Edição 519 | 09 Abril 2018

Constituição está velha, descaracterizada, mutilada e comprometida com visão retrógrada

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Vitor Necchi

Para Marcello Lavenère Machado, o texto aprovado em 1988 tinha a cara do Brasil, com a pluralidade de opiniões e os conflitos existentes na sociedade

O advogado Marcello Lavenère Machado, juntamente com o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, teve atuação marcante em um dos principais fatos da história brasileira. A dupla, representando respectivamente a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira de Imprensa, assinou o pedido de impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Atento ao mundo da política e das leis, Lavenère analisa a Carta Magna 30 anos depois de sua promulgação. “A hoje já velha Constituição está descaracterizada de seu sentido original, transformada perversamente em um texto mutilado e comprometido com uma visão retrógrada da sociedade, o que se obteve com uma centena de emendas que lhe foram impostas, praticamente todas contrárias aos interesses populares”, lamenta.

Lavenère recorda que “havia um grande sentimento na cidadania de que o país necessitava de uma nova Constituição, votada, por uma Assembleia Nacional Constituinte originária, livre e soberana, com reforço das expressões ampla, geral e irrestrita”. No seu entendimento, o texto final foi o “resultado do paralelogramo de forças existentes no momento”, tendo “a cara do Brasil, com a pluralidade de opiniões e os conflitos existentes na sociedade”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o advogado avalia que os anos seguintes à promulgação “confirmaram que a Carta de 88 atendia mais às reivindicações progressistas do que às conservadoras”. A corroborar essa afirmação está o fato de que “as emendas nela introduzidas ao longo desses 30 anos têm a nítida orientação de retirar-lhe os avanços então conquistados”.

Instigado a pensar sobre a construção da democracia e o fortalecimento da cidadania, Lavenère acredita que as derrotas mais marcantes ocorridas durante a construção do texto constitucional se referem à área do direito de propriedade – pois “não foi possível subordiná-la de modo claro e direto à sua função social” –, à proteção das empresas nacionais em concorrências com estrangeiras, ao capítulo da reforma agrária – “não se conseguiram os avanços necessários especialmente na desapropriação facilitadora da reforma” e ao capítulo da comunicação social, que suscitou turbulências graves e “resultou um texto tímido, porém tão visado que até hoje é o único que não foi possível regulamentar”.

Marcello Lavenère Machado é formado em Direito pela Faculdade do Recife e em Filosofia pela Universidade de Alagoas. Foi presidente do Instituto dos Advogados de Alagoas e secretário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Foi eleito presidente da OAB Nacional para o triênio 1991-1993. Neste período, em 1992, foi autor do pedido de impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, junto com Barbosa Lima Sobrinho, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa - ABI.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Na campanha pela Constituinte, defendia-se que ela fosse ampla, geral e irrestrita. O que isso significava?
Marcello Lavenère Machado – Havia um grande sentimento na cidadania de que o país necessitava de uma nova Constituição, votada, por uma Assembleia Nacional Constituinte originária, livre e soberana, com reforço das expressões ampla, geral e irrestrita. Originária, isto é, seus membros exerciam o poder constituinte originário, e não poder constituinte derivado, como é o poder de emendar uma constituição já existente. Como consequência, os constituintes não poderiam ser oriundos se não de eleições específicas, com candidaturas específicas para exercer o mandato constituinte e somente para isto, não permanecendo o constituinte como deputado ou senador após a promulgação da Carta. Também significava que ela não estaria limitada aos termos de eventual convocação. Livre, isto é, com possibilidades de discutir qualquer assunto. Soberana, isto é, sem que houvesse nenhum outro poder que a censurasse, nem o Supremo Tribunal Federal, nem o Congresso Nacional remanescente do antigo regime. O que ela aprovasse não seria submetido a nenhuma revisão, aprovado estava. Portanto, eram essas as três exigências dos movimentos populares que se traduziram nas expressões reforçativas: ampla, geral e irrestrita.

IHU On-Line – Em 1988, que análise o senhor fazia sobre o texto final da primeira Constituição após o fim da ditadura instaurada em 1964?
Marcello Lavenère Machado – Dizíamos à época que a nova Constituição não era a constituição da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] nem a constituição do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], para significar que ela era o resultado de todas as forças sociais que participaram de sua elaboração. Para Sarney , então presidente da República, ela tornaria o país ingovernável. Para Ulysses Guimarães , que presidiu a Assembleia Nacional Constituinte, era a Constituição Cidadã. Dizíamos que ela continha grandes avanços, apesar de não terem sido possíveis todos os que as forças populares queriam. Mas também as forças conservadoras, representadas pelo Centrão , não tinham conseguido colocar nela tudo o que lhes interessava. A Constituição de 88 era o resultado do paralelogramo de forças existentes no momento. Tinha a cara do Brasil, com a pluralidade de opiniões e os conflitos existentes na sociedade. Os anos seguintes à promulgação confirmaram que a Carta de 88 atendia mais às reivindicações progressistas do que às conservadoras, evidência a que se chega, quando se observa que as emendas nela introduzidas ao longo desses 30 anos têm a nítida orientação de retirar-lhe os avanços então conquistados.

IHU On-Line – Trinta anos depois, sua leitura sobre o resultado obtido permanece a mesma?
Marcello Lavenère Machado – A hoje já velha Constituição está descaracterizada de seu sentido original, transformada perversamente em um texto mutilado e comprometido com uma visão retrógrada da sociedade, o que se obteve com uma centena de emendas que lhe foram impostas, praticamente todas contrárias aos interesses populares. As últimas emendas, após o golpe de 2016, aprofundaram de forma grave seu desmonte e aniquilaram os avanços de 88. Constituíram a pá de cal, com que se completou o sepultamento de uma Constituição Cidadã.

Hoje o que dela resta é uma constituição retrógrada, representante acabada do pensamento neoliberal, que substitui os interesses da população pelos interesses da banca, do mercado. Como exemplo desta destruição basta citar a Emenda Nº 95, oriunda da cognominada PEC do Fim do Mundo , que congelou os gastos com a área social por 20 anos, deixando sem qualquer limite os gastos com as operações financeiras. Tamanhas foram as emendas à Constituição a lhe descaracterizar seu próprio sentido que nos últimos tempos se discute a conveniência de uma nova constituinte, que elabore uma carta livre destas mutilações. Penso eu que não é conveniente tal solução pelo risco real de ainda mais se piorarem os institutos constitucionais. Considero preferível em momento oportuno no futuro uma consulta popular em torno da rejeição de determinadas emendas, especialmente das últimas propostas pelo governo ilegítimo que sucedeu a um governo eleito pela soberania popular.

IHU On-Line – O que sustenta o adjetivo “cidadã” atribuído à Constituição?
Marcello Lavenère Machado – Este apelido foi dado por Ulysses Guimarães exaltando a proximidade das disposições da Constituição com os interesses populares. Certamente também pela forma aberta e transparente dos trabalhos constituintes. Por outro lado, é cidadã a Carta de 1988 na medida em que acolheu os direitos individuais e coletivos logo no seu início, no artigo 5º, e os direitos trabalhistas em seguida, no artigo 7º. Estas escolhas são suficientes a mostrar o viés cidadão da Carta Política.

IHU On-Line – Quais foram os principais grupos e interesses que agiram nos bastidores da constituinte? E como impactaram o texto final?
Marcello Lavenère Machado – Participaram dos trabalhos constituintes uma pluralidade e uma diversidade de convicções muito amplas. Havia a esquerda e a direita atuando, progressistas e conservadores nos debates, entidades de empresários e entidades de trabalhadores defendendo seus pontos de vista. O texto que resultou reflete bem este amálgama de forças e interesses presentes na sociedade brasileira daquela época. Não predominaram os extremos, prevalecendo uma visão centrista, democrática.

IHU On-Line – Do ponto de vista da construção da democracia e do fortalecimento da cidadania, quais as derrotas mais marcantes ocorridas durante a construção do texto constitucional?
Marcello Lavenère Machado – Na área do direito de propriedade, não foi possível subordiná-la de modo claro e direto à sua função social. A proteção às empresas nacionais em concorrências com estrangeiras também ficou a desejar. No capítulo da reforma agrária, não se conseguiram os avanços necessários especialmente na desapropriação facilitadora da reforma. E o capítulo da comunicação social suscitou turbulências graves do que resultou um texto tímido, porém tão visado que até hoje é o único que não foi possível regulamentar.

IHU On-Line – Há necessidade de se reformular a atual Constituição? E uma eventual reforma na Constituição é arriscada?
Marcello Lavenère Machado – A constatação feita sem divergências é que o atual texto é profundamente diferente daquele originariamente redigido. Temos hoje uma Constituição que mais se afeiçoa a uma visão neoliberal, com todos os seus defeitos, do que a constituição democrática de 88 que era muito próxima de uma visão de estado de bem-estar social (welfare state). Há que se restaurar os princípios e as garantias sociais e populares de 88 e aprofundá-los. O caminho é que não se apresenta de forma consensual: reformas ou constituinte. Ainda prefiro o primeiro. Com a presente correlação de forças, não considero aconselhável aos movimentos populares defender a ideia de uma constituinte.

IHU On-Line – E a reforma política, tão lembrada e pedida, como fazê-la de maneira a não ficar refém de políticos que, em seus sucessivos mandatos, legislam para si?
Marcello Lavenère Machado – A Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas que atuou nos anos de 2014 e 2015, composta por mais de cem entidades da sociedade civil, entre elas a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, o MCCE [Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral], a CUT [Central Única dos Trabalhadores], a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] e a UNE [União Nacional dos Estudantes], apresentou à Câmara Federal um projeto de lei de reforma política. Entre os pontos principais, estava a proibição de financiamento eleitoral por empresas, a manutenção do voto proporcional – porém com lista pré-ordenada – em dois turnos, aumento da participação feminina e ampliação dos mecanismos de participação popular previstos no artigo 14 da Constituição.

O primeiro era o mais importante e foi conseguido mediante decisão do Supremo Tribunal Federal apreciando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da OAB. Hoje o financiamento empresarial eleitoral, que era uma fonte de corrupção e desequilíbrio dos pleitos, está banido no Brasil. O voto proporcional foi mantido, mas não em dois turnos. Porém conseguimos evitar a aprovação do voto distrital, que seria mais um desastre a prejudicar o país. Votou-se uma pequena melhora na participação feminina e ampliou-se, também de forma tímida, o que se prevê no artigo 14.

No conjunto da obra, pode-se considerar bem-sucedida aquela iniciativa das entidades. Todavia, não é bastante. Novas conquistas no momento não se vislumbram como possíveis, dada a enorme incapacidade do Poder Legislativo de incorporar reivindicações populares ou progressistas. Uma mentalidade retrógrada, interesseira e em grande parte corrupta atualmente domina tanto a Câmara Federal como o Senado da República, não se podendo esperar nada que seja um avanço democrático. A concepção neoliberal de hegemonia do mercado e do rentismo comanda a maioria dos parlamentares que assim não representam os eleitores, porém seus financiadores. É de se aguardar que as próximas eleições, que serão as primeiras parlamentares sem dinheiro do poder econômico, possam criar um clima menos autoritário e elitista, e quem sabe assim aprofundamos os pontos necessários a uma reforma política democrática.

IHU On-Line – O impeachment dos presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff revela solidez ou fragilidade da Constituição para o trato de crises políticas?
Marcello Lavenère Machado – Dois impeachments, duas realidades profundamente diferentes. O primeiro, contra Fernando Collor de Mello , foi promovido por duas entidades respeitáveis da sociedade civil, a OAB e a ABI – Associação Brasileira de Imprensa. Esta era presidida pelo jornalista Barbosa Lima Sobrinho e desfrutava de uma credibilidade extraordinária. Lideravam o Movimento pela Ética na Política, apartidário, formado por centenas de entidades da sociedade civil, e que tinha nos saudosos dom Luciano Mendes de Almeida , então presidente da CNBB, e no sociólogo Herbert de Souza , o popular Betinho do Ibase [Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas], seus nomes mais conhecidos.

Neste impeachment, se apurou por meio de uma CPMI [Comissão Parlamentar Mista de Inquérito] a prática, pelo então presidente, de atos concretos, e apurados de maneira transparente, incompatíveis com o decoro do cargo. O segundo, de natureza partidária oposicionista, engendrado pelo PSDB, partido que patrocinou a petição de impeachment, admitido pelo deputado Eduardo Cunha , então presidente da Câmara Federal, num ostensivo e aberto ato de revanchismo político, sem que se apurasse nenhum ato indecoroso ou crime de qualquer natureza praticado pela presidenta Dilma Rousseff , não passou de um profundo golpe parlamentar midiático, denunciado amplamente pelas entidades mais respeitáveis da sociedade civil brasileira de um lado, e do outro, o apoio da TV Globo e financeiro da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp.

O primeiro impeachment foi analisado de maneira positiva pelos anos que se seguiram como sendo uma manifestação legítima da população contra um presidente que desonrou o cargo. Já o segundo, sobre cuja natureza golpista nunca houve dúvida, em pouco tempo teve sua realidade escancarada, especialmente pela atuação do governo golpista que assumiu o poder. Os escândalos de corrupção dos integrantes do governo Michel Temer , atingindo o próprio presidente, as medidas neoliberais propostas e em grande parte já aprovadas por um Legislativo subalterno aos interesses das corporações estrangeiras que assaltam os ativos brasileiros, a destruição dos direitos trabalhistas, a tentativa de acabar com a Previdência Social, tudo que se seguiu ao golpe de 2016 exibe um país em meio a uma instabilidade profunda, envolvendo inclusive o Poder Judiciário.

O futuro é incerto, e os danos já produzidos demandarão longo período de recuperação. A opção rentista de sujeição ao mercado e aos interesses da banca são expostos a nu pela emenda constitucional decorrente da PEC do Fim do Mundo, que congelou as verbas orçamentárias com a educação, a saúde e outros programas sociais, mantendo sem limites as despesas com encargos financeiros. Em bom português: optou por tirar os recursos destinados a escolas e hospitais para entregá-los aos banqueiros. É um insofismável crime de lesa-pátria.

IHU On-Line – O Supremo Tribunal Federal, na condição de tribunal constitucional, vem cumprindo o seu papel de guardião da Carta Magna?
Marcello Lavenère Machado – O desempenho do STF tem sido profundamente criticado pelos advogados e pelos professores de direito. Abandonando uma atitude garantista de direitos que tinha até o julgamento do mensalão , o STF passou a adotar uma visão condenatória, exacerbada, com negação dos direitos duramente conquistados informadores do devido processo legal. As reiteradas ilegalidades da Operação Lava Jato não tiveram do STF nenhum ato de correção, tornando a Suprema Corte igualmente responsável pelas violações das garantias constitucionais. ■

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