Edição 519 | 09 Abril 2018

Mesmo com limites, atual Constituição permitiu que a sociedade refletisse sobre seus problemas

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João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

Para Pablo Holmes, Brasil tem um processo de democratização cheio de sobressaltos, bastante frágil e precário


A Constituição Brasileira promulgada em 1988 foi fundada “numa concepção moderna e não identitária de solidariedade”, explica o professor Pablo Holmes. Desde os primeiros artigos, ela parte “de um imperativo fundamental de inclusão social”, ou seja, “todos os indivíduos têm que ter acesso mínimo às oportunidades produzidas pelas diversas dimensões da vida social (o saber, a saúde, a capacidade de ser cidadão como os outros), a fim de que ele não possa ser visto como um indivíduo essencialmente inferior a nenhum outro”.

O modelo constitucional “oficial” apresenta elementos de um modelo de Estado Social de Direito, no entanto, Holmes salienta que essa não foi a grande novidade do texto. Com essa afirmação, não pretende afirmar que o sistema constitucional de 1988 é continuidade da história anterior. No seu entendimento, “o elemento mais relevante da nova ordem é de natureza política”.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Holmes observa que é comum tratar como trivial algo que se trata da grande novidade da ordem constitucional de 1988: “o estabelecimento de uma democracia política protegida por diversos mecanismos a garantir, pela primeira vez, algum acesso mínimo de todos os brasileiros e brasileiras a processos de decisão coletiva”.

Há limites na atual Constituição, no entanto, Holmes aponta que, a partir dela, pela primeira vez a sociedade pode “refletir coletivamente sobre seus problemas”. Ao fazer uma síntese do Estado e do país que se democratizou apenas no final do século 20, ele ressalva que se trata de “uma sociedade marcada por formas transversais de exclusão social que produzem estruturas poderosas de bloqueio à constitucionalização” e de “processos políticos marcados pela reprodução de poder informal por oligarquias funcionais altamente excludentes e poderosas, capazes de fortes movimentos de desconstitucionalização”.

O Brasil tem um processo de democratização cheio de sobressaltos e, ainda hoje, bastante frágil e precário. “Se olhamos os eventos dos últimos três ou quatro anos, podemos ver como são evidenciados, em momentos de crise, a força do poder informal e a capacidade de setores sociais privilegiados de manipular o sistema político em favor de interesses privados”, analisa Holmes.

Pablo Holmes é bacharel e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e doutor em Sociologia pela Universidade de Flensburg. Foi pesquisador visitante no Centro de Política e Direito Europeus da Universidade de Bremen, Alemanha, e Fellow do Käte Hamburger Kolleg da Universidade de Duisburg-Essen. É professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreender a solidariedade enquanto elemento para a formação do estado democrático de direito? E como esse conceito de solidariedade aparece na Constituição de 1988?
Pablo Holmes – A Constituição Brasileira de 1988 é fundada numa concepção moderna e não identitária de solidariedade. E ela parte, já desde de seus primeiros artigos, sobretudo os 3°, 5°, 6° e 7°, de um imperativo fundamental de inclusão social. Inclusão social quer dizer: todos os indivíduos têm que ter acesso mínimo às oportunidades produzidas pelas diversas dimensões da vida social (o saber, a saúde, a capacidade de ser cidadão como os outros), a fim de que ele não possa ser visto como um indivíduo essencialmente inferior a nenhum outro. Pode-se dizer que o artigo 3°, que estabelece como objetivo da república a construção “de uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I) ou a erradicação “da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais” (inciso III), é o resultado da experiência concreta do país, sobretudo em virtude de sua desigualdade histórica e profunda.

Também os diversos direitos sociais estabelecidos no artigo 6° são muitas vezes vistos como resultado do contexto da transição. Certamente que há constituições que não trazem tão amplo catálogo de direitos. Ainda assim, o princípio fundamental, por trás desses dispositivos, é o princípio da inclusão social. E, portanto, um princípio moderno de solidariedade. Comum a grande parte das constituições políticas modernas (seja em seus instrumentos escritos, seja na forma como elas são concretizadas e interpretadas por cortes e comunidades políticas).

IHU On-Line – Que modelo de Estado a Constituição de 1988 concebe?
Pablo Holmes – A narrativa mais comum sobre o processo constitucional de 1988 afirma que ele resultou de um processo que colocou na defensiva setores conservadores: um resultado do desgaste da ditatura militar. Isso teria feito da nossa carta política um documento “progressista”, recheado de direitos e declarações programáticas em favor da inclusão, sobretudo na forma de direitos sociais. Essa é, na minha opinião, apenas uma parte da história.

É fato que a Constituição Brasileira é rica em direitos sociais, mas isso não é tão inovador assim. Outras constituições anteriores também enumeravam direitos coletivos e sociais. Até mesmo a outorgada pela ditadura militar, em 1967, trazia direitos trabalhistas e sociais importantes, tais quais o direito de greve (art. 158, XXI), o direito à assistência médica (XV), à previdência (XVII), à educação (art. 168), além de diversas limitações à propriedade em nome do interesse público. Aliás, direitos sociais foram introduzidos nas constituições brasileiras desde 1934, acompanhando uma tendência de globalização dos direitos sociais que se iniciou com as revoluções Mexicana e Russa de 1917 e que pode ser encontrada em diversas ordens constitucionais do mundo, inclusive nos Estados Unidos, como aponta a conhecida obra de Bruce Ackerman.

Nesse sentido, o nosso modelo constitucional “oficial” traz elementos de um modelo de Estado Social de Direito. Mas, como disse, essa não é a sua grande novidade. Claro, houve alguns aperfeiçoamentos, sobretudo do ponto de vista organizativo e da ênfase. O Sistema Único de Saúde e o germe de um sistema de assistência social são inovações importantes. No entanto, expectativas normativas de inclusão social são parte da própria estrutura de legitimação dos sistemas políticos modernos: até mesmo as mais tirânicas ditaduras e oligarquias prometem inclusão social. Aliás, todas as ditaduras do mundo, hoje, sem exceção, têm constituições com amplos catálogos de direitos (trazidos no texto ou pela prática de interpretação jurisdicional). Sem essas promessas, o sistema político entra em crise, normalmente uma crise de legitimação que pode fazer sucumbir a autoridade dos governos. Uma velha lição de Max Weber ainda faz sentido: é bastante improvável que um governo se mantenha de forma indefinida apenas com base no recurso à ameaça permanente do uso da violência. Em algum momento soldados podem se negar a puxar o gatilho. Isso aliás aconteceu na derrocada dos regimes do socialismo real, no final da década de 1980. Tampouco aqueles regimes se legitimavam apenas por meio da força.

Pode parecer, com isso, que estou a afirmar que o sistema constitucional de 1988 é uma continuidade da história anterior. Não é isso. Isso estaria evidentemente equivocado. Eu identificaria a inovação crucial da ordem constitucional de 1988, porém, em outro ponto. O elemento mais relevante da nova ordem é de natureza política.

Primeiramente, a juridificação de processos políticos democráticos com melhores chances de organização para novos atores políticos e a ampliação (mesmo tímida) da sua participação nos processos decisórios: a liberdade política, o pluripartidarismo, amplas liberdades de associação, assim como amplo acesso ao Judiciário por meio de novas ações, tanto individuais e coletivas.

Lembremos que a Constituição anterior, de 1967, estabeleceu a eleição indireta para presidente da república e o Ato Institucional N° 3, assim como uma lei de 1968 suspendeu eleições diretas para prefeito em diversos municípios brasileiros, inclusive as capitais. Para mim, a existência de eleições diretas, amplas e inclusivas para presidente da República é um elemento central de disputa em toda nossa história, sobretudo se lembramos que o Brasil elegeu apenas quatro presidentes de forma direta nos últimos 58 anos. E que, até 1960, ano da última eleição presidencial antes da nova Constituição, apenas uma ínfima parte da população participava do processo eleitoral.

Para se ter uma ideia, enquanto na República Oligárquica da Constituição de 1891 a eleição presidencial com maior participação popular levou 5% da população às urnas, em 1929, e na ordem de 1946 a maior eleição foi a de 1960, com participação de aproximadamente 17% da população, a eleição presidencial de 1989 contou com o voto de 49% da população. E as eleições de 2014 teve a participação de quase 60% de todos os brasileiros.

Outros elementos fundamentais da nova ordem constitucional também podem ser identificados com esse processo de democratização política, como o fim de dispositivos típicos da ordem ditatorial, que davam amplos poderes ao presidente da república e afastavam de qualquer tipo de controle parlamentar ou judicial atos instituídos pelo golpe de 1964.

Muitas vezes tratamos como trivial algo que é, na verdade, a grande novidade da ordem constitucional de 1988: o estabelecimento de uma democracia política protegida por diversos mecanismos a garantir, pela primeira vez, algum acesso mínimo de todos os brasileiros e brasileiras a processos de decisão coletiva. Nesse sentido, o modelo de Estado que se estabeleceu em 1988 foi um modelo que os juristas costumam chamar de “Estado Democrático de Direito”. Algo surpreendente, dada nossa história anterior.

IHU On-Line – As ideias recorrentes de reforma constitucional tentam mascarar o desejo de constituir outro Estado?
Pablo Holmes – Não vejo problemas, a priori, na possibilidade de se empreender reformas constitucionais. Elas são parte do processo político democrático. O problema seria, na verdade, se não pudéssemos alterar a constituição. Imaginemos o quão pouco democrática é uma ordem constitucional que se imunize em relação à possiblidade de decisões coletivas que a alterem. Num contexto socialmente dinâmico, as consequências disso podem ser tremendas: o total imobilismo da sociedade.

Dito isto, é preciso, contudo, ter clareza de que há, também, a possibilidade de reformas constitucionais que procurem, exatamente, imunizar o Estado e o processo político contra a possibilidade de interferência da população nas decisões coletivamente relevantes. Há diversas formas de reformar a constituição no sentido de “desconstitucionalizar” processos decisórios.

Por desconstitucionalização entendo aqui dinâmicas segundo as quais processos de decisão coletivamente vinculantes, baseados em procedimentos inclusivos e juridificados, como os procedimentos eleitorais, legislativos parlamentares e mesmo judiciais, são substituídos por formas de decidir (sobretudo acerca de direitos fundamentais) organizadas em estruturas não procedimentalizadas e não includentes. Aqui é importante conceitos como o de “poder informal” e de “autoridade privada”, pois o processo de desconstitucionalização implica, exatamente, que se transfira o poder formal constitucional para formas de poder informal, desviando as decisões que deveriam ser tomadas por procedimentos democráticos para outras arenas, impondo muitas vezes interesses particularistas a toda a coletividade.

Vimos recentemente o caso do auxílio moradia de magistrados e membros do Ministério Público, um benefício baseado em uma decisão bastante questionável de um ministro do STF [Supremo Tribunal Federal], em clara afronta a diversos dispositivos constitucionais. Não quero dizer que o auxílio deveria ser proibido por razões morais. Não se trata disso. Mas ele foi mantido, pura e simplesmente, por conta de manobras que evitam que as instituições constitucionais possam decidir. Há diversos exemplos disso, não só no Supremo, mas em diversas instituições. Embora tivemos um processo sempre precário de constitucionalização, esse não é um problema exclusivamente brasileiro, existe em qualquer democracia, mas ele pode se tornar estrutural. E pode se dar por meio do poder de reforma constitucional, num processo que, às vezes, pode tomar formas perigosas.

Quando esse processo de desconstitucionalização pode se tornar estrutural? Um exemplo contemporâneo que me vem à mente é o de mecanismos introduzidos nas constituições que tornam impossível qualquer deliberação pública coletiva sobre o endividamento do Estado ou sobre a possibilidade de realizar gastos públicos.

Esse tipo de mecanismo constitucional é baseado, normalmente, em uma premissa que é deixada invisível: a de que direitos individuais de propriedade (os investidores proprietários de títulos da dívida pública) têm primazia frente a qualquer outro direito fundamental. Veja bem: é próprio do processo de constitucionalização garantir direitos individuais e coletivos. Mas o balanço entre os dois, o sopesamento de sua aplicabilidade e da forma como eles interagem, assim como sua operacionalização, dependem sempre de processos políticos e judiciais em que direitos de propriedade são confrontados com outros direitos segundo um processo reflexivo. Direitos fundamentais são assim politizáveis e temporalizáveis (tornados contingentes), sem que nenhum tenha, de antemão, o primado total sobre a ordem constitucional. É sempre preciso levar em conta problemas de inclusão e exclusão, problemas políticos intergeracionais, a autocompreensão da comunidade política e os problemas concretos com que a sociedade tem que lidar. Em suma, essas são decisões eminentemente coletivas, que compõem o núcleo da função da política. São questões indecidíveis, porque implicam opções que nenhum técnico pode fazer por ninguém: elas estão na raiz da fragmentação da moralidade e na diversidade de projetos de sociedade futura típica da modernidade.

O primado total de um direito (como o da propriedade) sobre o outro (o do acesso à educação ou acesso à saúde) significa uma absolutização que é contrária à fragmentação de valores que funda as ordens constitucionais modernas. Poderíamos dizer que essa, sim, é uma forma essencialista de política “identitária”: a identidade do proprietário (de títulos públicos) se impõe sobre a identidade de todos os outros indivíduos, como se ele fosse um supercidadão acima dos outros, tornados subcidadãos e, portanto, excluídos de processos decisórios que lhe dizem diretamente respeito. Alguns autores têm falado até mesmo de uma refeudalização da sociedade. Esse processo retiraria da comunidade política grande medida de capacidade decisória, reduzindo as alternativas possíveis de futuro disponibilizadas à sociedade: como na sociedade medieval europeia, o passado (a tradição) vincula o futuro, que passa a ser visto como um “destino”.

Ainda é cedo para dizer se a constituição política e a democracia serão superadas. O poder privado ainda necessita da polícia e do direito estatais, ainda funcionando muito mais como um parasita do poder formal. E ele ainda não parece ser capaz de substituí-lo em suas funções de legitimação. Mas é evidente que estamos vendo uma naturalização crescente de formas de poder privado e de uma compreensão bastante reduzida de direitos fundamentais que parecem às vezes um renascimento do direito natural. Uma forma, portanto, pós-política, pós-democrática e pós-constitucional de definir direitos. Espero que essa seja apenas uma tendência entre outras na sociedade mundial.

IHU On-Line – O processo constituinte pensou em um ideal de democracia. No que consiste essa democracia e o quanto ela se efetiva no Brasil de hoje?
Pablo Holmes – Do ponto de vista teórico, é problemático se ter um “ideal de democracia”. A democracia é uma forma dinâmica de tomada de decisões coletivas que pode se organizar de formas diversas. Parece-me mais importante para a teoria social e política entender as formas existentes de democracia e o modo como elas se organizam e se relacionam com outras estruturas sociais do que insistir em um modelo “normativo” de democracia, que exista fora da realidade, capaz de servir como paradigma para as democracias existentes. É mais útil observar, por exemplo, a forma como as organizações democráticas são constrangidas e condicionadas por contingências históricas e sociais vindas da economia, da tradição jurídica, das condições de exclusão social etc. E entender como se dá a constitucionalização política diante desses constrangimentos, que são sempre inevitáveis.

Nesse sentido, “ideais de democracia” são aspirações mais políticas do que teóricas. E, embora teorias possam ter significado político, há uma diferença fundamental entre as duas coisas. Teorias devem ser orientadas primariamente para a cognição, exigindo sempre alto nível de reflexividade e autocrítica, para permanecer sempre capazes de “aprender” com a realidade, observando seus próprios limites explicativos. Agendas políticas, por outro lado, embora também possam (e devam) ser reflexivas e ter capacidade de aprender com a realidade, devem ser primariamente orientadas para a decisão coletiva. Portanto devem limitar a dimensão de reflexão e autocrítica, sob pena de serem paralisadas e terem dificuldade de orientar qualquer ação ou decisão coletivamente relevantes. A teoria se preocupa primariamente com perguntas e apenas secundariamente com respostas, e com política se dá o inverso, dada a sua necessidade de orientar decisões. Se a teoria se orienta mais por respostas, ela perde a capacidade crítica. E se a política se orienta primariamente por perguntas, ela perde a capacidade de orientar decisões e ações.

Ao analisarmos teoricamente o que se deu depois da constituinte de 1988, percebemos que seus avanços e seus limites podem ser observados a partir do próprio processo de constitucionalização política que ela realizou. Esse processo pode ser descrito como uma diferenciação entre direito e política, seguido por sua reconexão graças a procedimentos juridificados capazes de organizar o processo de decisão coletiva de maneira includente.

Importante insistir que a mera existência de cartas constitucionais não representa necessariamente um processo de constitucionalização política, no sentido técnico. Se assim fosse, poderíamos falar em constitucionalização em qualquer contexto em que um ditador ou uma oligarquia outorgam uma constituição, mas utilizam de seus processos como meros mecanismos privados de manutenção do poder. A constitucionalização política é uma forma específica de organização do poder político, fundada na diferenciação do sistema político por meio de processos juridificados (eleitorais, administrativos, judiciais) que se tornam a única fonte de poder legítimo aos olhos da sociedade.

Dizer que as constituições de 1824 ou de 1891 representaram processos de constitucionalização, porque foram capazes de legitimar o poder, é um erro conceitual básico. O poder não se reproduzia, nesses contextos, nem mesmo com base nos processos previstos constitucionalmente. Os bloqueios aos procedimentos jurídicos parlamentares e judiciais eram constantes, por força da intrusão de interesses particularistas de grupos poderosos, que continuamente violavam, de forma explícita, os processos tais quais previstos no texto. Os procedimentos eleitorais, censitários (Constituição de 1824) ou excludentes (Constituição de 1891) eram constantemente fraudados e bloqueados. O direito ao habeas corpus foi constantemente suspenso, por força de intervenções federais e declarações de estado de sítio, completamente casuísticas e nunca controladas.

A Constituição de 1988 estabeleceu procedimentos que passaram a exigir novos esforços por parte das velhas oligarquias nacionais para o exercício de poder privado informal e ação desconstitucionalizante. E, como consequência, ela criou uma dinâmica nova de tematização e politização da realidade social. Toda uma nova agenda política surgiu, trazendo à tona temas que passaram a ser vistos como problemáticos, a exigir “tomadas políticas de decisão”. A exclusão social e as diversas formas de desigualdade (de renda, de gênero, as profundas desigualdades raciais) vieram para o centro do debate político brasileiro. Não é possível negar isso. Algo que se acentuou depois da estabilização econômica do começo dos anos 1990.

Parece-me aliás razoável esperar que numa sociedade tão estruturalmente desigual, reproduzida transversalmente por relações de inclusão e exclusão, o sistema político, quando se democratize, traga esses problemas para o centro da agenda pública. Sociologicamente, minha intuição é a de que, a menos que tenhamos uma ruptura definitiva com a ordem democrática, esse tema ainda dominará a agenda política das próximas décadas. É fundamental para isso que haja eleições periódicas sem a exclusão de opções relevantes para os eleitores. E dada nossa história, nunca se pode descartar a possibilidade de que eleições possam ser manipuladas ou simplesmente suprimidas.

Voltando ao que dizia no início, a própria democracia brasileira produziu um ideal de democracia fundado numa ampliação da inclusão social. E nesse sentido “a casa de máquinas da constituição”, depois da democratização, passou a ser a noção moderna de solidariedade social (funcional). Ao menos enquanto tivermos uma constituição democrática. Sei que essa é uma intuição problemática, mas acredito haver boas evidências em sua defesa.

IHU On-Line – Como avalia o sistema político gestado na Constituição de 1988 e a sua aplicabilidade nos dias de hoje?
Pablo Holmes – Há formas diversas de organizar a democracia. E, em realidades altamente complexas, essa tarefa é também igualmente complexa. Muito se argumentou que o arranjo institucional estabelecido pela Constituição de 1988, baseado no multipartidarismo e no voto em lista aberta, sem cláusula de barreira, criaria uma instabilidade permanente para as maiorias parlamentares, o que seria contraditório em relação ao sistema presidencialista, pois isso levaria a uma fragmentação política com grandes problemas para a governabilidade.

Contudo, a pesquisa em ciência política demonstrou já há um bom tempo que essa narrativa conta apenas uma parte da história. Em realidade, sistemas parlamentaristas e presidencialistas podem ter muitas semelhanças entre si, dependendo da forma como se dão os trabalhos parlamentares e dos poderes que são atribuídos ao presidente da república e aos atores centrais do parlamento. De modo que o nosso presidencialismo de coalizão trouxe muitos elementos do parlamentarismo, ao mesmo tempo em que atribuiu muitos poderes ao presidente da república. No final, quase todos os presidentes conseguiram construir algum tipo de maioria parlamentar, procurando compor grandes coalizões que afastassem o risco de “perda da governabilidade”.

Com efeito, alguns criticam o sistema político da Nova República, o chamado “presidencialismo de coalizão”, por ter favorecido uma relação promíscua entre o Executivo e o Legislativo, o que se tornou evidente nos seguidos escândalos de corrupção. Esse fato parece mesmo ter sido solenemente ignorado por muitos dos maiores defensores do modelo do presidencialismo de coalizão. Sobretudo alguns cientistas políticos abertamente ligados ao PSDB afirmaram por muito tempo que as crises políticas de 2005 e 2016 se deviam a uma incompetência na gerência da coalizão ou mesmo à prática indiscriminada de corrupção como mecanismo de formação de maiorias pelo Partido dos Trabalhadores. Algo que, segundo eles, não acontecia no passado, leia-se nos governos FHC. Isso parece não só contraintuitivo, como foi desmentido seguidamente pelas melhores evidências. O mais provável é que o modelo tenha mesmo se sustentado, desde o começo, com base em uma série de práticas à margem da lei, sobretudo por meio do uso de recursos públicos para o financiamento eleitoral de aliados e consequente garantia de apoio parlamentar. A diferença entre o PT e o PSDB poderia residir no fato de que o primeiro, composto por neófitos do sistema político, não dispunham das redes oligárquicas de proteção que garantiram (e parecem ainda garantir) proteção aos políticos dos partidos tradicionais, incluindo o PSDB.

Nesse sentido, parece-me relevante outra crítica ao presidencialismo de coalizão, como ele se organizou sobretudo desde 1993/1994. Segundo essa crítica, feita entre outros por Marcos Nobre , a democracia da Nova República teria sido imobilizada pelo próprio modelo, funcionando quase como um prolongamento das formas oligárquicas do passado. Nobre chama de “peemedebismo” esse arranjo institucional no qual qualquer impulso mudancista mais radical contra estruturas de exclusão social, vindo da esfera pública, pode ser bloqueado pela maioria parlamentar oligárquica, que cobra um alto pedágio para não colocar em risco a governabilidade e, em última análise, o próprio mandato do chefe do Executivo.

Certamente, o arranjo pelo qual oligarquias e setores superincluídos garantem seu poder informal pode ter mudado com a Constituição de 1988, mas não sumiu completamente. E Nobre tem parcialmente razão. Sem dúvida, custa-me a acreditar que 200 ou 300 anos de história política teriam sido alterados por força do movimento constitucional de 1988. Muitas vezes, nem mesmo revoluções radicais são capazes de realizar tal mudança.

O sistema político de 1988, com o presidencialismo de coalizão e suas idiossincrasias, foi em muitos sentidos uma alteração apenas incremental (não revolucionária) da organização do Estado, no Brasil. A nossa Constituição não resultou de um processo revolucionário, como o processo de constitucionalização em grande parte dos países ricos. Para Dieter Grimm , importante teórico da constituição, esse é aliás um elemento fundamental para compreender a origem do constitucionalismo. Mas do ponto de vista do sistema político, essa alteração incremental teve um relevante caráter de novidade – e até mesmo de ruptura com nossa trajetória anterior. Volto a reafirmar que vejo a democratização (que entendo conceitualmente quase como um sinônimo de constitucionalização) como algo muito menos trivial do que pode parecer. Ainda mais por ter conseguido alguma estabilidade, ao menos desde 1994 até 2016. São 22 anos!

As crises políticas desde 1988 (sobretudo os dois impeachments), assim como o “imobilismo” oligárquico do nosso sistema político, têm raízes complexas e multicausais, que tornam também limitadas as críticas de Nobre ao presidencialismo de coalizão. Para mim, isso acontece porque ele parte de uma observação do processo de constitucionalização quase que exclusivamente centrada no sistema político. Nesse ponto, é importante, como disse antes, uma visão que contextualize sociologicamente também o processo de constitucionalização, observando suas condicionantes para além do sistema político. A democratização política, em uma situação estruturalmente marcada por formas de exclusão social, sempre é também estruturalmente limitada. Não existe democracia em um vácuo social, como resultado de um voluntarismo vanguardista. E por isso democracias são tão improváveis.

Com isso não quero dizer que o presidencialismo de coalizão, assim como o “presidencialismo de cooptação” que o acompanhou, é o melhor dos mundos possíveis. Meu ponto é apenas o de que há razões estruturais para que o processo de constitucionalização brasileiro tenha se dado dessa maneira. As nossas estruturas de exclusão fazem parte da sociedade. Estão na economia, na educação, na saúde, na cultura e, portanto, serão refletidas no sistema político, qualquer que seja seu arranjo. Por isso sou também cético em relação a um certo “fetichismo” acerca da reforma política. Sempre pode haver avanços incrementais. Mas nenhuma reforma (exclusivamente) política irá representar uma revolução social. Sociologicamente, não acho que existem muitos equivalentes funcionais para uma revolução, para o bem e para o mal.

Com todos os seus limites, a Constituição de 1988 possibilitou pela primeira vez a sociedade refletir coletivamente sobre seus problemas (formulando-os, em primeiro lugar). Veja bem: estamos falando de um Estado que se democratizou apenas no final do século 20. De uma sociedade marcada por formas transversais de exclusão social que produzem estruturas poderosas de bloqueio à constitucionalização. De processos políticos marcados pela reprodução de poder informal por oligarquias funcionais altamente excludentes e poderosas, capazes de fortes movimentos de desconstitucionalização.

Estabilizar a democracia entre nós é algo profundamente improvável, e essa estabilização ainda está em aberto. Mas não tenho dúvida de que houve claros avanços nessa direção nos últimos 30 anos. Seria um retrocesso perdermos até mesmo o problemático presidencialismo de coalizão da Nova República– imobilista, peemedebista –, se não fosse em favor de um arranjo mais democrático. O nosso maior problema, hoje, é que existe um risco razoável de que percamos até mesmo ele. E sem ganhar algo melhor.

IHU On-Line – Quais os maiores avanços da Constituição e quais os desafios para assegurar sua efetivação?
Pablo Holmes – Um exame da nossa história mostra que o processo de democratização foi cheio de sobressaltos. E ainda hoje é algo bastante frágil e precário.

E quais as causas disso? Certamente não faltam candidatos à vaga de causa fundamental de nossa tragédia, tampouco candidatos a “intérprete do Brasil” a querer entregar a melhor descrição do problema – e talvez a “solução final”. Alguns acham que os percalços da nossa precária democratização se devem primordialmente às nossas “desigualdades sociais” estruturais. Outros veem o grande problema na escravidão e em seu legado; outros ainda identificam as causas no próprio caráter historicamente oligárquico do sistema político, herdado de um passado colonial problemático. Há ainda aqueles que interpretam tudo como resultado da forma de inserção dependente da economia nacional no sistema internacional de trocas. Parece-me que todos – e, portanto, nenhum – têm alguma razão. Acho um equívoco tentar identificar uma causa única, ou mesmo primordial, para o fato de que temos uma história constitucional marcada por um profundo déficit de democratização. As causas para isso são várias, e elas se reforçam reciprocamente.

A escravidão provavelmente resulta da forma como se deu a inserção da economia brasileira no sistema econômico mundial, mas tal inserção seria improvável sem a existência da própria escravidão moderna e do estabelecimento de instituições (nacionais e transnacionais) capazes de garantir a reprodução de uma economia escravista. A ordem institucional da colônia certamente foi responsável pela produção de profundas desigualdades. E essas explicam a permanência de um sistema político oligárquico. Mas apenas um sistema oligárquico extremamente hierárquico poderia ser capaz de bloquear por tanto tempo pressões políticas por democratização, sobretudo depois de 1888 (ano da abolição).

Para resumir meu argumento: em uma sociedade complexa, torna-se epistemologicamente suspeita qualquer identificação de causas únicas para a reprodução de estruturas sociais que se entrelaçam. Pois os condicionamentos são recíprocos: a reprodução da economia depende da reprodução do direito e da política e vice-versa. Ao invés de procurar o “porquê” de um fenômeno, faz mais sentido compreender como ele é produzido de forma estrutural e processual.

Assim, se tivesse que escolher uma forma de descrever o problema da forma mais simplificada possível – e isso às vezes é necessário na teoria política e social –, eu escolheria fazer uso da diferença “inclusão/exclusão”, como propõe, entre outros, Marcelo Neves . Pois essa diferença consegue descrever de forma heurística e menos abarcante uma relação social que tem um significado transversal, embora com diferenças específicas. Pois se reproduz tanto na economia, como no sistema político, como no sistema jurídico, gerando dinâmicas altamente estáveis e capazes de se reforçar reciprocamente.

Afinal, como apontava Niklas Luhmann , quem, em uma sociedade moderna, não tem acesso a uma identidade ou certidão de nascimento (e, portanto, à cidadania jurídica) pode ter dificuldades de acesso à educação formal. Sem educação formal, reduzem-se as chances de ação na economia, obtendo-se acesso ao dinheiro. Sem dinheiro, não se tem acesso a saúde, arte, ciência, informação, nem se pode pagar advogados que poderão garantir a defesa de direitos violados. Sem a capacidade de atuar como parte em um processo judicial, o indivíduo se torna presa fácil de estruturas de poder arbitrárias, estatais ou privadas, fundadas no poder informal de atores sociais superincluídos. Desse outro lado, quem tem acesso a dinheiro, tem acesso à educação, ao direito, ao poder, tornando-se capaz de produzir redes que garantem as relações de inclusão e exclusão. Isso inclui, então, atores privados e agentes públicos com acesso a bens e processos e com capacidade de se impor sobre qualquer controle: seja por meio de normas jurídicas, pelas regras da economia de mercado, da ciência, podendo colonizar sistemas funcionais para reproduzir seus interesses e posições.

Essa estrutura social passa a parasitar as estruturas organizacionais do Estado, das empresas, das escolas, das universidades, favorecendo, novamente, interesses particularistas e sua ação desconstitucionalizante. Assim, a estrutura de inclusão e exclusão, embora seja ela mesma contingente, tende a se tornar bastante estável e resiliente no interior de um Estado, condensando-se também no plano global, graças à diferenciação entre centro e periferia entre Estados nacionais diversos: o que nos leva novamente à forma de inserção dos Estados na economia política global.

Certamente, a diferença entre centro e periferia, baseada na segmentação do sistema político em Estados, também tem caráter contingente. Mas, em um dado contexto social, relações de inclusão e exclusão, reforçadas por formas de inserção na economia global, podem se tornar ainda mais estáveis. E sua superação depende de constelações de fatores altamente improváveis.

Nesse ponto, parece-me extremamente relevante introduzir uma hipótese que considero bastante plausível teoricamente. E na qual já toquei anteriormente. E aqui me afasto também de Neves.

O sistema político, quando constitucionalizado democraticamente, pode desenvolver uma dinâmica muito particular de inclusão. Ao contrário de outros sistemas, como a ciência ou a economia, nos quais é preciso alto nível de acesso a bens como conhecimento, educação e recursos organizacionais para se poder agir, ou mesmo o direito, no qual você precisa muitas vezes de um advogado com conhecimento técnico para figurar como parte em um processo, a política democrática exige apenas que você tenha cidadania. Claro que a cidadania pode ser também limitada por uma série de desigualdades estruturais. E como demonstram pesquisas empíricas recentes, o comparecimento eleitoral tem correlação positiva com o nível de inclusão social e negativa com o nível de pobreza.

Ainda assim, no procedimento eleitoral, caso ele haja, cada indivíduo tem apenas um voto. E a própria crítica às limitações do processo eleitoral, por serem marcados por desigualdades, é já um processo de politização em si mesmo. A democracia política pode tornar possível, assim, um crescente processo de politização de formas de exclusão social, ao mesmo tempo em que pode criar um mecanismo bastante direto de interferência da população em processos sociais de outros setores da vida social.

Há elementos empíricos relevantes, oferecidos pela pesquisa econômica, que apontam uma forte correlação entre inclusão política e inclusão econômica. E a ciência política também tem investigado a correlação entre direitos políticos de associação e protesto como condição para a garantia de direitos fundamentais individuais, inclusive aqueles que se referem às liberdades econômicas. Nesse sentido, penso que a Constituição de 1988, que estabeleceu entre nós pela primeira vez a forma moderna de democracia representativa, deu um passo importante para a superação de problemas estruturais de exclusão social.

Isso não quer dizer, como parecem pensar alguns, que o Brasil realizou a sua “transição”. Para começar, a ideia de transição, típica de teorias do desenvolvimento, parece-me um tanto simplificadora, para uma realidade tão complexa. Pois ela parte da ideia de que existe um processo evolutivo fixo, em que países não desenvolvidos “se desenvolvem”. O problema é que a relação desenvolvimento/subdesenvolvimento, equivalente à diferença tradição/modernidade, supõe uma relação temporal para uma realidade sincrônica. Só existe subdesenvolvimento porque existe desenvolvimento: e as duas coisas se relacionam de forma causal de maneira igualmente complexa.

Segundo entendo, o que há é muito mais uma concorrência, na sociedade mundial atual, não decidida entre duas dinâmicas de reprodução: uma dinâmica fundada na inclusão crescente de indivíduos nos sistemas funcionais da sociedade e outra fundada na manutenção da diferença inclusão/exclusão como reguladora da reprodução social em diversos níveis e setores sociais. Essas dinâmicas podem, em dadas circunstâncias, ganhar uma dimensão regional clara, dado que sistemas funcionais dependem das estruturas do Estado, em muitos aspectos. E isso nos traz mais uma vez ao caso brasileiro, que é apenas mais um numa sociedade moderna altamente desigual, sobretudo em virtude das diversas formas de dependência de trajetória deixadas pelo processo colonial e pela dominação política e econômica dos Estados ricos.

No sistema político-jurídico brasileiro, a primeira dinâmica parece ter avançado bastante com o processo de constitucionalização de 1988 que, mesmo precário e “imobilista”, criou uma dinâmica de politização da exclusão social e uma consequente pressão por inclusão. A segunda dinâmica, no entanto, não foi extinta. Longe disso. Ela é bastante ubíqua, apresentando-se de diversas formas, como na apropriação do Estado por setores privilegiados, como parte dos servidores públicos, nas redes que protegem setores das oligarquias da atuação do Judiciário etc.

Dessa “disputa”, depende, enfim, a “efetivação da constituição”. Mas uma coisa é importante: essa disputa não é apenas política. Ela é, na falta de uma palavra melhor, uma disputa “evolutiva” (ou evolucionária). Ela se dá no terreno do sistema político, mas se dá também no terreno econômico, no terreno científico, no terreno pedagógico. E em cada um desses domínios as condições em que se pode produzir inclusão são diversas. Para complicar ainda mais, uma forma de inclusão sempre parece ter relação com a outra. A inclusão na economia, em regiões com renda baixa (como o Brasil), certamente depende de alguma medida de crescimento econômico. E, embora o crescimento tenha muita relação com a política, não depende apenas dela: dependendo de uma constelação de acasos que incluem as mais diversas variáveis. Pense apenas em como a educação de jovens, hoje, de acordo com determinada aptidões, pode se tornar incompatível com mudanças tecnológicas futuras, com impacto na economia, na política etc.

Resumindo: a “efetivação da constituição” depende de uma série de variáveis. Que são difíceis de controlar. Isso não quer dizer que não podemos, ao menos, fazer aquilo que nos cabe. E nesse ponto a política continua, sim, sendo um espaço altamente relevante.

IHU On-Line – O Brasil vive uma crise democrática ou uma crise política? Por quê? E que conexões podem ser estabelecidas entre essa crise e a Constituição de 1988?
Pablo Holmes – Se olhamos os eventos dos últimos três ou quatro anos, podemos ver como são evidenciados, em momentos de crise, a força do poder informal e a capacidade de setores sociais privilegiados de manipular o sistema político em favor de interesses privados. A resiliência de processos de exclusão, a desconsideração de resultados eleitorais e a capacidade de promover agendas específicas à revelia de maiorias eleitorais são indicadores de que aquela disputa de que falamos acima está longe de ter sido decidida de forma definitiva.

Não me refiro, obviamente, ao impeachment de Dilma Rousseff . Acredito que o processo foi marcado por inconsistências jurídicas. Sobretudo porque violou o princípio da igualdade jurídica, que determina tratar igualmente casos iguais: uma condição da diferenciação do direito moderno e, portanto, uma condição da constitucionalização democrática. Mas essa é uma discussão independente, em relação a meu argumento, pois um impeachment não significa necessariamente uma ruptura da ordem constitucional.

O problema é que estamos assistindo a um processo mais amplo. Preocupa-me que, depois de 2016, vimos seguidas manobras, no sentido de bloquear investigações, de usar o poder informal de influência para violar procedimentos judiciais – e fatalmente eleitorais – em favor de interesses particularistas. O conhecido caso do processo no TSE chega a ser um exemplo de manual da falta de consistência de corpos judiciais em consequência da interferência do poder informal de atores poderosos.

Alguns insinuam que isso acontece em qualquer lugar do mundo, inclusive em países “ricos”. É claro que existe poder informal em qualquer lugar: ele resulta da própria diferenciação do poder como um meio (um recurso) na modernidade. Ainda assim, eu não tenho notícias de que em democracias mais estabelecidas juízes importantes atuaram de forma deliberada como líderes políticos de facção, alterando em público suas próprias decisões e manipulando processos de forma reiterada. Há democracias em que impeachments são exceções. E há “democracias” em que apenas dois presidentes eleitos terminam seus mandatos num intervalo de 60 anos. Há sistemas políticos em que um presidente tenta bloquear investigações, mas é constrangido jurídica e politicamente. E há sistemas em que ele pode recorrer a acordos de gabinetes explicitamente ilegais para impedir o funcionamento do direito.

Não há como negar que há diferenças gritantes entre ordens constitucionais estruturadas e estáveis e outras altamente desestruturadas. E por isso faz, sim, sentido falar em uma modernidade periférica. Os que negam esse fato parecem deixar a teoria se orientar mais por razões políticas do que por uma compreensão da realidade. É o primado da orientação pela resposta (normativa e já desde sempre pronta) sobre uma orientação pela pergunta cognitivamente interessada e aberta à contingência.

Mas, enfim, tampouco podemos afirmar que a Constituição de 1988 foi uma farsa completa. E que todo o processo político que se deu desde então é vazio de significado. Vínhamos de um processo político produtivo, em razão da lábil estabilidade da democratização, desde 1994. Com todos os seus problemas. Ao mesmo tempo, passamos recentemente a uma realidade extrema de incerteza. Vimos a primeira intervenção federal em um Estado desde a vigência da Constituição. Aparentemente por razões puramente político-eleitorais. E, afinal, não podemos achar normal que um governante numa democracia diga que “aproveitará” sua impopularidade para governar. Isso é uma refutação de tudo o que diz qualquer teoria básica sobre accountability democrática. O temor então é o de que possamos ter um processo de ruptura mais profundo: seja um adiamento de eleições ou uma mudança constitucional para um parlamentarismo que isole ainda mais o poder oligárquico concentrado nos grandes partidos: uma constitucionalização total do peemedebismo que reduziria ainda mais a capacidade de participação e interferência da população nas decisões relevantes.

Estamos vivenciando, enfim, uma crise da nossa democracia. A ideia de crise, como formulada por Reinhart Koselleck , de que gosto muito, implica que há uma ameaça reconhecida como perigosa e há decisões a serem tomadas que podem afastar tal ameaça. Nesse sentido, penso que estamos diante de uma crise da nossa constitucionalização. Uma crise que corresponde àquela “disputa evolucionária” de que falei. Prefiro não ver a crise apenas como uma reação a um governo particular (uma reação da direita a um governo supostamente popular). Isso seria simplificador e mesmo falso. Do ponto de vista teórico, não se trata de pessoas nem de partidos, mas de estruturas e processos. E não nego que entendo a história brasileira a partir dessa tensão evolucionária, altamente complexa, entre inclusão e exclusão. Sempre posso me convencer do contrário, se houver uma explicação melhor. Mas ainda acho que podemos aprender bastante por meio dessa distinção.

Como em todo processo social, em uma sociedade complexa, é difícil dizer de antemão qual serão os desdobramentos e o resultado dessa crise. É improvável que apenas um fator seja decisivo. Muitas são as variáveis que determinam essa dinâmica. Num país com nossa história, no entanto, acho aconselhável que sempre sejamos bastante cautelosos, evitando expectativas por demais otimistas. Repito: é sempre bom manter alguma capacidade de autoironia e auto-observação distanciada. Além de evitar frustrações, tal atitude pode nos esclarecer acerca de quais opções estão realmente disponíveis. ■

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