Edição 518 | 27 Março 2018

Água: de bem comum a produto mercantilizado

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João Vitor Santos

Luiz Fernando Scheibe denuncia o avanço do projeto de privatização de reservas hídricas no país, entre elas o Aquífero Guarani

João Vitor Santos

Quem visita Roma não poupa elogios às fontes de água cristalina, onde bastar unir as mãos em concha e beber o quanto quiser gratuitamente. No Brasil, ainda há cachoeiras e riachos límpidos onde se pode fazer o mesmo. Agora, imagine se a liberação desse líquido fosse associada a uma máquina de moedas. A cena choca, mas é caricatura que serve para chamar atenção para a realidade em muitos lugares no mundo. Em terras brasileiras, as reservas hídricas estão ameaçadas não só pelo desperdício e pela poluição, mas por interesses privados. “Não só no caso da água engarrafada, mas em inúmeros outros aspectos já vivemos um estado de privatização da água. Quando, numa cidade como São Paulo, um condomínio ou uma indústria perfura um poço profundo para retirar para seu uso privado do subsolo uma água que faz parte de uma reserva que é pública”, destaca o professor Luiz Fernando Scheibe, que ainda lembra que, nesses casos, só mata a sede quem pode pagar.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Scheibe denuncia que a situação pode piorar. “As reuniões do presidente [Michel] Temer com os dirigentes de empresas diretamente interessadas no bilionário negócio das águas engarrafadas colocaram na agenda até da grande imprensa a possibilidade de uma privatização das grandes fontes de água do Brasil, e em especial do próprio Aquífero Guarani”, pontua. Isso, segundo ele, pode ser feito através da imposição de mudanças na lei que regulamenta exploração de reservas hídricas. Por isso, o professor destaca a importância de discutir o tema, mas de forma independente. “A estrutura, a organização e os patrocinadores do 8º Fórum Mundial da Água, assim como dos precedentes, estão totalmente dominados pelos maiores interessados na transformação total da água em commodity”, dispara.

Luiz Fernando Scheibe é geólogo, professor emérito do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e voluntário junto aos programas de Pós-Graduação em Geografia e Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. Em Santa Catarina, ainda coordena a Rede Guarani/Serra Geral, projeto que congrega cientistas, pesquisadores, educadores ambientais, universidades, fundações, agências governamentais nacionais e entidades internacionais, pela defesa das águas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A privatização da água está na agenda política nacional? No que consiste e quais os riscos dessa privatização?
Luiz Fernando Scheibe – As reuniões do presidente [Michel] Temer com os dirigentes de empresas diretamente interessadas no bilionário negócio das águas engarrafadas – como Nestlé e Coca-Cola , que já detêm uma fração majoritária do comércio dessas águas no Brasil e no mundo – colocaram na agenda até da grande imprensa a possibilidade de uma privatização das grandes fontes de água do Brasil, e em especial do próprio Aquífero Guarani .

A legislação mineral atual outorga aos interessados a possibilidade de lavrar fontes de águas minerais, dentro de normas e de áreas definidas nunca maiores do que 50 hectares (equivalente a 0,5 km2) para cada concessão. Tendo em vista que o Aquífero Guarani ocupa na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai uma área da ordem de 1,1 milhão de km2, dos quais cerca de 70% só no Brasil, certamente não é a este tipo de privatização, a concessão legal e exclusiva do direito de lavra conforme a legislação atual a duas ou mais empresas de toda a área do Aquífero Guarani, que devemos temer.

O que se tem visto neste sentido é outro tipo de apropriação, ou seja, a compra das principais autorizações já existentes, com utilização de todo o aparato publicitário/comercial dessas empresas para o aumento desmesurado da produção, comprometendo até, como no caso da conhecida e apreciada fonte da água São Lourenço em Minas Gerais, os demais usos turísticos e medicinais dessas fontes pelo município. O rótulo e apresentação do produto são os mesmos, e é preciso ler com muita atenção para perceber, em letras miúdas, a inscrição www.nestle.com, assim como em inúmeros outros casos de águas engarrafadas em nosso país.

A apropriação da água para atender a interesses privados e em detrimento de seu uso comum, pela maioria da população, no entanto, já acontece no nosso país. E isso ocorre seja por grandes empresas engarrafadoras de água, indústrias de cerveja e refrigerantes, outras indústrias, ou pela mineração e especialmente para fins agrícolas, com ou sem o uso de irrigação.

Alterações para os “mercados de água”

Visando aumentar ainda mais as possibilidades de privatização da água no Brasil, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) – também chamado de “o dono da Coca-Cola” no Brasil – apresentou em interesse próprio uma proposta para alterar a Política Nacional de Recursos Hídricos de modo que seja possível criar os "mercados de água". O projeto de lei (PLS) 495/2017 está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania - CCJ aguardando emendas e designação de relator. Segundo o site do Senado Federal, que promove atualmente uma consulta pública sobre a proposição, “os mercados de água são um instrumento de gestão de crises hídricas e funcionam mediante a cessão dos direitos de uso de recursos entre usuários da mesma bacia ou sub-bacia hidrográfica, por tempo determinado.” Ou seja, reconhece-se explicitamente a possibilidade de comercializar os direitos de outorga da água, especialmente em “situações de escassez hídrica”.

Segundo o senador, a ideia se inspira em experiências internacionais de sucesso com mercados de água, observadas nos Estados Unidos, Austrália, Chile e Espanha, países que também possuem forte vocação agropecuária – e altíssimo domínio das políticas neoliberais. É preciso nos manifestarmos com veemência contra esse projeto.

IHU On-Line – A construção de redes e estações de tratamento de esgoto são questões nevrálgicas em muitas cidades brasileiras. Em algumas, a tarefa é concedida à iniciativa privada através de parcerias com o poder público. Como o senhor avalia essas parcerias?
Luiz Fernando Scheibe – Ocorre também uma privatização quando se concede a empresas privadas, mesmo que através de parcerias público-privadas, os serviços municipais de abastecimento e esgotos. Aquilo que deveria ser um serviço público, controlado pelo poder público e, portanto, voltado para o bem-estar de toda a população, passa a ser uma mercadoria cuja comercialização deve, em primeiro lugar, atender aos interesses dos anônimos (ou nem sempre) acionistas ou proprietários dessas empresas.

Apontada como uma forma de amealhar recursos muitas vezes escassos para viabilizar obras de saneamento, esta estratégia tem sido denunciada por significar aumento desmesurado de tarifas, exclusão das parcelas mais pobres ou situadas fora do centro urbano e descumprimento das promessas de investimento, especialmente quanto aos sistemas de esgotos. Há, até mesmo, sucateamento dos próprios sistemas de abastecimento de águas.

IHU On-Line – No que a experiência da guerra da água na Bolívia, a guerra de Cochabamba , pode inspirar a resistência no caso brasileiro?
Luiz Fernando Scheibe – Embora o exemplo mais conhecido e divulgado, até através de documentários e filmes de ficção, seja o da “Guerra da Água de Cochabamba”, na Bolívia, a reversão contenciosa de concessões já aconteceu em Paris, Buenos Aires e inúmeras outras cidades. É um fenômeno que tem sido descrito como de remunicipalização dos serviços.

IHU On-Line – Em que medida o projeto de privatização de água no Brasil se associa com outros na mesma linha?
Luiz Fernando Scheibe – Esses projetos de privatização não se limitam às concessões municipais, mas fazem parte de toda uma inexplicável(?) estratégia do governo golpista que assumiu em 2016, já instrumentalizado com o programa neoliberal derrotado nas urnas em 2013, de entregar ao capital internacional o controle total de todos os recursos da nação. Isso envolve não apenas a água, mas a energia hidrelétrica, com a venda da Eletrobras e de centrais hidrelétricas em pleno funcionamento e já quitadas. E, ainda, empresas de alta tecnologia e plenamente rentáveis, como a Embraer e, no caso do petróleo, a alienação a preço vil não só de nossos melhores campos do fabuloso pré-sal – o campo de Carcará, por exemplo, foi vendido por um trigésimo de seu valor para a empresa estatal norueguesa Statoil, que mantém com seus lucros o “Oil Fund”, o fundo de previdência que já conta com recursos para atender pelos próximos cem anos a todos os cidadãos na Noruega – e ainda por cima, o maior gasoduto do país, responsável pelo abastecimento do Rio de Janeiro e de São Paulo, alienado para o fundo rentista canadense Brookfield : doravante, para transportar cada metro cúbico do gás de nossos poços para nossas indústrias e consumidores domésticos, através de um gasoduto que foi implantado com recursos da Petrobras, pagaremos “pedágio” para um fundo rentista estrangeiro – que por sinal já foi constituído para lucrar com o financiamento de serviços públicos no Brasil.

Mas acredito que este não seja o principal problema: é simplesmente que eles poderão a qualquer momento “fechar as torneiras” do gasoduto, ou, mais provavelmente, visando uma melhor remuneração de seus acionistas, investir cada vez menos nos serviços de manutenção e prevenção de riscos – vide o que aparentemente aconteceu no caso de Mariana, em Minas Gerais. Isso tudo até o momento em que o gasoduto se torne inoperante ou tenha que ser abandonado. Bem, isso talvez não seja um problema insolúvel: o Brookfield Asset Management provavelmente financiará a construção de um gasoduto mais moderno...

IHU On-Line – Quais os riscos de se transformar a água em commodity? De certa forma, já não vivemos um certo estado de privatização da água, onde água engarrafada faz parte do cotidiano?
Luiz Fernando Scheibe – Não só no caso da água engarrafada, mas em inúmeros outros aspectos já vivemos um estado de privatização da água. Quando, numa cidade como São Paulo (ou Chapecó, entre outras), um condomínio ou uma indústria perfura um poço profundo para retirar para seu uso privado do subsolo uma água que faz parte de uma reserva que é pública. Ou, ainda, como no recente caso da “Guerra pela água em Correntina” , Bahia, em que mais de 500 habitantes da cidade invadiram e destruíram os equipamentos de irrigação de uma fazenda, que estaria, com seus 32 pivôs centrais de irrigação rebaixando o nível da água do rio que servia a todos os demais habitantes do município. O apoio popular a esta iniciativa foi manifestado por uma passeata com a participação de oit0 a doze mil pessoas, uma semana depois da ação – sendo que a cidade tem um total de 33 mil habitantes.

IHU On-Line – Como abrir linhas de resistência para impedir que a água, essencialmente no caso brasileiro, deixe de ser um bem público e universal?
Luiz Fernando Scheibe – Embora o assédio a esse recurso essencial à vida seja uma questão planetária, que tem relação com um estilo de vida integralmente voltado ao aumento do consumo em todas as suas formas, no caso brasileiro, essa questão se amplifica no momento em que vivemos um verdadeiro período de exceção da democracia, com um governo que assumiu ilegitimamente o poder e que está firmemente determinado, com o apoio do Congresso e a conivência do Poder Judiciário, a deter toda a evolução positiva das conquistas populares dos últimos quinze anos. Muitas das garantias constitucionais foram modificadas desde o golpe de 2016, e mesmo o sistema de outorga de lavra que restringe a área concedida a cada empresa para a lavra da água mineral, por exemplo, pode aparentemente ser modificado a qualquer momento, para atender os interesses do grande capital – ou da Nestlé, ou da Coca-Cola, ou simplesmente da “Casa Grande”, no dizer de Mino Carta, da revista Carta Capital .

Assim, não podemos pensar sequer que estamos garantidos contra uma eventual privatização de recursos como aqueles representados, até miticamente, pelo Aquífero Guarani. A resistência para impedir que a água, essencialmente no caso brasileiro, deixe de ser um bem público e universal passa, portanto, não só por ações de conscientização sobre a importância deste postulado, mas também por uma crítica à crise societária que deriva da nossa sociedade de consumo, e por uma concertação nacional que devolva o poder a quem de direito, ou seja, a maioria do povo brasileiro.

IHU On-Line – Como esse debate sobre privatização da água deveria aparecer no 8º Fórum Mundial da Água?
Luiz Fernando Scheibe – A estrutura, a organização e os patrocinadores do 8º Fórum Mundial da Água, assim como dos precedentes, estão totalmente dominados pelos maiores interessados na transformação total da água em commodity, que possa colocá-la inteiramente na mão das famosas mãos do “mercado”, ao lado de outras atividades essenciais, como a energia e a própria educação pública. Por isso mesmo, foi organizado o Fórum Alternativo Mundial da Água , uma “iniciativa que questiona a legitimidade do Fórum Mundial da Água como espaço político para promoção da discussão sobre os problemas relacionados ao tema em escala global, envolvendo governos e sociedade civil”.

Segundo os organizadores do Fórum Alternativo, é necessário dizer “não ao Fórum Mundial da Água, apontando a falta de independência, representatividade e legitimidade do conselho organizador, por estar comprometido com empresas que têm como objetivo a mercantilização da água. Isso significa um conflito intransponível entre interesses econômicos e o direito fundamental e inalienável à água, bem comum da humanidade e de todos os seres vivos”.■

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