Edição 517 | 18 Dezembro 2017

Um romance que espelha a violência, a opressão e o conservadorismo latino-americano

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Vitor Necchi

Para Karina Lucena, o desfecho catastrófico de Cem anos de solidão sugere que esse modelo precisa ser desarticulado

A professora Karina Lucena leu Cem anos de solidão pela primeira vez durante a graduação em Letras e se encantou de imediato. Depois, para outra atividade do curso de Letras, travou contato com a edição em espanhol, idioma original da obra de Gabriel García Márquez, cujo lançamento completou meio século. Ela acabou pesquisando sobre o livro em seu mestrado. Por conta disso, releu tantas vezes que cansou. “Este ano, participei de um projeto de leitura em voz alta; lemos o livro completo, e a experiência foi tão marcante que fiz as pazes com o romance”, contou em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Na leitura em voz alta, ficou ainda mais visível a primazia técnica de García Márquez e a potência comunicativa do texto.”

Para Lucena, Cem anos de solidão é o livro que mais se sobressai entre os romances que marcaram a literatura do século 20 a partir do que ficou conhecido como o boom da literatura latino-americana. “Há algo na estética de Cem anos de solidão que o distingue, uma mescla entre construção narrativa sofisticada e prosa comunicativa, que não afasta leitores não interessados pelos bastidores da criação literária, que querem apenas (e isso é muito!) ler uma boa história”, explica a professora.

A partir da força alegórica do livro, García Márquez tentou espelhar na família Buendía e na cidade de Macondo “a história latino-americana com sua trajetória de violência, opressão e conservadorismo”. O desfecho catastrófico do romance, conforme Lucena, sugere que “esse modelo precisa ser desarticulado”.

Karina Lucena é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestra em Letras e Cultura Regional pela Universidade de Caxias do Sul – UCS e licenciada em Letras – Língua Portuguesa e Espanhola e respectivas Literaturas pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Leciona e pesquisa na UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que, 50 anos depois do lançamento, segue-se falando tanto em Cem anos de solidão?
Karina Lucena – Cem anos de solidão é provavelmente o livro mais destacado de um conjunto de romances que marcou a literatura do século 20: o celebrado boom da literatura latino-americana. São romances que já nos anos 1960/1970, quando foram publicados, tiveram grande circulação, foram lidos, comentados, traduzidos, premiados, numa mostra da profissionalização do mercado editorial latino-americano. Então, seguimos falando dos romances desse período porque materialmente eles estiveram e estão mais presentes no campo literário, dada essa sedimentação do mercado. Mas o romance de García Márquez está mais presente do que, por exemplo, Museu do romance da Eterna, do argentino Macedonio Fernández, também publicado em 1967, em Buenos Aires. Assim, o argumento de mercado responde parcialmente à pergunta.

Há algo na estética de Cem anos de solidão que o distingue, uma mescla entre construção narrativa sofisticada e prosa comunicativa, que não afasta leitores não interessados pelos bastidores da criação literária, que querem apenas (e isso é muito!) ler uma boa história. Além disso, a posição política de García Márquez, um dos intelectuais mais atuantes na difusão do ideário da Revolução Cubana, converteu Cem anos de solidão numa espécie de manifesto da esquerda latino-americana, em especial pela perspectiva anti-Estados Unidos presente no romance. Com o tempo, Cem anos de solidão vai ser lido em paralelo com livros como As veias abertas da América Latina (1971), de Eduardo Galeano, e, nos anos 1980, com o discurso de García Márquez ao receber Nobel de Literatura – discurso em que conclama as estirpes condenadas a cem anos de solidão a resistirem às ditaduras civis-militares instauradas nos diferentes países latino-americanos – se fortalece a leitura ideológica do romance.

IHU On-Line – O argentino Ricardo Piglia escreveu que via o latino-americanismo de García Márquez como profissional. O que ele pretendia com esta afirmação?
Karina Lucena – Se voltarmos à comparação que apresentei antes, entre García Márquez e Macedonio Fernández, dá pra dizer que Ricardo Piglia está mais para Macedonio. A tradição literária argentina tende a privilegiar romances de cunho mais experimental e, justamente por isso, de circulação mais restrita. Essa afirmação está no primeiro tomo de Os diários de Emilio Renzi (2015), e teria sido a sensação de Piglia ao ler Cem anos de solidão em 1967 (Piglia tinha então 26 anos). Parece-me que a afirmação de Piglia registra tensões importantes do campo literário: qual a função pública do escritor, qual o limite entre literatura e política, qual o valor estético de um livro comercialmente exitoso. Talvez Piglia leia García Márquez com certa desconfiança por vincular-se a essa tradição argentina da ruptura, da experimentação, e não do modelo comunicativo adotado por García Márquez.

IHU On-Line – O mesmo Piglia enxergava demagogia e tom festivo em Cem anos de solidão. Em que embasou este juízo? Concorda com ele?
Karina Lucena – Essas afirmações de Piglia estão no mesmo texto, Os diários de Emilio Renzi. Quando fala em tom festivo, Piglia compara García Márquez a Jorge Amado, "reclamando" de um viés mais tropical (natureza exuberante, sexualidade à flor da pele etc.), um tipo de compreensão sobre o que é ser latino-americano que gerou uma série de estereótipos. De novo, o parecer de Piglia sobre Cem anos de solidão parece estar marcado por aquilo que a tradição argentina entende como literariamente exemplar, que se afasta do tipo de narração que interessa a García Márquez. Gosto muito da aproximação feita por Piglia entre García Márquez e Jorge Amado, dá uma notícia da força do brasileiro em contexto latino-americano, embora essa comparação, como todas, exija uma série de mediações. Minha sensação é que há um desencanto em Cem anos de solidão que contradiz a leitura de Piglia, mas como se trata de uma anotação muito rápida em um diário, é difícil saber o que embasou a leitura.

IHU On-Line – O que Cem anos de solidão representa no plano das ideologias?
Karina Lucena – Cem anos de solidão, talvez mais pela atuação política de García Márquez do que pelo livro em si, se consolidou como reação ao assim chamado imperialismo norte-americano. Essa é a posição ideológica mais aparente quando lemos o livro como uma alegoria da América Latina. Mas também está presente no romance a crítica irônica à política colombiana, por exemplo, quando o Coronel Aureliano Buendía chega à conclusão de que a única diferença entre conservadores e liberais é que uns vão à missa das oito e os outros na das cinco. Generalizando muito, em contexto latino-americano o livro parece assumir um ponto de vista antiestadunidense; em contexto colombiano, apresenta-se como uma rejeição aos dois partidos que se alternavam no poder.

IHU On-Line – Do ponto de vista formal, da escrita, que considerações se pode fazer sobre a obra?
Karina Lucena – A principal é sobre a construção do narrador. Um narrador em terceira pessoa que se aproxima das diferentes personagens e se funde a elas gerando momentos de uso exemplar do discurso indireto livre. Trata-se de técnica bastante complexa, mas totalmente natural na construção do romance, que assume o tom dos contadores de história da tradição popular. Nesse sentido é que se constrói o famoso realismo mágico, que virou uma das marcas registradas da narrativa de García Márquez. Esse narrador pensado não para julgar, e sim para pôr em cena as perspectivas dos personagens, consegue enunciar episódios absurdos para uma lógica cartesiana sem qualquer estranhamento, já que são possíveis no âmbito do romance, verossímeis dentro daquele pacto narrativo.

IHU On-Line – A senhora faz referência em um artigo seu acerca do machismo verificado em determinadas partes do romance. Que trechos são estes? E esta leitura crítica é possível apenas na atualidade ou na época do lançamento já seria possível?
Karina Lucena – Pra ficar com um exemplo brutal, o Coronel Aureliano Buendía se casa com uma menina de nove anos. Embora esse tipo de violência possa ser uma prática relativamente naturalizada na história, me parece um dever da crítica do presente registrar o problema dessa naturalização. Com a força da crítica feminista atualmente, serão levantadas cada vez mais questões sobre a maneira como a mulher aparece na literatura, e episódios como esse, que há alguns anos podiam ser lateralizados, hoje não passam despercebidos, num movimento importante de atualização da crítica.

IHU On-Line – O escritor Rafael Darío Jiménez, responsável pela casa museu de García Márquez, afirmou que “Cem anos de solidão se tornou a metáfora mais visível que se pôde criar sobre a América Latina. Essa família Buendía está em todos os nossos países”.
Karina Lucena – A frase me parece acertada, embora um tanto categórica. Essa força alegórica do livro é um de seus traços mais comentados, o quanto García Márquez tentou espelhar nos Buendía, em Macondo, a história latino-americana com sua trajetória de violência, opressão e conservadorismo. Com o desfecho catastrófico do romance (a cidade e a família são riscadas do mapa), a mensagem final é que esse modelo precisa ser desarticulado.

IHU On-Line – Fale de sua experiência pessoal. Quando leu Cem anos de solidão pela primeira vez e qual foi a sensação? O que lhe é mais marcante neste romance e por quê?
Karina Lucena – Li o livro na graduação em Letras. Um professor de literatura brasileira apresentou, no primeiro dia de aula, uma lista com o seguinte título: Indicações de leitura (pré-requisitos da disciplina Literatura Brasileira). Cem anos de solidão estava na lista. Gostei já na primeira leitura. Lembro de ter sido trabalhoso identificar quem era quem nas repetições de Aurelianos e José Arcadios, mas nada desestimulante. Depois li em espanhol na disciplina Literatura hispano-americana e ainda tenho esse exemplar rabiscado com dúvidas de vocabulário. Acabei escolhendo o livro como tema de mestrado, li e reli tantas vezes que cansei. Este ano, participei de um projeto de leitura em voz alta; lemos o livro completo, e a experiência foi tão marcante que fiz as pazes com o romance. Na leitura em voz alta, ficou ainda mais visível a primazia técnica de García Márquez e a potência comunicativa do texto.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição