CR, 153). E retoma a ideia em canção:

Se a gente teve o tempo para crescer
Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer (CR, 250),

Numa espiritualidade de semblante feminino, regida pela busca da leveza, da ternura, do equilíbrio e da paz, Gil celebra a força da fé, do impulso que move as pessoas, as criaturas e as montanhas; de uma fé que “não costuma faiá” (CR, 311). E assinala: “Uma das características básicas da fé é a possibilidade dessa manutenção do elã vital, do gosto de viver, que é no que consiste a fé”21.

Ao afirmar sua espiritualidade, ao defender o elã da fé, Gil entende que essa entrega não se compagina, em hipótese alguma, com qualquer seiva de intolerância ou exclusão. Trata-se de uma espiritualidade que é ponte que acolhe e abraça as diferenças. Se há algo que não suporta é a intolerância com os outros. E a experiência requer do sujeito disposições que estão sempre ligadas ao desapego e à gratuidade. Para “falar com Deus” é necessário “ficar a sós”, “calar a voz”, “encontrar a paz” e “folgar os nós”. É antes de tudo uma grande “aventura”, que exige muita coragem para quem se dispõe, pois não há “cordas para segurar” (CR, 291). O acesso à “realidade última” não é algo simples. Há que enfrentar, delicadamente, os passos de uma travessia que implica a realidade do nada, de um “vazio-Deus”. Daí a sequência ilustrativa de treze nãos presentes na canção de Gil.

Ao final desse itinerário onde se buscou sinalizar os traços que marcam a experiência espiritual de Gil, fica a presença de uma sensação positiva, de energia singular, onde as expressões mais presentes são vida e alegria. Trata-se de uma espiritualidade bem terrenal, de integralidade, pontuada pelo sabor dos frutos da terra, como “um cesto de alegria de quintal” (CR, 290). Uma espiritualidade que traz consigo um convite que é para todos:

Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor (CR, 385).

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