Edição 519 | 09 Abril 2018

A emergência de um novo constitucionalismo para além do Estado Moderno

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Vitor Necchi | Edição: João Vitor Santos

José Luiz Quadros de Magalhães desafia a pensar noutra perspectiva constitucional a partir da experiência de países da América Latina

Quem pensa que democracia e igualdade é um binômio que já nasce de forma indissociável, pode incorrer num erro conceitual. O alerta é do jurista e professor José Luiz Quadros de Magalhães. “A Constituição, o constitucionalismo, não nasceu democrático. Ele nasceu liberal e o liberalismo protege as decisões individuais”, alerta. Segundo ele, é com o passar dos tempos e ascensão de uma nova burguesia que vai se tecendo uma ideia de igualdade. Entretanto, esclarece que “esse constitucionalismo burguês nasce para trazer segurança, previsibilidade, estabilidade. A finalidade da Constituição é dar segurança, nunca foi dar democracia”. É com essa perspectiva que o professor defende que não basta uma Constituição, um arcabouço legal bem-apanhado para assegurar a democracia plena. “É necessário que se tenha uma cultura constitucional, é necessário que exista uma sociedade que se mobilize”, acrescenta.

E Magalhães vai além. Na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, destaca que esse modelo está esgotado e que só será possível atingir a democracia plena quando se abandonar a velha matriz Moderna. “O novo constitucionalismo se apresenta como uma das alternativas democráticas importantíssimas para a construção de uma nova teoria. Porque esse mundo que está aí, essa teoria que está aí, o direito que está aí, não se sustentam”, pontua. Mas que novo constitucionalismo é esse? Para ele, “é um diálogo aberto e fundamental com outras perspectivas e não apenas as perspectivas antropocêntricas”. É “uma perspectiva que tem um diálogo complexo com teorias ecocêntricas, biocêntricas, animalocêntricas, como deep ecology”, que, para o professor, se aproxima muito da concepção das constituições equatoriana e cubana.

José Luiz Quadros de Magalhães é graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II; possui mestrado e doutorado em Direito pela UFMG. Atualmente é professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, na UFMG e na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. É presidente nacional da Rede pelo Constitucionalismo Democrático Latino-Americano e presidente da Red Internacional para un Constitucionalismo Democrático en Latinoamerica. Entre suas publicações mais recentes, destacamos Teorias da Argumentação Jurídica e Estado Democrático de Direito (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017) e Rompimento democrático no Brasil (Belo Horizonte: D’Plácido, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Constituição Brasileira preconiza que tipo de Estado e de democracia?
José Luiz Quadros de Magalhães – Essa foi uma discussão muito forte em 1988. Logo depois da promulgação da Constituição, muitos livros foram publicados e se foi construindo uma teoria de que nossa Constituição seria um Estado Democrático de Direito. Essa classificação, em geral, eu não adotei. Trabalho com três conceitos básicos e uma tipologia do Estado, ou, como alguns falam, paradigmas de Estado.

Segundo essa tipologia, teríamos o Estado Liberal. No Brasil as Constituições de 1824 e 1891 são constituições liberais que são marcadas pela proteção e declaração de direitos individuais; um abstencionismo estatal e a inexistência de direitos sociais, direitos trabalhistas, à saúde e educação pública etc. Assim, toma-se como uma regra básica econômica de não intervenção do Estado na economia, não existindo capítulos na ordem econômica que são marcantes nas constituições sociais e ausentes nas constituições liberais.

Além disso, uma classificação que normalmente não se adota – e acho isso problemático, porque na ciência política já podemos trabalhar isso com maior clareza – são as constituições socialistas. É a constituição da União Soviética, os estados socialistas pós-segunda guerra mundial, a constituição cubana, que vão marcar um outro paradigma que não se confunde com o estado social e a social-democracia. Teríamos, então, o estado liberal, o estado social e democrático de direito, que marca um capitalismo social ou a ideia de social-democracia dentro da Ciência Política. E, ainda, um estado socialista, que marca por uma ênfase nos direitos sociais e econômicos, uma limitação transitória aos direitos individuais, um outro tratamento dado ao direito de propriedade. Ou seja, um estado que seria transitório para se alcançar uma sociedade comunista.

Estado Social Democrático de Direito

A Constituição brasileira, dentro dessa perspectiva, é uma constituição que estabelece um Estado Social e Democrático de Direito. Embora a referência expresse em formas de funcionamento da nossa democracia representativa, a nossa Constituição não elimina nenhuma forma de democracia além da democracia representativa. Nossa Constituição respeita e incentiva outras formas que podem aperfeiçoar a democracia representativa, como a democracia participativa, a democracia deliberativa, a democracia semidireta, formas de democracia direta, democracias plebiscitárias e outras formas que podemos encontrar pelo mundo afora. Inclusive, experiências muito interessantes que retomam experiências do passado, como, por exemplo, o sorteio e outras formas democráticas, como um livro muito interessante que trata desse tema, do Yves Sintomer , que vai trazer o sorteio e outras experiências de formas democráticas hoje reexperimentadas na contemporaneidade nesse momento de crise da democracia representativa.

IHU On-Line – Qual a relação entre democracia e constituição?
José Luiz Quadros de Magalhães – Isso é fundamental para compreensão da teoria da constituição moderna, dentro da lógica da democracia representativa. É importante que se diga que essa teoria é construída para a democracia representativa. Quando a gente fala em outras formas – inclusive a que não mencionei anteriormente, a democracia consensual, há experiências fascinantes que acontecem hoje na Bolívia e no Equador – essa teoria já não se aplica. Mas como ainda temos na esmagadora maioria dos estados experiências que se limitam em crise da democracia representativa, essa relação entre democracia e constituição é muito importante. Por isso é, também, importante resgatar a história.

A Constituição, o constitucionalismo, não nasceu democrático. Ele nasceu liberal e o liberalismo protege as decisões individuais. Logo, é obviamente incompatível com a lógica de uma democracia majoritária, onde prevalece a vontade do coletivo majoritário sobre a vontade do coletivo minoritário e, logo, sobre a vontade do indivíduo. As constituições liberais representam, e por isso é importante a gente partir do pacto do qual surge o Estado Moderno, que é o pacto entre o rei, a nobreza e a burguesia contra a insurreição dos servos. Com o surgimento do Estado Moderno, o absolutismo, esses servos se transformam em súditos e esse pacto entre nobreza, burguesia e rei é justamente um pacto de proteção da propriedade, os burgos, e a propriedade nos campos, que são dos nobres.

Com a formação do constitucionalismo liberal esse pacto se rompe ou então é reformulado em muitos estados, onde os burgueses, agora com o poder econômico, visam o poder político. Ou afastam o rei ou negociam com o rei e com a nobreza. Muitas monarquias parlamentares já foram monarquias constitucionais, inclusive, ainda existem na Europa dentro desse contexto. Esse constitucionalismo burguês nasce para trazer segurança, previsibilidade, estabilidade. A finalidade da Constituição é dar segurança, nunca foi dar democracia. E, no início, as constituições liberais e o estado constitucional rejeitam a democracia majoritária justamente por isso. Ou seja, o objetivo do constitucionalismo liberal é a garantia da liberdade individual e a democracia majoritária significa preponderância da vontade da maioria sobre a vontade do coletivo minoritário e, logo, sobre a vontade do indivíduo.

Conquista de direitos democráticos

Num segundo momento, quando então por causa dos movimentos sociais, do movimento operário, da formação dos sindicatos na época da Revolução Industrial no século XIX, ocorrem as insurreições, greves e movimentações sociais levam à conquista de direitos democráticos. O voto que era censitário passa agora a ser um voto igualitário masculino e, mais adiante, principalmente após a I Guerra Mundial, um voto com sufrágio universal em alguns países. E aí é que surge o que podemos chamar de núcleo da teoria da constituição moderna dentro de uma lógica da democracia constitucional, onde a Constituição recebe a lógica da democracia, prevê e protege direitos políticos, como o direito a voto.

Mas é nesse momento também que estabelece algo que é muito importante para a lógica da democracia e principalmente para o momento em que a gente vive no Brasil, onde sofremos um golpe de estado, o estado de exceção, perseguições e mortes violentas, que é justamente a ideia de que a Constituição deve garantir um mínimo de direitos fundamentais. É como um núcleo duro que é inalcançável, que não pode ser modificado por nenhuma maioria. Esse núcleo duro inicialmente são os direitos individuais e, com as constituições sociais, esse núcleo duro pode e deve ser entendido como todos os direitos fundamentais, os direitos individuais, sociais, políticos e econômicos. O que significa que nenhuma maioria pode atingir e retroceder o que diz respeito à proteção desses direitos. Acrescenta-se aí que, no caso brasileiro, a nossa Constituição diz que a cláusula pétrea, o artigo 60, parágrafo IV, a democracia, a separação de poderes, o federalismo e os direitos individuais e suas garantias.

Onde está escrito, obviamente, direitos individuais e suas garantias, entenda-se direitos individuais e as garantias socioeconômicas de efetividade dos direitos individuais, uma vez que não há liberdade individual sem dignidade. E não há dignidade sem direitos sociais e econômicos. Portanto, nossa Constituição estabelece como cláusula pétrea os direitos individuais, sociais, políticos e econômicos. Logo, acrescentamos, então, que reforma previdenciária, trabalhista e todo esse desmonte dos direitos sociais que acontece no Brasil e em outros Estados é absolutamente inconstitucional.

IHU On-Line – A Constituição é determinante para garantir o respeito aos direitos sociais e humanos?
José Luiz Quadros de Magalhães – Determinante para garantir o respeito dos direitos sociais e humanos é uma sociedade organizada, movimentos sociais organizados, mobilizados, na luta por esses direitos. A nossa Constituição foi afastada depois do golpe de 2016, as emendas feitas à Constituição, especialmente da reforma trabalhista e a proposta da reforma previdenciária, são claramente inconstitucionais, como já comentei. Algo grave vem acontecendo, que é o distanciamento de uma parcela importante do Judiciário, dos juízes, da lei e da Constituição, principalmente. Outro dia, ouvi de um juiz trabalhista, no início de uma audiência, o aviso de que ele não fazia controle de constitucionalidade, que aplicava integralmente a reforma trabalhista e que condenava o autor em custas numa clara ameaça. Isso mostra um pequeno exemplo do que a gente tem visto espalhado por aí. Juízes despreparados, arrogantes, que se acham donos do Direito. Acho que esses afastamentos têm várias causas que podemos buscar, mas, em primeiro lugar, uma leitura equivocada do que seriam algumas teorias que foram importadas da Europa e dos Estados Unidos de construção da norma aplicável de caso concreto, dando essa força para o juiz.

Essa leitura equivocada junto com a ruptura da ordem constitucional com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e, com isso uma desmoralização do Direito, promove um afastamento da Constituição e juízes que são conservadores tanto pelo processo de seleção, como também pelos salários absurdos que recebem e fazem com que essas pessoas originárias de classe média se deslumbrem e vivam com outras referências de mundo, frequentem outros lugares e, portanto, completamente despreparadas para aplicar a lei ou construir a norma justa aplicável ao caso concreto levando em consideração a realidade e as nuances do caso.

Efetivamente, a Constituição, enquanto texto, não vai garantir coisa nenhuma. A Constituição vai ser garantida dentro de uma construção de uma cultura constitucional, de respeito à Constituição, de luta por direitos e necessária e urgente reforma – não sei se poderia ser essa palavra – de nosso Poder Judiciário. Além de outras reformas que se fazem necessárias, como a extinção da polícia militar, um sistema de segurança inteligente como a formação e educação adequada de nossas forças armadas, como a reforma da mídia, criação de uma mídia democrática. Muitas são as pautas para que a gente possa ter efetivamente uma sociedade livre e um estado constitucional de direito.

IHU On-Line – Que mecanismos processuais permitem a concretização dos direitos fundamentais?
José Luiz Quadros de Magalhães – Não sei. Acho que depende de qual juiz, de qual tribunal... Nós vimos aí a condenação em primeira e segunda instância e a negação do habeas corpus do presidente Lula, que mostram que mecanismos processuais, o texto legal ou processual, não vai garantir nada. O que vai garantir, nesse momento, a reconquista ou reconstrução de um estado de direito constitucional e principalmente democrático vai ser a mobilização social, a luta pela construção de um outro estado de direito, uma outra constituição, uma outra sociedade urgente e necessária.

IHU On-Line – Em que áreas a Constituição conseguiu garantir direitos a grupos historicamente vitimizados?
José Luiz Quadros de Magalhães – Vimos, recentemente, algumas decisões interessantes, como a decisão que reconhece a constitucionalidade do decreto sobre quilombolas e outras decisões que envolvem minorias. Essa corte constitucional nossa, esse Supremo Tribunal Federal - STF, tem, às vezes, uns posicionamentos que são mais “avançados” com relação à perspectiva de alguns direitos de diversidade, mas ainda numa perspectiva individual. Mesmo direitos coletivos de diversidade, como direitos dos povos quilombolas, dos povos indígenas, são muitas vezes postos de uma maneira equivocada e de forma individual.

No passado, podemos ter visto que, sem dúvida, a Constituição de 88, dentro de um estado democrático e constitucional que estava sendo construído, conseguiu garantir mais direitos individuais. Mas isso, durante um período, veio justamente do Poder Executivo, conquista de direitos sociais, conquistas também importantes que foram reconhecidas para alguma parte do Poder Judiciário. Entretanto, isso sofre um retrocesso brutal após o golpe de 2016, com a participação de parcelas do Poder Judiciário, principalmente com a participação determinante do STF, que, talvez para não entrar mal para a história, começa a trazer algumas decisões que são importantes com relação ao direito à diversidade, tanto individual como de interesse coletivo, como o direito à adversidade como direito individual.

Mas isso apaga a triste memória de um STF omisso com relação ao golpe e de parte do Judiciário. Claro, não podemos generalizar, mas talvez seja uma pequena parte que esteja calada, mas uma pequena parte barulhenta do Judiciário e do Ministério Público, que atuou na continuidade e aprofundamento desse Golpe de Estado e a destituição de nosso país. Temos aí a entrega do petróleo do pré-sal para transnacionais e a distribuição da Petrobras, a destruição da economia interna, a destruição dos direitos sociais e a gente vê pouca insistência institucional.

Felizmente, há uma crescente grande resistência à defesa pessoal do que resta do Brasil. Vamos reconstruir isso e vamos construir um outro estado democrático, radicalmente democrático e constitucional de direito no nosso país.

IHU On-Line – Cada vez mais se intensifica a percepção acerca da fragilidade da democracia brasileira. Uma constituição, e em particular a de 1988, é suficiente para a consolidação democrática?
José Luiz Quadros de Magalhães – Não. Nenhuma constituição é suficiente para a consolidação democrática. Já que temos essa pergunta, que é recorrente, com relação aos direitos sociais e com relação à democracia, é importante lembrar que constituição sem constitucionalismo não existe. Não basta um texto constitucional. É necessário que se tenha uma cultura constitucional, é necessário que exista uma sociedade que se mobilize, que se preocupe, que participe, que se organize e isso vamos construindo no nosso país.

Nós temos movimentos sociais importantíssimos, temos uma mobilização crescente, mas, ao mesmo tempo, a tarefa é difícil, porque temos, talvez, uma das piores mídias do mundo, que é a mídia brasileira, Rede Globo, Band, Record, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, revistas Veja e IstoÉ. É uma grande mídia que mente, que encobre, distorce descaradamente, utilizando mecanismos sofisticados de manipulação. E se somam a isso outros ingredientes, como, por exemplo, o fundamentalismo religioso, que provoca também uma alienação. É uma luta complexa, difícil. Para que as instituições funcionem, precisamos de pessoas que vivam uma cultura constitucional, que vivam uma cultura democrática. Porém, ainda é muito forte no nosso país a presença, nessas instituições, de pessoas que têm essa perspectiva colonial, uma mente colonizada, que são antinacionais, machistas, que são homofóbicos, que são racistas, que não entendem o processo de colonização, que admiram o exterior, que são antinacionais. Enfim, com isso tudo não há constituição que resista dentro de uma elite que tem se mostrado oca.

IHU On-Line – No conjunto de países da América Latina, onde a Constituição trata com dignidade e justiça as populações indígenas?
José Luiz Quadros de Magalhães – Diria que a nossa Constituição também trata, mas temos hoje constituições importantes como a do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009 que trazem o estado plurinacional e que respeitam a diversidade. E tanto a diversidade como direito coletivo como também vêm se mostrando importantes no respeito ao direito da diversidade como direito individual, lembrando que hoje os dois parlamentos com maiores participações de mulheres na América Latina são, em primeiro lugar, a Bolívia e, depois, o de Cuba, recém-eleito.

As constituições talvez mais avançadas junto com o constitucionalismo com movimentos sociais que têm sido capazes de resistir e implementar esse constitucionalismo plurinacional são as constituições da Bolívia e do Equador. Mas estão sendo atacadas e, hoje, o ataque ao constitucionalismo plurinacional no Equador é muito sério, grave, e estamos torcendo e lutando junto com o povo equatoriano na resistência e na defesa dessa constituição plurinacional que foi uma conquista importantíssima.

IHU On-Line – O que o senhor entende por o novo constitucionalismo democrático da América Latina? E quais são os seus pontos de ruptura com o constitucionalismo moderno europeu?
José Luiz Quadros de Magalhães – Um novo constitucionalismo democrático na América Latina dialoga diretamente com o pensamento decolonial. Nós só vamos compreender o novo constitucionalismo democrático latino-americano se dialogarmos com esse pensamento. E o que o pensamento decolonial nos traz de crítica em relação à modernidade? Um primeiro aspecto é entender o novo constitucionalismo como um constitucionalismo não moderno, ou de potencial de ruptura com a modernidade. O constitucionalismo moderno é uniformizador, é reativo, reacionário, reage às mudanças e estabelece limites para as mudanças. O constitucionalismo democrático vai se fundar em outros princípios, são outras perspectivas. É uma constituição a favor da democracia, não aquela velha e importante tensão, que mencionei antes, entre constituição e democracia, mas se entendermos o novo constitucionalismo como a constituição processual, uma constituição que atua para a democracia, para as transformações efetivamente democráticas e não uma democracia que é apenas majoritária, mas a busca por uma democracia consensual. E não entendendo consenso como a vitória do melhor argumento, não tem a ver com isso, mas como construção de consensos provisórios onde todos vão abrir mão de alguma coisa para que todos possam ganhar alguma coisa. É uma outra cultura, outra perspectiva, é uma outra postura mental em relação ao diálogo, à democracia.

Além disso, o novo constitucionalismo democrático latino-americano vai trazer uma outra perspectiva não antropocêntrica do Direito, uma perspectiva que tem um diálogo complexo com teorias ecocêntricas, biocêntricas, animalocêntricas, como deep ecology, tudo isso. Ou seja, a postura do constitucionalismo latino-americano tem sido mais ecocêntrica. Mas, compreender o conceito desse sistema é um diálogo aberto e fundamental com outras perspectivas e não apenas com as perspectivas antropocêntricas. Além disso, é uma outra concepção de história não linear, mas a ideia de complementaridade é fundamental para entender o novo constitucionalismo.

Resistências preconceituosas

No que diz respeito ao novo constitucionalismo, infelizmente, a maior parte dos constitucionalistas se posicionam com uma postura bastante prepotente e preconceituosa. É como aquilo: ‘não li, não gostei e tenho raiva de quem leu’. Tem alguns que leram, mas que ainda não conseguiram enxergar a potencialidade de ruptura e, então, enxergam mais do mesmo. E existe mais do mesmo no novo constitucionalismo, está ali separação de poderes, questão de direitos, tudo aquilo que o constitucionalismo europeu moderno tem. Mas o importante é enxergar aqueles elementos presentes que são de ruptura e são fundamentais para a gente construir uma nova teoria da constituição, uma outra teoria do Estado ou talvez até uma outra teoria sem estado.

E, aí, é importante lembrar nesse momento que temos uma rede importante com grandes pensadores, professores, filósofos, constitucionalistas do Brasil inteiro e de toda América Latina que vêm pensando no novo constitucionalismo e construindo teorias com várias publicações em todo o Brasil e em toda América Latina que integram a rede para um constitucionalismo democrático latino-americano.

IHU On-Line – Ao analisar as constituições da Bolívia e do Equador, o senhor aponta a potencialidade desses textos. Quais são?
José Luiz Quadros de Magalhães – Em parte já destaquei isso, mas é uma potencialidade de ruptura, de construir uma outra sociedade, construir um outro direito, uma ruptura com 500 anos de Modernidade. Modernidade que marca a hegemonia antropocêntrica de um homem branco e europeu e de um direito que se esgotou diante dos desafios que se apresentam atualmente. O novo constitucionalismo se apresenta como uma das alternativas democráticas importantíssimas para a construção de uma nova teoria. Porque esse mundo que está aí, essa teoria que está aí, o direito que está aí, não se sustentam. Diria, como muitos outros pensadores, que não se sustentam nos próximos dez anos.

Um outro mundo está aí se revelando e o que ele vai ser depende de nós, de nossa participação. Pode ser bem pior se continuarmos com essa matriz individualista, egoísta, competitiva que vem do capitalismo que se esgota, mas esse pós-capitalismo pode ser muito pior, com uma massa de pessoas que não necessitam nem ser exploradas, não precisa nem da mais valia com a tecnologia e inteligência artificial. Por outro lado, toda a diversidade, toda a conquista de direitos permite a gente imaginar e lutar pela construção de uma outra sociedade onde a diversidade não seja fragmentada, mas onde todo esse colorido dessa imensa diversidade que se revela no final do século XX e nesse século XXI possam nos permitir construir um magnífico mosaico. E, para isso, precisamos lutar, perder o medo de se confrontar com o absolutamente novo e com o momento de ruptura, que é um momento de ruptura com a Modernidade. Essa Modernidade não se sustenta mais, o capitalismo não se sustenta mais, assim como esse direito moderno.■

Leia mais

- O mal-estar e o esgotamento de propostas. Entrevista especial com José Luiz Quadros, publicada nas Notícias do Dia de 13-4-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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