Edição 517 | 18 Dezembro 2017

Mais do que uma biografia conturbada, o escritor da literatura de urgência

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João Vitor Santos

Lilia Schwarcz defende que Lima Barreto seja reconhecido também por sua obra, e não somente pela sua história de vida

Quem foi Lima Barreto? Neste ano, o autor foi muito celebrado. Ainda assim, encontraremos respostas à pergunta reduzindo-o a “o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma”, ou, ainda pior, ancorando sua obra à trajetória marcada pelo alcoolismo e passagens pelo manicômio. Para a antropóloga Lilia Schwarcz, isso não ocorre apenas com Lima. É uma espécie de biografismo que acaba sufocando o que de fato importa: as produções do escritor. “Literatura não é reflexo do contexto, não é reflexo da biografia. Literatura faz muito mais, produz”, destaca. “Lima Barreto merece mais, merece os seus projetos, merece as suas próprias utopias, merece as suas próprias previsões”, completa. Nesse caso, compreende que o biografismo tem relação com o fato de ele ser negro. “As pessoas negras não podem ter um projeto literário, só têm um projeto de sobrevivência”, dispara, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Esse é um dos fatores que fazem Lilia chamar atenção para a escrita de Lima Barreto. “É um autor que nos interpela como negro e com os projetos que ele trazia para que a população brasileira não esquecesse jamais o fato de que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão”, analisa. Mas também não é só isso. Para ela, a crítica social que o autor faz é atualíssima. Isso no aspecto político geral: “o Lima Barreto que entendo e que ouço fala de um Brasil que vai devendo um projeto democrático, vai nos devendo um projeto cidadão, vai nos devendo uma verdadeira República”. E também está nas questões étnico-raciais: “as populações negras do Brasil sofrem da urgência, não sabem quando vão ser paradas numa blitz, quando vão ser paradas pela polícia, enfim, isso Lima Barreto tem. É uma literatura de urgência”, sintetiza.

Lilia Moritz Schwarcz possui graduação em História pela Universidade de São Paulo - USP, mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutorado em Antropologia Social pela USP. É professora titular no Departamento de Antropologia da USP e na Global Scholar na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Agora em 2017, lançou Lima Barreto. Triste visionário (São Paulo: Companhia das Letras, 2017), mesmo ano em que a obra do autor pautou as discussões da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip. Entre as demais publicações de Lilia, ainda destacamos a edição comemorativa de Raízes do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), Brasil: uma Biografia (São Paulo: Companhia das Letras, 2015) e Retrato em branco e negro (São Paulo: Companhia das Letras: 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância de recuperar o pensamento de Lima Barreto?
Lilia Schwarcz – O Lima sempre foi uma pessoa, como ele se definia, que fazia uma literatura militante e uma literatura de cunho realista. Esses eram os termos dele para definir a sua literatura. Foi um autor muito crítico do seu período, a primeira República, e do pós-abolicionismo e até, por isso mesmo, acabou não tendo a entrada que imaginou que teria, ou o tipo de recepção que, me parece, bem merecia.

No Brasil, essa discussão dos direitos civis tardou um pouco a entrar. Sempre digo que não acho que há uma linha evolutiva dos direitos, ou seja, os direitos vão entrando de formas diferentes nos diferentes países, mas no Brasil a linguagem dos direitos civis tardou. Então, foi só no final dos anos 80 que essa discussão sobre o direito das minorias entrou de fato na nossa agenda. E Lima Barreto é um autor que fala o tempo todo dessa questão, inclusive não só dos negros, mas da questão das mulheres também, de uma forma complexa e que poderíamos discutir, pois ele era contra a violência e também contra os feminismos, que achava que eram manifestações das classes sociais mais altas e mais privilegiadas e que tinham esquecido as mulheres. Mas, mesmo assim, é um autor que trazia esse tipo de tema.

A crítica ao racismo, a crítica à discriminação, a crítica à corrupção da República, a crítica à violência contra as mulheres, enfim, Lima nunca foi tão atual. É um paradoxo, pois sempre foi atual e era atual no seu momento. Ele lia os russos, interpelava a República. Então ele era totalmente atual no seu tempo, mas, por linhas tortas, nunca esteve tão atual como agora.

IHU On-Line – Como você compreende esse personagem? Por que o considera “um triste visionário”?
Lilia Schwarcz – Biografia não é projeto definitivo. É por isso que no livro, na capa, na introdução e na conclusão, eu faço uma homenagem a Francisco de Assis Barbosa , que foi o primeiro biógrafo de Lima Barreto. Ele fez uma biografia sensacional, numa época em que existem muitas biografias, nos anos 1950, e a biografia dele se destaca muito por conta não só da pesquisa, mas também da crítica e do papel que ele teve na vida de Lima Barreto. Digo isso tudo para falar que não acho que exista biografia definitiva, porque cada biógrafo se coloca em relação ao seu biografado. A primeira geração de biógrafos, Francisco de Assis Barbosa e seus discípulos, como Nicolau Sevcenko , Beatriz Resende , Antonio Arnoni , e depois tantos outros, se colocaram e colocaram para Lima as questões de seu tempo.

Eu fiz o mesmo, e perguntei a Lima, sobretudo, acerca da questão racial. Eu trabalho na USP num grupo chamado Núcleo de Estudos Sobre Marcadores Sociais da Diferença - Numas, então perguntei a Lima Barreto sobre questões que são interseccionadas. Por exemplo, raça. Acho que Lima Barreto tem uma questão formidável e importantíssima com a questão racial. Há um capítulo de meu livro que chamo Clara dos Anjos ou as cores do Lima, em que discuto só a palheta de cor que Lima Barreto usa para definir seus personagens. É uma palheta que vai de variações do preto ao marrom, de forma muito impressionante.

Discuti também região, o que significou para Lima Barreto se entender e ser um autor dos subúrbios, em sendo um autor do centro também, o que significou esse trânsito de ideias. E perguntei a Lima Barreto ainda sobre geração, como manipulava a questão dos novos, como tentou criar uma academia dos novos, como ele teve uma relação ambivalente com a Academia [Brasileira de Letras]. Lima tentou entrar três vezes na Academia, não entrou e na última desistiu e cada vez falava mais mal da Academia.

E, ainda, o questionei sobre questões de classe e gênero. Lima Barreto nunca se casou, sempre teve uma relação complexa e complicada com as mulheres, e isso se vincula a uma questão de classe e de formação. Por todos esses elementos, eu o vi como uma pessoa humana muito deslocada, muito ambivalente nesse sentido. Ele estava e não estava nos lugares. Então, quando estava nos subúrbios, ele alegava ser do centro da capital. Quando estava no centro, era dos subúrbios. Quando estava no ambiente literário, ele queria fazer parte dessa república das letras. Quando estava lá, dizia que seria diferente, que seria um autor boêmio, relaxado, um autor engraçado.

Um eterno desconforto

Sobre as mulheres, tem uma passagem que considero importante, na qual Lima está descrevendo que vai visitar um amigo e a mulher dele estava lá. No relato, a mulher passa de prostituta a princesa e depois a vadia de novo. Essa situação desconfortável em todo lugar é uma característica muito forte de Lima Barreto. Ele me emocionou muito ainda por conta dessa sua personalidade. Gostava de se definir como rebelde e era um tipo de rebelde mesmo. Ele desfez o tempo todo do jornalismo, dos políticos, dos militares – e ele trabalhava na Secretaria da Guerra –, dos literatos, enfim, era uma pessoa que estava sempre, vamos dizer, prontamente “reacionando” a tudo que fosse estabelecido.

Um bom exemplo dessa contraditoriedade é a questão feminista. Ele tem várias crônicas em que escreve “não as matem”. É assim que denuncia a prática, que vemos que é tão atual no Brasil, de abusar das mulheres. Impressionante que um autor do início do século XX esteja falando nisso. Mas ele é muito contra os feminismos, que diz ser brincadeira de mulheres de elite; isto é, ele não viu a potencialidade que teria esse movimento. Por outro lado, ele viu outras coisas que vemos hoje, ou seja, as divisões internas do feminismo. Veja como é um autor que fica no fio da navalha, e, como biógrafa, era muito difícil de aprisioná-lo. Se você tenta colocá-lo num canto, ele vai para outro.

“Um triste visionário”

Esse foi um título que pensei muito, porque queria trazer essa ambivalência de que estamos aqui tratando. Não queria nem trazer um título que mostrasse um autor caído, que ele era também – pois morreu aos 41 anos, foi internado duas vezes, ninguém pode esquecer esse lado; e loucura e discriminação são muito próximas, porque não sei se foi vítima de uma loucura pessoal ou uma loucura social motivada pela pressão social que ele recebeu –, mas também não podia dar somente aquela imagem alvissareira. Tinha que mostrar como ele era rebelde e uma pessoa avançada, porque sofreu com isso tudo.

Então, eu pensei muito nessas duas palavras e no jogo, sobretudo na relação que elas estabelecem. Acho que nenhum termo existe só, os termos são sempre relações. Não existe nenhum termo que podemos falar e possa ser compreendido fora de um contexto, por isso que as pessoas fazem tão mal nas redes sociais, porque retiram as palavras do contexto. E todo termo fora de sua relação é risível.

Triste

Quis mostrar que essas duas palavras têm muita relação. Ele é “triste” porque é um autor que sofreu com o contexto da pós-abolição, sofreu com o contexto da República, essa mesma República que prometeu tanta inclusão social, que surgiu alardeando liberdade e igualdade, mas que não entregou nem liberdade. Havia um dito popular na época que dizia: “A liberdade pode ser negra, mas a igualdade é branca”. É esse contexto das teorias raciais com as quais Lima Barreto sofreu muito. Então, ele é triste porque viveu nesse momento.

Entretanto, ele é triste também porque essa é uma palavra que ele usa e tem sua própria ideia da tristeza. No seu romance mais conhecido, Triste fim de Policarpo Quaresma , essa palavra tem todo o tipo de ressonância.

Mas triste tem também outra acepção. Quando dizemos assim: “fulaninho é triste”. O que se está querendo dizer? Que o cara insiste, não desiste, é um sujeito tinhoso, ele não para. A palavra triste já tinha essas duas acepções na minha compreensão, que coloco na introdução do livro.

Visionário

E visionário também é um termo ambivalente, porque visionário pode ser uma pessoa de visão, que enxerga longe, que tem projetos. Mas visionário é a palavra que Floriano Peixoto diz para Policarpo Quaresma. Ele diz, em determinado momento, quando Policarpo quer instituir o tupi-guarani como língua nacional: “Policarpo, tu és um visionário”. É um momento muito forte da trama e quando fala isso não está fazendo um elogio. Pelo contrário, está dizendo que ele é um cara lunático, que não consegue ver o chão.

Veja como visionário também tem essa outra acepção. E colocados juntos, “triste e visionário”, o ruído é grande, tanto que todo mundo me pergunta sobre o título. São palavras que parecem contraditórias, mas não são.

IHU On-Line – Você diz que Lima foi visto durante muito tempo sob a perspectiva da vitimização. Por quê?
Lilia Schwarcz – Cada época precisa criar para si as suas questões. Essa geração toda do Francisco de Assis Barbosa e seus seguidores tem uma importância fundamental, porque redescobriram Lima Barreto. Para se ter ideia, Francisco de Assis Barbosa não só publicou a biografia, como também republicou a obra toda de Lima. Nesse momento, era muito importante mostrar um Lima Barreto que tinha sido silenciado por conta da sua condição social, da sua bebedeira, da sua contestação e, sobretudo, da discriminação.

Lima Barreto foi, sim, uma vítima, não tenho nenhuma dúvida, mas também penso que Lima foi mais do que uma vítima, porque ele teve muitos projetos, muitos sonhos. Até o último dia, quando ele faleceu subitamente – tinha problemas cardíacos, o que também é relacionado à bebida, e morreu muito novo, vítima dessa sociedade que o constrangeu, que o pressionou –, tinha dois artigos com ele. Então no fim da vida dele, que não sabia que era o fim, ele foi muito produtivo. Lima se aposenta em 1921, e quando se aposenta ele escreve um documento muito engraçado, contando os dias, as horas e os minutos que ele perdeu na Secretaria da Guerra. Ele vira um grande jornalista.

Um fim ressignificado

Fui observando que as biografias fazem uma espécie de continuum, como se as duas internações dele significassem o seu fim. Eu penso sempre como o Conselheiro Aires, aquele personagem do Machado de Assis que dava sempre um conselho: “as coisas sempre são visíveis quando já aconteceram”. Não podemos juntar as duas internações e inferir que é daí que Lima Barreto foi decaindo, decaindo e morreu. Não dava para imaginar, porque ele continuava muito produtivo: datou seu último romance, Clara dos Anjos , tinha uma relação com Monteiro Lobato , que seria seu editor, estava escrevendo Cemitério dos vivos , de que só temos dois capítulos, mas, ao que tudo indica, seria uma crítica feroz ao sistema manicomial brasileiro.

Só por esses exemplos que trago, não dá para fazer da vida um continuum previsível. Lima Barreto merece mais, merece os seus projetos, merece as suas próprias utopias, merece as suas próprias previsões. Foi isso que tentei fazer nesse livro. Não é me opor à bibliografia existente, porque me valho muito da bibliografia existente, mas eu dei um outro acento, que é o de tentar ler o Lima Barreto a partir dos projetos que carregava consigo, sem imaginar que sairia dessa vida tão novo.

IHU On-Line – Como o tema do racismo aparece na obra de Lima Barreto?
Lilia Schwarcz – O racismo está por toda parte na obra de Lima Barreto. Todo pesquisador tem suas surpresas, e isso era minha hipótese de trabalho, justamente porque Francisco de Assis Barbosa disse que não trabalharia com a questão racial. Eu trabalho com Lima Barreto há mais de 20 anos, porque sempre dei aula sobre Lima, mas quando, há dez anos, vi que era hora de escrever sobre ele e fiz meu projeto em torno dele era porque eu queria ver se tinha alguma coisa de novo. Então, comecei publicando artigos e meus primeiros textos foram sobre os manicômios — já havia uma pesquisa muito importante sobre os manicômios, que é da Luciana Hidalgo .

Foi quando descobri algo curioso nas duas internações de Lima. Na primeira, em 1914, o oficial que anotou os seus dados disse que ele era branco, porque era funcionário público. Na segunda, em 1919, disse que ele era pardo. Esses elementos foram como faíscas para mim. E Lima Barreto, nos seus diários do hospício, reclama e escreve: “a cor negra é a cor mais marcante. Aqui no hospício, todos são negros”.

Essa não é uma questão acidental em Lima Barreto, é uma questão constitutiva de sua obra. É muito difícil uma outra geração perceber, porque estavam com outras questões em mente. Então eu trouxe essa questão para frente, e é impressionante. Por exemplo, se for ler uma crônica, ou o conto que se chama O moleque , verá que a questão está inteira lá. Se pegar os diários do Lima Barreto, quando ele diz que a inteligência dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori, ou quando ele diz: “fui a uma recepção da embaixada do Chile e todos entraram, e a mim pediram documento. Me aborreci”. Ou quando diz: “tomo o trem de segunda classe. O trem é todo negro”. Ou quando ele faz todos os seus personagens negros, não há personagens que não sejam negros, morenos; ele os tira do segundo plano e dá a eles um barulhento primeiro plano.

As cores

Esse tema surge também quando ele testa as cores e todos os personagens são cuidadosamente descritos. Por exemplo, a descrição mais linda é a da família da Clara dos Anjos, em que ele discute o tom de pele do pai, da mãe, de Clara, o cabelo do pai, o cabelo da mãe. Vemos que isso não é um acidente. Está nas novelas, nas colunas, nas crônicas, nas suas cartas.

Enfim, essa é uma questão que constitui Lima Barreto, o constitui e o desmonta também. Na sua biblioteca, por exemplo, havia todos os livros sobre questões raciais. Com certeza, ele estudava para combater. Eu não tinha noção dessa importância, tinha uma hipótese, e reler a obra toda foi uma experiência muito grande. De tal modo que, quando a Flip me chamou para abrir essa última feira, eu disse que precisava, que queria, que achava importante que nós tivéssemos um ator negro lendo Lima Barreto. Meu medo era de que as pessoas dissessem coisas como “você está inventando, exagerando, está colocando na boca dele o que ele não disse”.

Queria que as pessoas ouvissem a dicção do Lima Barreto. E narrado por um negro e atuante como é o Lázaro Ramos , achei que seria uma pólvora importante, para chacoalhar, para as pessoas verem como a questão do racismo é algo antigo entre nós, como é uma questão incontornável entre nós e uma questão de vida ou morte, como foi para Lima Barreto.

IHU On-Line – O antropólogo Kabengele Munanga disse, recentemente, que no Brasil os negros ainda não têm passado, presente e futuro. Em que medida podemos associar essa afirmação à trajetória de Lima Barreto?
Lilia Schwarcz – É uma declaração muito inteligente do Kabe, e penso que em Lima Barreto se tem um exemplo muito claro disso. Não me parece uma coincidência que, até os anos 1950, portanto durante 30 anos, ele tenha sido tratado exclusivamente vinculado a sua biografia. É o que chamo de biografismo, ou seja, você trata os demais autores, se eles são literatos, a partir da literatura. Como sou das Ciências Sociais e faço História do Pensamento, tento também achar questões comuns entre a biografia e a literatura. Não há como estudar um autor como Lima Barreto e não falar de sua literatura. Entretanto, Lima Barreto foi muito tratado, e destratado, maltratado, a partir de sua biografia. Se, numa palestra, perguntarmos quem conhece Lima Barreto, veremos que as pessoas em geral o conhecem. Mas quando você pergunta às pessoas quantos livros dele já leram, veremos que em geral leram um livro. Veja: leram um livro de um autor que tem uma obra imensa.

E se perguntar o que acham de Lima Barreto, veremos que, em geral, as pessoas contam da biografia dele. Isso é para mim muito revelador. As pessoas negras não podem ter um projeto literário, só têm um projeto de sobrevivência. E a questão da boemia, da conduta de Lima Barreto fica radical, porque é como se a questão da conduta, se soubesse como ele viveu, já fosse suficiente para saber o que foi a literatura. Mas só com isso não se conhece nada, porque literatura não é reflexo do contexto, não é reflexo da biografia. Literatura faz muito mais, produz. E Lima Barreto era justamente um autor negro, que se dizia negro e que fazia uma literatura negra, por conta das situações que já chamei atenção, como os personagens, a questão das cores, os vilões, os heróis.

Sem passado, sem futuro

Lima Barreto foi um autor que durante muito tempo foi deixado sem passado e simplesmente sem futuro. Era um autor que advogava para si e para os negros um projeto de presente, passado e futuro. Ele se colocava como uma testemunha, um artífice da Primeira República, falava muito de seu passado, dizia nos seus diários que ia escrever a história da escravidão no Brasil e que essa história se chamaria Germinal Negro . Também indagava muito sobre questões de futuro, como seria possível incluir essa população, quais seriam os projetos de educação, porque justamente vinha de uma família que acreditou que a verdadeira emancipação se faria pela educação, e não pela letra morta da lei, da Lei Áurea, que foi tão curta e tão conservadora.

É um autor que nos interpela como negro e com os projetos que ele trazia para que a população brasileira não esquecesse jamais o fato de que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e recebeu mais de 50% dos africanos que saíram compulsoriamente de seu continente.

IHU On-Line – Lima Barreto, assim como outros negros que se tornaram personagens da História do Brasil, foi embranquecido nas suas representações. Como compreender esse processo na recomposição de personagens negros e em que medida superamos essa “historiografia do embranquecimento”?
Lilia Schwarcz – Não superamos, e acho que vai ser muito difícil de superar, porque cultura é como uma segunda pele. Ela gruda na gente e naturaliza uma série de elementos que sabemos muito bem que não são naturais, mas que são transformados em “naturais” – e naturais com todas as aspas. A gente naturaliza a diferença, a violência, as relações de poder. O branqueamento sempre foi uma violência, uma violência social, que foi um projeto de Estado.

Basta ver que, no Congresso Universal das Raças, que aconteceu no começo do século XX em Londres, o adido oficial do Brasil, diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda , escreveu um texto chamado Sur les métis au Brésil (Sobre os mestiços no Brasil, em português), em que propõe que o Brasil, em três gerações, seria branco. Isso é um projeto oficial, é um projeto de Estado, porque Sur les métis foi levado oficialmente como uma posição do Brasil. Você não supera esse tipo de posição tão rapidamente, e estamos falando de algo que foi agora, vai fazer um século que o Brasil levou a Londres essa posição oficial. Pode-se, ainda, falar de Pelé , que branqueou, mas se pode falar também de Neymar , que acaba de falar disso. São questões que vão ressoando.

Também tenho discutido muito a questão das imagens. Houve um tempo em que se dizia que era impossível fazer uma foto de negros, porque não havia condições técnicas para captar a cor negra. Essas eram as explicações da Kodak. Também se dizia, na academia, que era impossível desenhar o marrom, porque não havia condições técnicas para fazer tinta marrom. E a minha pergunta é sempre a mesma: é uma questão técnica ou essa é uma questão moral? Na minha opinião, é moral. Não havia interesse, propriamente dito, em fotografar, em retratar essas populações, que foram pegas, no caso da fotografia, em geral sem querer, porque fotografavam, por exemplo, ambientes urbanos e os negros apareciam por toda a parte. Ou quando se faziam as fotografias no campo e os negros apareciam.

Visualidade de populações negras

Esse tipo de ideologia — porque esse tipo de representação visual trata-se de uma ideologia e é uma representação muito violenta — continua atuante. Nós estamos vivendo um momento muito importante de avaliar. É muito difícil falar do presente, mas, na minha compreensão, essas questões estão ficando diferentes. Estou aqui nos Estados Unidos, onde essa questão é muito mais antiga. A visualidade das populações negras, com todas as subjetividades negras e que são nossas também, são muito mais vivíveis.

E eu quero crer que o Brasil também está passando por um momento diferente. Me valho de um exemplo do ator negro que estava sendo perseguido no metrô e que imediatamente foi tomado como ladrão. Qual é a diferença nessa história? É que agora você pode ir para as redes sociais e reclamar dessa situação. Antes era impossível, porque a pressão era tão imensa que, de certa forma, podemos dizer que foram questões como essas que, a sua maneira, mataram Lima Barreto também.

IHU On-Line – Lima Barreto fazia a chamada “literatura militante”. No que consiste esse estilo literário? Podemos identificar algo similar na literatura brasileira hoje?
Lilia Schwarcz – O próprio Lima Barreto que se definia assim. Ele tem uma crônica que se chama Sobre o feio, uma crônica incompleta, mas muito interessante, que encontrei na Biblioteca Nacional, em que ele brinca com feiura e compreensão social. Isso, veja que impressionante, no começo do século XX. Ele fala como é feio porque é negro, no limite. Tem outra crônica que se chama Essa minha letra – ele era uma espécie de copista, mas tinha uma letra péssima — em que usa a letra como metáfora de má inserção social. Veja como ele tem essa compreensão muito aguçada. Mas a literatura militante dele é mais clara no texto que se chama O destino da literatura. Nesse texto Lima diz que a literatura que ele faz é vinculada ao seu momento. Ele era uma anarquista também e chama suas produções de literatura solidária.

É uma literatura que, como ele dizia, tem que falar do rico, tem que falar do pobre, de nossas mazelas. É muito bonito como ele vai delimitando essa ideia de Brasil. Fala que Eça de Queirós é muito bom, mas que o Brasil é um país mais complexo. Está falando, é claro, da escravidão. Era como os russos de que gostava tanto, como [Gustave] Flaubert , que faziam da literatura uma forma de interpelação da realidade, do seu momento.

O sem imaginação, o desacreditado

Na época, ele foi considerado um autor sem imaginação. O próprio Sérgio Buarque de Holanda fez uma resenha muito equivocada, no meu entender, para Clara dos Anjos, em que ele acusa Lima Barreto de não escapar dos seus problemas. E fala da questão racial, da questão da cor, da questão da pobreza, e acusa Lima de não resolver problemas que outros teriam resolvido. Tem sempre essa desculpa com relação às pessoas que levam essas questões para frente, porque é uma forma de atacar aquele que sofre o racismo dizendo que o problema é dele, não é do outro.

Essa categoria de não ter imaginação, veja como foi modificada. Se pensarmos agora numa literatura mais contemporânea, o Milton Hatoum , por exemplo, acaba de publicar o primeiro volume do que será uma espécie de saga que é um pouco um relato que tem muito dele, que é a coisa de Brasília na época da Ditadura Militar. Ainda há Paulo Lins , que fez muito sucesso com Cidade de Deus, para ficar só com os exemplos nacionais. Se pensarmos nos estrangeiros, veja o [Karl Ove] Knausgård , que é um longo relato do dia a dia dele. Foi uma tacanhez imaginar que fazer literatura realista era por falta de opção ou, ainda mais, falta de imaginação.

Todo escritor está o tempo todo ficcionalizando a realidade e a sua própria realidade. Deixo isso muito claro no livro, porque o Lima também é um autor difícil de seguir, pois não se sabe se ele está ficcionalizando ou se está falando dele. Na verdade, essa fronteira é muito tênue. O exemplo que mais uso é o de ter lido os originais do Diário do hospício e do Cemitério dos vivos, documentos que ele escrevia juntos nessa época. Por vezes, em Diário do hospício, o Lima, ao invés de escrever o seu nome, escreve o nome de um personagem. E, por vezes na sua novela, no Cemitério dos vivos, ao invés de escrever o nome do personagem, escreve Lima Barreto. Acho isso num documento em que é possível ver como ele risca Lima Barreto.

Houve pessoas que falaram: “veja como ele estava louco mesmo”. Mas essa é uma perspectiva. A outra é pensar no conjunto da obra do Lima e como ele vivia ficcionalizando a si mesmo. Ele não só escreveu Isaías Caminha , ele era Isaías Caminha, ele assumia essa personalidade, ele era Gonzaga de Sá , ele era Clara dos Anjos. Essa potencialidade do escritor e da literatura que é a transformação, a imaginação. Ou seja, mesmo que o escritor se defina como escritor de ficção realista, todos sabemos e ele sabe que não faz só isso, que está sempre ficcionalizando, porque esse é o espaço da literatura.

IHU On-Line – Apesar do deslocamento histórico, que elementos utilizados por Lima para criticar a República de seu tempo podem ser aplicados atualizados na República de hoje?
Lilia Schwarcz – Eu começo o livro com um exemplo que tenho usado muito, em que Lima Barreto fala muito da corrupção. Ele fala que o Brasil é uma grande comilança, comem os políticos, comem os literatos, comem os juristas... Enfim, diz que o Brasil é uma comilança geral. Esse é muito o Lima Barreto que entendo e que ouço, que fala de um Brasil que vai devendo um projeto democrático, vai nos devendo um projeto cidadão, vai nos devendo uma verdadeira República. E isso ele não fala uma vez, tem um momento lindo em que ele fala “o Brasil não tem povo, só tem público”. Isso é muito importante, e eu vivi isso na pele, fazendo Histórias da Sexualidade , em que as pessoas queriam fazer uma crítica fundamental à exposição antes que ela estivesse aberta. Eu fui às redes, embora não seja muito de redes [sociais], para dizer que todo mundo pode gostar ou não gostar, mas é preciso ir à exposição para poder falar.

Há uma coisa muito fundamental que ele cobra, destacando que a culpa não é só do Estado, é também de cada um de nós, ou seja, cidadania se faz em casa. Quais são as atitudes que nós podemos tomar no dia a dia, no sentido de não nos conformarmos com as injustiças, não nos conformarmos com este país tão desigual e tão racista. Basta ver as reportagens publicadas nesta semana [semana próxima a 20 de novembro, em que são publicadas matérias alusivas ao Dia da Consciência Negra], comprovando como o racismo é estrutural no Brasil. Nós vivemos um racismo endêmico, em que não podemos apenas culpar o passado, não podemos culpar a História. Estamos falando aqui de 130 anos da abolição formal da escravidão, e os índices de discriminação seguem na educação, no acesso aos transportes, no acesso aos bens públicos de uma forma geral. O racismo, que também se inscreve nos índices de saúde, nos índices de natalidade, nos índices de mortalidade, mostram que não podemos só culpar o passado, que estamos reconstruindo esse racismo todo dia, e os resultados estão evidentes por aí. Lima nunca foi tão atual.

IHU On-Line – Podemos afirmar que Lima Barreto é o avesso de Machado de Assis? Por quê?
Lilia Schwarcz – Ninguém é avesso de ninguém. Se a gente fizer esse tipo de palheta, tipo de régua e compasso comparativos, estaremos fazendo menos a um e a outro, porque é fato que Lima Barreto tentou se construir assim, é um dos outros projetos dele. Tentou se construir como um anti-Machado, não tanto na perspectiva literária, mas mais no projeto de vida, de institucionalização. E já falei também como essa é uma questão frágil no Lima, porque ele também tentou entrar na Academia, mas frequentava outros bares, outras rodas literárias...

E a gente esquece, também, que Lima Barreto é de outra geração. Na época em que Lima começa a aparecer, Machado vai morrer. Então, não chegaram a conviver e sequer disputar os espaços numa mesma época. Uma coisa é a contrariedade de Lima a um projeto mais estabelecido, que ele chamava de acomodado, do Machado de Assis, que frequentava as livrarias mais burguesas, os bares mais elegantes, isso é um pouco um Lima Barreto.

Agora, depois acabou se criando uma espécie de animosidade que foi dada pela crítica. É uma espécie de “fla-flu” que não ajuda nenhum dos dois autores. São, na verdade, projetos literários muito distintos. Machado não tinha esse projeto realista e não devemos cobrar que ele tenha. Agora, eu concordo com Sidney Chalhoub e com outros críticos que mostram que Machado de Assis teve uma educação formal mais desestruturada do que a de Lima Barreto. Lima veio de uma família de profissionais liberais, o pai era tipógrafo reconhecido, a mãe uma professora, diretora de escola; Machado não teve nada disso.

Por outro lado, Machado vai fazer esse tipo de literatura com um outro diálogo, a sua perspectiva não é o local brasileiro, mas mesmo assim ele, como funcionário público, sempre deu pareceres contra os proprietários de escravos e, também, como contista, mesmo que os personagens não estejam no primeiro plano, é impressionante a frequência de personagens escravos. Então uma pessoa que escreveu um conto como Pai contra a mãe – que narra a história de um homem que vai ser pai, que está desempregado e não sabe o que fazer, não tem emprego formal e vai ter de atuar como perseguidor de escravos fugidos, e vai justamente atrás de uma escrava grávida, assim como a mulher dele; ou seja, é o conto mais angustiante, mais triste, mais crítico à escravidão, porque mexe com o nascimento – não é um escravocrata como dizem, nada disso.

Assim como Lima Barreto também não é um autor que escapou de sua biografia; são projetos diferentes. O Brasil anda muito com essa mania de bipolaridade, ou somos isso ou aquilo, mas acho que não vale a pena, não compensa, não estimula intelectualmente construirmos outras dicotomias agora no cânone literário.

Uma leitura pela literatura

O que gostaria era que Lima Barreto entrasse nas escolas, no nosso cânone, pela sua literatura e não exclusivamente pela sua biografia, que é inacreditável — eu, fazendo a pesquisa, ficava impressionada. O pai de Lima é um dos primeiros desempregados da República, vai trabalhar numa colônia de alienados na Ilha do Governador, que era cheia de malária, e leva junto a família. O pai fica louco em 1902, o Lima mesmo é internado duas vezes, morre jovem, então se tem todos os elementos para uma novela. Mas se tem mais do que uma novela aí. Você vê um escritor, ali pulsa a alma de um escritor, um escritor do Brasil.

Torço muito para que este ano não fique só na névoa e que se faça fogo mesmo, que o Lima entre para valer nas escolas e no nosso cânone literário. Se for ver minha bibliografia, perceberá que Lima Barreto é um autor muito estudado e, paradoxalmente, pouco lido, e eu gostaria muito que ele fosse lido. É muito isto: a gente estuda os autores negros, mas a gente não lê esses autores. E o que gosto do Lima Barreto sobremaneira não é a biografia que fiz dele, é aquele escritor que é a todo tempo um projeto imaginativo, é uma subjetividade negra, uma literatura da urgência, que até hoje nós vemos. As populações negras do Brasil sofrem da urgência, não sabem quando vão ser paradas numa blitz, quando vão ser paradas pela polícia, enfim, isso Lima Barreto tem. É uma literatura de urgência.■

Leia mais

- Antonio Candido e sua lufada de ar na forma de ver o Brasil. Entrevista especial com Lilia Moritz Schwarcz, publicada nas Notícias do Dia de 15-6-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A atualidade da obra e a necessidade de ser lida no seu tempo. Entrevista com Lilia Moritz Schwarcz, publicada na revista IHU On-Line, número 498, de 28-11-2016.

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  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

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  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

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