Edição 522 | 21 Mai 2018

O maio de 1968 no Chile

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Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: João Vitor Santos

Joana Salém analisa as nuances latino-americanas do ano que sacudiu a segunda metade do século XX

A América Latina, com todas suas particularidades, também viveu sua primavera revolucionária durante e após os movimentos revolucionários ocorridos no ano de 1968. A questão, no entanto, é que não é possível estabelecer uma relação direta de causa e consequência entre as manifestações francesas e as ocorridas no Sul de nosso continente, especialmente no Chile. “Claro que as mobilizações de 1968 insuflaram as esquerdas no Chile. Mas quais camadas e quais classes sociais das esquerdas? O projeto socialista era internacional, a militância marxista formava uma grande rede de rivalidades intelectuais e alianças políticas pelo mundo”, aponta Joana Salém em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“No Chile talvez um dos componentes paradoxais dessa influência tenha sido a intensificação do entusiasmo urbano e intelectual consigo mesmo. (...) O que não podemos perder de vista é que o impacto de 1968 para os estudantes da Universidade do Chile é completamente diferente do impacto dos mesmos acontecimentos para os camponeses de Ñuble, para os mapuches da Araucania ou para mineiros de Antofagasta”, complementa.

Dentre os personagens importantes no contexto chileno, Eduardo Frei Montalva ocupa um espaço paradoxal dentro dos movimentos de esquerda. “Eduardo Frei Montalva foi certamente muito mais transformador do que a maioria dos governos chamados ‘bolivarianos’ ou ‘progressistas’ recentes. Ao mesmo tempo foi um dos políticos mais sistematicamente financiados pela CIA”, descreve Salém. “O reformismo de Frei, financiado pelos Estados Unidos, se mostrou uma fórmula radical e arriscada demais, acabou gerando o efeito oposto do desejado. (...) O governo democrata cristão pretendia criar instrumentos tutelares e canalizar as energias de revolta popular para configurações aceitáveis ao capitalismo chileno. Mas a DC perdeu o controle”, analisa.

Joana Salém é graduada em História pela Universidade de São Paulo - USP, mestra em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutoranda em História Econômica na USP. Atualmente, é pesquisadora visitante na University of California - UCI, Irvine. Especialista em América Latina, investiga a história das reformas agrárias, das esquerdas e das revoluções socialistas latino-americanas, articuladas à história do pensamento marxista, da teoria da dependência e da teoria do desenvolvimento. Entre suas publicações, destacamos História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo na periferia (São Paulo: Alameda, 2016) e Cuba no século XXI: dilemas da revolução (São Paulo: Elefante, 2017).

A entrevista com Joana Salém foi publicada originalmente na edição 521 da revista IHU On-Line e agora, a pedido da entrevistada, publicamos uma versão reeditada do texto.

Confira a entrevista.

IHU On-line — Como a Unidad Popular construiu sua base de apoio para a eleição de Salvador Allende em 1970?
Joana Salém — Uma primeira lembrança sobre as eleições chilenas de 1970 é que Salvador Allende ganhou com apenas 36,6% do eleitorado e menos de 40 mil votos de distância do segundo colocado, o conservador Jorge Alessandri . Ou seja, essa “base de apoio” do Allende não era maioria absoluta. Não havia 2º turno e o Congresso precisava confirmar o candidato vitorioso. Joan Garcés , assessor de Allende na época, narra que entre outubro e novembro de 1970 algumas articulações foram feitas para impedir que o socialista se tornasse presidente, entre a direita chilena, setores militares, a empresa estadunidense International Telephone and Telegraph e a CIA. Mas, naquele momento, o bloco da direita ainda estava muito fragmentado: alguns defendiam um golpe militar, outros uma obstrução pelo Congresso, e enfim o plano fracassou.

Joan Garcés também lembra que o governo da Unidade Popular - UP foi “emoldurado” por dois assassinatos emblemáticos: do general Schneider , em outubro de 1970, e do general Prats , em setembro de 1974, ambos líderes do constitucionalismo dentro das Forças Armadas. Allende afinal tomou posse devido a um acordo com o terceiro candidato, Radomiro Tomic , que representava a ala esquerda da Democracia Cristã - DC. Essa aliança com a DC tornou-se uma espécie de fantasma da Unidade Popular, objeto das maiores polêmicas da “via chilena ao socialismo”.

Um segundo ponto é que a base eleitoral de Allende era muito diversa e com trajetórias heterogêneas de luta popular: trabalhadores industriais, estudantes, mineiros, intelectuais, pobladores e camponeses de diferentes partes do país. Cada um desses setores carregava consigo memórias coletivas e experiências próprias, crenças e aspirações específicas, correspondentes a um acúmulo histórico de lutas, resistências e conquistas. Isso é importante para entender que uma multiplicidade de expectativas sociais foi depositada no governo da Unidade Popular, gerando uma tensão crescente entre a criação do poder popular, a ação direta das bases de apoio e a absorção técnico-institucional das demandas “debaixo” pelo governo. Essa tensão talvez seja um dos processos históricos mais estudados da América Latina, porque o drama da “via chilena ao socialismo” condensa problemas até hoje vividos pelas esquerdas.

Por último, naquela conjuntura, a base de apoio de Allende cresceu expressivamente devido à decepção com o governo de Eduardo Frei Montalva . A DC havia prometido uma “revolução em liberdade”, mas não foi capaz de executá-la na velocidade e sentido que seus apoiadores exigiam. Então uma parte dessa insatisfação com o reformismo de Frei se deslocou e se identificou com a retórica revolucionária da Unidade Popular.

IHU On-line — Como a esquerda chilena estava organizada em relação aos movimentos sociais latino-americanos? Houve aproximação ou distanciamento com a Organização Latino-americana de Solidariedade - OLAS ?
Joana Salém — “A esquerda” é uma ficção. Existem muitas esquerdas, com prioridades, programas, teorias, métodos e práticas diferentes. A cultura política das esquerdas latino-americanas é extremamente complexa e diversificada. Por isso, as esquerdas chilenas se relacionavam com os movimentos sociais latino-americanos e com a OLAS de maneiras variadas.

O território político propulsor da OLAS e da OSPAAAL era Havana. Em 1967, quando surgiram, Cuba iniciou o movimento de “ofensiva revolucionária”, um dos mais radicalizados esforços coletivos de construção do socialismo até então – ou do que se imaginava que deveria ser o socialismo. A relação das esquerdas chilenas com a revolução cubana era bastante complexa. Por um lado, a revolução cubana era a grande fonte de inspiração para todas as esquerdas do continente, um exemplo que exercia atração implacável sobre o imaginário popular. Por outro lado, a mesma revolução cubana desarmava a tese do “feudalismo” e da necessidade da “etapa burguesa”, adotada pela oficialidade dos Partidos Comunistas. O debate da via chilena entrava nessa frequência: era possível construir o socialismo com recursos institucionais capitalistas? Era desejável?

Distinções entre Chile e Cuba

O historiador Peter Winn conta que durante o bombardeio ao Palácio de La Moneda em 11 de setembro, Allende carregava a arma que tinha ganhado de presente de Fidel Castro , na qual estaria inscrito: “A meu bom amigo Salvador Allende, de Fidel, que por meios diferentes tenta atingir os mesmos objetivos” . O partido mais guevarista da revolução chilena, o MIR, era uma pedra no sapato dos comunistas. A relação entre comunistas chilenos e o miristas chegou a ultrapassar a mera rivalidade para tornar-se confronto direto.

Nesse sentido, a solidariedade internacional era ambivalente. Por exemplo, os miristas enviavam seus quadros para treinamento guerrilheiro em Cuba e quando voltavam não havia no Chile cenário social compatível com a guerrilha. Os comunistas adotavam uma retórica entusiasta da revolução cubana, mas sem nunca compactuar com sua tática e insistindo na necessidade vital da aliança com a pequena burguesia. Todos queriam propagar a revolução na América Latina, mas cada um da sua maneira, então as expressões da solidariedade eram marcadas pela presença dessas divisões.

Solidariedades de esquerdas

Por último, diria que as esquerdas chilenas demonstraram sua solidariedade internacional de duas formas, igualmente importantes. Primeiro, no período dos governos da DC e da UP (1964-1973), o Chile tornou-se um território de acolhimento de exilados, um verdadeiro “receptor de perseguidos” no contexto da Guerra Fria. Quando Allende foi eleito, o Brasil e o Paraguai já estavam em ditadura militar e a Argentina vivia uma sucessão de golpes. Não por acaso, entre os perseguidos pelas ditaduras estavam quadros de alto escalão, parte da intelligentsia das esquerdas de vários países. Santiago do Chile tornou-se um dos principais destinos de exilados políticos do Cone Sul, uma verdadeira capital das esquerdas sul-americanas. Nesse sentido, a experiência de poder da Unidade Popular foi absolutamente transnacional, contando com a participação direta de brasileiros, uruguaios, argentinos, paraguaios, bolivianos etc.

Uma segunda forma de solidariedade aconteceu depois do golpe de 1973, quando parte da esquerda chilena articulou as redes internacionais contra a tortura, contra as ditaduras, contra a violação dos direitos humanos. E outra parte, ainda esperançosa na revolução, optou por um ativismo de “ofensiva”, enviando militantes para atuarem diretamente em guerrilhas na Nicarágua, no Peru, na Argentina e outras partes do continente.

IHU On-line — Qual a importância do Movimiento de los Pobladores na história do socialismo chileno? Como o movimento se construiu?
Joana Salém — Sobre os movimentos de pobladores, recomendo a leitura do novo livro da historiadora brasileira Márcia Cury . A autora dedicou um capítulo à história dos pobladores e sua relação com os partidos da esquerda chilena. A tese de Cury é que as experiências da luta por moradia nas periferias de Santiago, intensificadas desde a década de 1950 e culminando em 1970, criaram laços práticos de solidariedade popular entre os “subalternos” que foram pouco a pouco transformando a visão dos partidos de esquerda sobre a luta de classes. Cury mostra que, tradicionalmente, comunistas e socialistas adotavam um esquema político mais rígido, atribuindo à classe operária o papel de “sujeito revolucionário” por definição e secundarizando as lutas sociais que ocorressem fora da esfera produtiva, nos bairros.

Porém, a crescente auto-organização dos sem-casa e a ampla adesão às tomas por moradia nas periferias da capital acabaram por deslocar a atenção dos partidos da Unidade Popular para esse lugar “secundário”. Assim, os partidos de esquerda se incorporam, participam e aprendem com a luta dos pobladores – cada um com seu repertório e programa. Segundo a historiadora, as bases sociais “transformaram” os partidos, da mesma maneira que os partidos influenciaram o processo de politização popular, ou seja, existiu um aprendizado mútuo, cheio de conflitos e contradições. A principal marca desse aprendizado era a possibilidade de uma luta social que inaugurava em si mesma um novo modo de vida e uma nova relação entre território, sociabilidade e poder popular.

Acho que com esse estudo Márcia Cury sugere um debate fundamental para as esquerdas contemporâneas, sobre a importância do cotidiano e dos espaços de reprodução da vida para a razão de ser da esquerda; sobre a militância comunitária, o aprendizado dos partidos com a luta popular auto-organizada e os vínculos de solidariedade tecidos dessa troca.

IHU On-line — Qual a importância do Massacre de Puerto Montt para a história chilena?
Joana Salém — O massacre de Puerto Montt foi uma repressão realizada pelo governo Eduardo Frei Montalva contra pobladores em 1969. Embora não fosse um ato de repressão isolado, gerou grande impacto porque 10 pessoas foram mortas, incluindo um bebê. Esse massacre foi um dos símbolos de desgaste sofrido pela retórica da “revolução em liberdade” proposta pela Democracia Cristã, que ia encontrando limites cada vez mais evidentes. O reformismo de Eduardo Frei Montalva, aliás, é um outro tema interessante para reflexão sobre os limites do reformismo na América Latina contemporânea.

Eduardo Frei Montalva foi certamente muito mais transformador do que a maioria dos governos chamados “bolivarianos” ou “progressistas” recentes. Ao mesmo tempo foi um dos políticos mais sistematicamente financiados pela CIA até aquele período, como está registrado nos documentos desclassificados da própria agência. Naquele contexto, Kennedy tinha alterado a política dos Estados Unidos para América Latina, propondo uma agenda de reformas estruturais de tipo Cepalino, através da plataforma da Aliança para o Progresso. O objetivo era evitar a revolução. Mas o reformismo de Frei, financiado pelos Estados Unidos, se mostrou uma fórmula radical e arriscada demais, acabou gerando o efeito oposto do desejado.

A sociedade chilena possuía uma classe trabalhadora cada vez mais organizada. O próprio governo Frei foi um forte propulsor da organização popular, por exemplo, com a lei de sindicalização camponesa de abril de 1967, que enfim permitiu que os trabalhadores rurais se associassem legalmente. O governo democrata cristão pretendia criar instrumentos tutelares e canalizar as energias de revolta popular para configurações aceitáveis ao capitalismo chileno. Mas a DC perdeu o controle. A sociedade atravessava um processo de empoderamento popular e auto-organização sem precedentes e os mecanismos de tutela não resistiram. Assim, o governo reformista tutelador vestiu sua armadura de governo repressor, para tentar recuperar o controle. O ônus dessa repressão, como comentei, foi pago nas eleições seguintes, quando o projeto mais radical da UP se sintonizou com os anseios populares.

IHU On-line — Qual foi a importância da Reforma Agrária na disputa política chilena?
Joana Salém — Esse é o tema da minha tese de doutorado que estou desenvolvendo na USP. A reforma agrária teve uma importância transcendental para a história chilena nesse período. Até 1958, os camponeses eram reféns de um sistema eleitoral que favorecia o cohecho: os patrões e seus partidos imprimiam as cédulas de votação e assim podiam controlar os votos e arrebanhar seus inquilinos e empregados. Desde 1958, a cédula passou a ser impressa pelo Estado e os partidos Conservador e Liberal perderam o controle do voto camponês. Por isso, em 1964, a Democracia Cristã foi eleita expressivamente pelo voto camponês, com a promessa da reforma agrária. Só que a promessa da reforma agrária da DC tinha dois destinatários: os Estados Unidos e os camponeses. Como conciliar essas expectativas? Impossível. Os diferentes modelos de reforma agrária produzidos na América Latina nesse período foram se mostrando cada vez mais opostos e inconciliáveis.

Com a lei de reforma agrária de 1967, o governo Frei tentou agradar a todos, gerando uma amplitude legal enorme para a aplicação de uma reforma agrária bastante profunda. Um dos autores da lei, Jacques Chonchol , rompeu com a DC em 1969 e fundou o Movimiento de Acción Popular Unitário - Mapu, que integrou a UP com alto poder de direção. Depois, Chonchol foi Ministro da Agricultura de Salvador Allende e passou a ser o executor, num governo socialista, da lei que havia ajudado a formular durante sua atuação em um governo capitalista .

A reforma agrária de Eduardo Frei

O principal motor da lei de reforma agrária de Eduardo Frei era a expropriação de todas as propriedades maiores que 80 hectares de riego básico - HRB, uma unidade que media fertilidade da terra e não correspondia à superfície física. Começa aí a confusão, porque quem conseguia convencer os camponeses que uma propriedade com 300 hectares físicos não era expropriável pela lei, porque tinha 70 HRB? Centenas de tomas ocorreram nessas circunstâncias. Os técnicos mostravam as tabelas de conversão de hectares físicos em HRB e muitos camponeses se recusavam a aceitar, era uma linguagem técnica alienígena, que nada tinha a ver com o universo cultural deles.

O governo Allende, quando eleito, não mexeu na lei, mas foi aplicá-la até suas últimas consequências, inclusive expropriando sem direito à reserva patronal as propriedades “mal exploradas”. Outro problema é que a lei não dizia com exatidão o que era uma propriedade “mal explorada” e esse conceito dependia de técnicos do Estado locais, que eram filiados a partidos políticos. Mais um flanco de conflitos sem fim. No fim das contas, a DC expropriou 3,5 milhões de hectares em cinco anos e a UP expropriou 5,3 milhões em três anos. Somadas, 43% das terras agrícolas chilenas foram expropriadas em um processo revolucionário pacífico e sem paralelo na história mundial.

Como novidade, a UP introduziu dois decretos: um que criava uma nova forma de propriedade (os Centros de Reforma Agrária) para substituir os assentamentos. E outro que criava os Conselhos Camponeses, para integrar territorialmente diferentes organizações de trabalhadores rurais e representá-las perante o governo. Os dilemas da “via chilena ao socialismo” se expressaram de maneira aguda no campo: a pequena burguesia agrária era uma aliada ou uma inimiga? As tomas ilegais de terras, organizadas pelos camponeses com a esquerda revolucionária, eram construtivas ou destrutivas para a estratégia socialista?

Foco de estudos

Minha pesquisa de doutorado tem como foco os programas educacionais de capacitação técnica, formação política e alfabetização camponesa no contexto da reforma agrária e as decisões sobre as formas de propriedade individuais ou coletivas. Quero associar a história econômica à história cultural no contexto da transição socialista. Estou investigando a participação de Paulo Freire na coordenação dos programas de alfabetização do governo Frei, as aplicações do seu método no campo, as divergências com os métodos de assistência técnica e extensão rural e, em suma, como as contradições políticas e sociais da “via chilena ao socialismo” se expressaram em termos de batalhas pedagógicas e epistemológicas no campo.

IHU On-line — As mobilizações sociais de 1968 ao redor do mundo influenciaram positivamente ou negativamente a ascensão do governo Allende? Como?
Joana Salém — No fim dos anos 1980, o historiador Gabriel Salazar escreveu um trabalho chamado De la generación chilena de ’68: omnipotencia, anomia, movimento social?. Nesse artigo, ele queria desvendar qual seria o papel da geração de 1968 no processo de democratização que se abria nos anos 1990, a partir de uma análise das memórias e da autopercepção daquela geração sobre si mesma. Salazar estava participando de um debate entre seus pares, já que ele mesmo é praticamente da mesma geração e se propôs a criticar alguns colegas e defender abertamente uma posição política radical sobre os rumos do país.

Nesse texto, o historiador critica o que ele chamou de uma “pesada autoimagem” da geração de 1968, isto é, uma espécie de enamoramento narcísico que explicaria a intensidade do “voluntarismo histórico” com que a juventude de esquerda se lançou a uma tarefa autoatribuída: ser vanguarda revolucionária e “lutar até as últimas consequências”. Salazar enfatizou que a ideia da “infalibilidade dos líderes”, o sentimento de onipotência e a sobrevalorização das próprias capacidades foram componentes tóxicos dessa cultura política geracional. Sua crítica ao vanguardismo em termos políticos tinha a mesma embocadura da sua crítica às metanarrativas estruturalistas em termos historiográficos. Ele propôs a recuperação do que chama de “historicidade popular”, pois “a vanguarda marcava ritmos que, por sua velocidade, só podiam ser seguidos cegamente pelas bases, submetendo o povo a solavancos” (p. 100).

Claro que as mobilizações de 1968 insuflaram as esquerdas no Chile. Mas quais camadas e quais classes sociais das esquerdas? O projeto socialista era internacional, a militância marxista formava uma grande rede de rivalidades intelectuais e alianças políticas pelo mundo. Mas pensando no argumento do Salazar, no Chile talvez um dos componentes paradoxais dessa influência tenha sido a intensificação do entusiasmo urbano e intelectual consigo mesmo. A ampliação de uma “autoimagem pesada” das vanguardas, a expansão de um sentimento paradoxal de responsabilidade, que misturava no mesmo projeto uma solidariedade profunda com os destinos do “povo” e uma espécie de “narcisismo geracional”. Seria um tema interessante de pesquisa investigar como as vanguardas partidárias tratavam os acontecimentos de 1968 nas suas liturgias e formações para as “bases”. Não saberia responder. O que não podemos perder de vista é que o impacto de 1968 para os estudantes da Universidade do Chile é completamente diferente do impacto dos mesmos acontecimentos para os camponeses de Ñuble, para os mapuches da Araucania ou para mineiros de Antofagasta.

IHU On-line — Como estavam organizados esses movimentos sociais no golpe militar de 1973? Como se deu a resistência?
Joana Salém — No famoso filme de Patricio Guzmán , a A Batalha do Chile: a luta de um povo sem armas, são mostradas algumas cenas de militares entrando em casas de bairros pobres, em sindicatos e fábricas para recolher supostas armas armazenadas pela população em 1973. Era a aplicação da Lei de Controle de Armas, aprovada pelo próprio governo Allende, depois da incorporação de militares no gabinete, em outubro de 1972. A verdade é que nem o MIR nem os setores radicais do Partido Socialista, que defendiam resistência armada, estavam preparados.

Existiam alguns armamentos escondidos de agrupamentos pequenos, mas eram basicamente para autodefesa local, uso pessoal, nada compatível com a artilharia pesada de um exército. Por um lado, a ideia de uma “etapa armada” era retórica e pouco efetiva. Ou seja, se os setores revolucionários tinham razão em termos discursivos, porque foi impossível conciliar a transição socialista com a institucionalidade burguesa, eles não desenvolveram a capacidade político-técnica de fazer valer suas próprias proposições. O que restava era a confiança na indisciplina dos soldados, que poderiam criar um motim contra a ordem golpista.

Mas no fim, o respeito às hierarquias militares, que era um argumento de Salvador Allende em defesa da capacidade institucional do Estado de contornar a crise dentro da Constituição, serviu exatamente para consolidar o golpe. Os soldados indisciplinados foram rapidamente executados, não houve resistência armada significativa da população. Salazar, dentro de sua posição crítica ao vanguardismo, escreve que o golpe gerou um “caos disciplinar” nas esquerdas, pois as bases dos partidos esperavam receber ordens que chegaram defasadas e uma cultura partidária legalista colapsou diante da ausência da lei. Os movimentos populares, na sua dimensão de disputa aberta e sindical, foram solapados, mas na sua dimensão de resistência silenciosa, cotidiana e constante, estiveram ativos ao longo de toda a ditadura.

IHU On-line — Como compreender a alternância de poder nas últimas quatro eleições entre Michelle Bachelet e Sebastián Piñera na presidência do Chile?
Joana Salém — A alternância entre Bachelet e Piñera pode ser entendida a partir do sistema que os chilenos chamam de duopólio, resultado da Constituição de 1980 e das regras eleitorais criadas pelo próprio regime Pinochet . Essas regras favorecem a criação de dois blocos moderados, que têm tonalidades de esquerda ou direita, mas efetivamente não pretendem mudar muito as regras do jogo que os estabiliza no poder.

Durante o primeiro governo de Bachelet, a Concertación alcançou a maioria necessária para mudar algumas regras da Constituição e optou por não fazê-lo. Enfim, são as duas faces do mesmo sistema. Embora tenham diferenças, nenhum deles se propõe a alterar a Constituição de 1980 de maneira profunda, como indica o aparente abandono da iniciativa de reforma constitucional do governo Bachelet em 2016-2017.


IHU On-line — É reconhecida a força do movimento estudantil chileno, a ponto de inspirar os movimentos de ocupação de escolas e universidades no Brasil. Apesar desse contexto, você afirma que a democracia chilena vive sob o espectro de Pinochet. Como essas contradições se formaram? Qual a possibilidade de síntese desse conflito?
Joana Salém — As contradições na educação chilena são fruto de uma política educacional de Pinochet, aperfeiçoada pelos governos democráticos, em que o Estado é subsidiário, a responsabilidade de educar é constitucionalmente entregue à iniciativa privada e os setores empresariais e públicos de ensino têm fronteiras pouco definidas. Recentemente chamou a atenção a notícia sobre a gratuidade das universidades públicas, aprovada nos últimos dias do governo Bachelet. Mas pouco se falou que essa gratuidade não é universal e está condicionada ao crescimento do Produto Interno Bruto - PIB, além de não romper com a lógica do Estado subsidiário. Claro que pode ser considerado um “avanço” no direito de estudar dos mais pobres, mas dentro da mesma ordem constitucional da ditadura e com limites evidentes.

O problema educacional chileno é tão importante no conjunto de disputas sociais que os estudantes da geração de 2011 têm sido protagonistas da ruptura das novas esquerdas com a Concertación, através dessa ferramenta heterogênea chamada Frente Ampla, que conquistou 20 deputados nas últimas eleições. As tensões de classe dentro da nova esquerda continuam e é preciso refletir sobre elas.

Como romper com a ordem pinochetista? Com quais estratégias e movimentos? Alguns setores da Frente Ampla consideram problemático que a articulação de um discurso estudantil mais elitista ganhe projeção sobre as lutas dos sem-teto, dos mapuches, dos trabalhadores e camponeses. O debate sobre as tensões das classes sociais dentro das esquerdas não pode ser ignorado e tem desdobramentos políticos decisivos. ■

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