Edição 516 | 04 Dezembro 2017

Homo Deus e a grande revolução algorítmica no século XXI

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Ricardo Machado

Os professores Lucas Luz e Gilberto Faggion analisam a obra da Yuval Harari e dissecam os principais pontos debatidos pelo historiador israelense

Yuval Noah Harari tornou-se um dos escritores mais conhecidos no mundo por sua obra Sapiens – Breve História da Humanidade (Porto Alegre: LP&M, 2017) e seu livro escrito mais recentemente, Homo Deus (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), segue o mesmo caminho de sucesso editorial. Os professores da Unisinos Lucas Henrique da Luz e Gilberto Antonio Faggion, que apresentaram a obra no IHU no dia 16-11-2017, debatem, em entrevista por e-mail, os principais pontos da obra.

Embora o termo algoritmo tenha se tornado mais utilizado recentemente, sobretudo por conta da revolução digital, Harari sustenta que desde a Revolução Agrícola os humanos, ou os sapiens, para usar sua própria terminologia, fazem uso de operações algorítmicas. Contudo, a capacidade das novas tecnologias de processarem algoritmos no século XXI poderão transformar radicalmente “as democracias que conhecemos”, situa Faggion. “Nas próximas décadas, afirma o autor, é provável que vejamos mais revoluções como as provocadas pela internet, nas quais a tecnologia vai se antecipar à política”, complementa.

Lucas chama atenção para a forma como o humanismo tipicamente moderno vem dando lugar a uma nova forma de relação, onde “estamos desacoplando inteligência e consciência”. Além disso, sobre a ampliação da capacidade de processamento, diz que “a capacidade de compreender e apreender os algoritmos e os processamentos de dados que movem uma vida e a vida humana de maneira mais geral é muito maior, permitindo maiores e mais profundas interferências no ser humano, até mesmo a sua superação.

Lucas Henrique da Luz é graduado em Administração, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos e doutor em Administração pela Unisinos e pela Université de Poitiers, na França. Participa da coordenação do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Atualmente é professor na Unisinos.

Gilberto Antonio Faggion é graduado em Administração e Comércio Exterior pela Unisinos e mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Participa da coordenação do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Atualmente é professor na Unisinos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os principais pontos abordados por Harari na obra Homo Deus?

Gilberto Antonio Faggion – O autor argumenta que hoje os humanos controlaram os três maiores males experimentados pela humanidade: fome, pestes e guerra. Diante disso, questiona o que vamos fazer conosco no século XXI, o que será prioridade na agenda humana. Então ele aponta que é provável que os humanos busquem atingir a imortalidade e encontrar a chave para a felicidade terrena. Com isso, estão tentando promover-se à condição de deuses. No entanto, a mesma tecnologia que poderá levá-los a ser deus, poderá torná-los irrelevantes, pois a própria técnica se tornaria deus e os humanos seriam um acessório dela. Nesse sentido, os humanos seriam considerados apenas como instrumentos para a criação da internet de todas as coisas. Uma vez cumprida essa missão, o Homo sapiens desapareceria, pois seria um algoritmo obsoleto. Esse sistema de processamento de dados cósmico seria como Deus. Estaria em toda a parte e controlaria tudo, e os humanos estariam destinados a se fundir dentro dele.

Lucas Henrique da Luz – Há vários pontos relevantes abordados por Harari, tais como: a superação dos três grandes males que assolaram a humanidade por séculos (fome, pestes e guerras); o destaque dos fundamentos ao Homo sapiens enquanto “centro” do planeta, centro da vida e toda a lógica do Antropoceno ; a forma como o sapiens significa sua existência e nesse contexto a relação próxima entre ciência e religião e não a sua oposição; a centralidade do humanismo na modernidade e os seus diferentes ramos; a forma como estamos desacoplando inteligência e consciência; o fortalecimento dos dados (dataísmo) e dos algoritmos como religião; a superação do humano justamente pela expressão suprema da sua concepção – a valorização extrema e indivisível da vida humana; dentre outros.

Porém, todos estes pontos do livro, e muitos outros que poderiam ser acrescentados, são trazidos para convergir em uma direção, qual seja, mostrar que superados os grandes desafios da humanidade a grande agenda é agora (e será cada vez mais) a busca da divindade por parte do sapiens. E, para tal, a busca da imortalidade e da felicidade permanente por parte dos humanos. Fato este que expressa justamente o ápice do humanismo, a valorização da vida – como coloquei antes, mas se expressa pela transformação desta (da vida) e, por que não, pela transformação da existência humana, em algoritmos e fluxos de dados. Vida e existência passam então a ser um problema técnico; podem ser dominados, influenciados e manipulados pela técnica, pelo dataísmo e por manipulações genéticas. É justamente esta “evolução” (ou seria involução?) técnica que tem a vida (eterna e feliz) como foco, que traz a superação do homem, do sapiens e dos paradigmas do humanismo. Será ela a passagem para tornar o ser humano irrelevante, dispensável, quem sabe, inexistente? Na forma como é hoje, se tornará uma subespécie. Ter-se-á uma nova era, governada pelos algoritmos, pelos dados, por seres inorgânicos e, talvez, por um conjunto pequeníssimo de “super-humanos”, pós-sapiens. Humanos semelhantes aos que conhecemos e somos hoje, deverão tornar-se uma subespécie – espécie inferior e, quiçá, descartada. Na realidade, como o autor mostra, deverão ser criadas relações entre seres inorgânicos e/ou super-humanos e esta subespécie, que não podemos prever de que forma ocorrerá. O certo é que não haverá o humanismo como base e, ao que se tem indicação, colocarão seres como nós em um nível elevadíssimo de não protagonismo.

IHU On-Line – Como Harari faz, em Homo Deus, uma espécie de história do presente ao levar em conta as transformações tecnológicas a que estamos submetidos?

Gilberto Antonio Faggion – Ao descrever várias das transformações tecnológicas atuais formadas por duas disciplinas-mãe: a ciência da computação e a biologia, especialmente na Parte III - O Homo sapiens perde controle, ele acaba por documentar e relatar uma série de exemplos e evidências de fatos de nossa época, pensando tanto no hoje quanto no amanhã, aliás, o subtítulo do livro é "Uma breve história do amanhã". Por exemplo, descreve como Google e Facebook e outros algoritmos são hoje oráculos oniscientes, que podem muito bem evoluir e se tornarem soberanos, ou seja, definitivamente comandarem o que os humanos irão decidir. Nesse sentido, muitas empresas do Vale do Silício buscam não só influenciar o mundo atual, como também definir as regras e os rumos do "jogo de amanhã".

Outro exemplo disso é quando Harari indica que se as condições de processamento de dados mudarem novamente no século XXI, as democracias que conhecemos poderão declinar e até mesmo desaparecer, porque não processarão os dados com eficácia suficiente. Nas próximas décadas, afirma o autor, é provável que vejamos mais revoluções como as provocadas pela internet, nas quais a tecnologia vai se antecipar à política.

Nesse cenário, os eleitores comuns estão começando a sentir que o mecanismo democrático não mais lhe confere poder. Isso os deixa inseguros e tendem a optar por posturas mais conservadoras, na tentativa de retomar esse poder. Fato que já é constatável, por exemplo, na saída do Reino Unido da Comunidade Europeia (Brexit ) e na eleição americana de Trump. O mundo está mudando em toda a sua volta, e eles não compreendem como e por quê. Harari descreve que no início do século XXI a política está desprovida de grandes visões e que governar tornou-se meramente administrar.

A partir desses e de vários outros exemplos atuais, o autor argumenta que o dataísmo que se desenvolve no presente é o primeiro movimento desde 1789 a criar um valor realmente inovador: o da liberdade de informação. E alerta que não devemos confundir liberdade de informação com o velho ideal liberal da liberdade de expressão.

Também, o autor acaba por registrar tendências comportamentais de alguns humanos no presente, como a ideia de que estar desconectado do fluxo de dados acarreta o risco de perder o próprio sentido da vida. Muitos humanos no presente se questionam: de que adianta fazer ou experimentar qualquer coisa se ninguém souber disso, e se isso não contribuir para a troca global de informações? Ou seja, os dataístas acreditam que experiências não têm valor se não forem compartilhadas e que não precisamos – na verdade não podemos – encontrar significado em nosso interior. O novo lema é: “Se você experimentar algo – grave. Se gravar algo – faça upload. Se fizer upload de algo – compartilhe”. De alguma maneira temos de provar a nós mesmos e ao sistema que ainda temos valor. E o valor, nesse contexto apresentado, reside não em ter tido experiências (como na visão humanista), e sim em fazer delas um fluxo livre de dados.

Lucas Henrique da Luz – Se pegarmos por base a teoria da complexidade e uma lógica de tempo não linear, onde a história comporta ao mesmo tempo avanços e retornos, idas e vindas, continuidades e rupturas, que muitas vezes podem parecer verdadeiros paradoxos, parece-me, então, que podemos colocar o trabalho de Harari como algo que mistura passado, presente e futuro. Até porque, a sua separação de maneira mais rígida, talvez seja produto da modernidade e sua mania de purificar. Modernidade, que pelo trabalho de Harari no livro, está vendo ruir seus paradigmas de sustentação; está continuando ao extremo e, com isso, sendo superada.

Penso que Harari mistura passado, presente e futuro quando, por exemplo, mostra questões como o antropoceno, o desacoplamento entre inteligência e consciência, as narrativas intersubjetivas que colocam os humanos cooperando a partir de determinados padrões e papéis, dentre outros. São aspectos que Harari desenvolve no livro e que podem ser considerados verdadeiras assinaturas, perpassando e mesclando diferentes temporalidades. E são essas assinaturas que ele bem trabalha no livro (não chama assim, o termo assinatura é colocado aqui por mim), essas continuidades que citei nas frases anteriores, que geram as disrupções que nos fazem encontrar as tecnologias que, ao expressar o valor máximo da vida humana (projeto histórico e do presente e do futuro), levarão justamente à superação do humano.

Vejamos de forma um pouco mais concreta. A lógica da vida sendo organizada enquanto algoritmo(s), não é algo do presente apenas ou algo futurista, ainda que se intensifique atualmente e se intensificará ainda mais no futuro. É algo que ocorria já no passado, talvez principalmente a partir da Revolução Agrícola e com o advento da escrita, como mostra o autor. A vida e suas relações como conjuntos de algoritmos já aparecia, por exemplo, no antigo Egito dos Faraós ou mesmo nos Impérios Europeus, bem como se faz presente no sistema educacional de hoje, no sistema de saúde, no funcionamento de uma organização ou de uma máquina de café, como traz o livro. Porém, isto que parece uma simples continuidade de tecnologias (processos como tecnologias) tem mudanças significativas. A sua lógica pode permanecer a mesma, mas a capacidade de gerar, armazenar e processar informações destes algoritmos foi ampliada milhões de vezes. As tecnologias como a inteligência artificial, por exemplo, podem ser encontradas há mais tempo. Porém, elas se modificaram e se modificam a ponto de que a lógica é a mesma, mas a capacidade de compreender e apreender os algoritmos e os processamentos de dados que movem uma vida e a vida humana de maneira mais geral é muito maior, permitindo maiores e mais profundas interferências no ser humano, até mesmo a sua superação.

Assim, a capacidade de interferir nos algoritmos que mobilizam sensações e o ser e fazer dos humanos ampliou-se enormemente por avanços de tecnologias da engenharia biológica, da engenharia cibernética e de seres inorgânicos. Estas mesmas tecnologias ampliam nossa capacidade de criar realidades intersubjetivas, de misturar realidade e ficção, que são fundamentais para mobilizar o ser e fazer da cooperação dos sapiens. Também aproximam cada vez mais ciência e religião. Questões que apesar de não serem novas, intensificam-se cada vez mais, sendo realmente uma história do presente, mas também do passado e do futuro que, paradoxalmente, ao continuar no presente um projeto histórico humanista, deverá levar, no futuro, a sua superação. É um presente que, a partir das tecnologias que temos hoje, continua o passado, se projeta sobre o futuro e, paradoxalmente, ao dar conta de uma continuidade em expressão máxima, leva e levará a profundas rupturas, trazendo espécies, seres e relações que talvez não possamos prever. Diria eu que é a expressão da complexidade, onde passado, presente e futuro vivem em momentos de aparente caos ou organização, onde tecnologias e paradigmas continuam e rompem, vivendo conjuntamente até que grandes transformações ocorram, não linearmente traçadas.

IHU On-Line – Quais as principais críticas que a obra faz?

Gilberto Antonio Faggion – A obra traz alguns questionamentos ao citar que a política está desprovida de maiores objetivos e ideais e que governar tornou-se administrar. Harari argumenta que as decisões sobre o que, por exemplo, precisa ser feito quanto ao aquecimento global e ao perigoso potencial da inteligência artificial, não pode ser simplesmente deixado à mão do mercado, pois é cega e invisível e, se deixada por sua própria conta, poderá fracassar. Ainda, é provável que estruturas novas e mais eficientes vão se desenvolver para assumir o lugar das atuais políticas, mas a questão é quem vai construir e controlá-las.

Ainda, no final do livro, Harari levanta três questões que levam a uma reflexão crítica do que argumentou e exemplificou ao longo da obra:
1) Será que os organismos são apenas algoritmos, e a vida apenas processamento de dados?
2) O que é mais valioso – a inteligência ou a consciência?
3) O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando algoritmos não conscientes mas altamente inteligentes nos conhecerem melhor do que nós nos conhecemos?

Lucas Henrique da Luz – Para responder à questão citarei algumas constatações e “projeções” que o autor faz e que podem ser consideradas críticas, mas adianto que, na minha perspectiva, elas convergem para uma crítica ou constatação que parece ser central na sua obra. Como exemplo das diversas constatações e projeções críticas que o autor traz eu citaria a crítica ao antropoceno e a uma superioridade artificial e predatória assumida pelos humanos; a dificuldade de sairmos de uma lógica de “progresso”, de busca constante de superação, de avanço técnico/científico, ainda, desvinculando neste processo inteligência e consciência; o descontrole e, porque não, a falta de consciência em relação ao momento em que chegamos, no qual não podemos mais pisar nos freios e somos cada vez menos sujeitos; a excessiva autovalidação do ser humano; nossas falsas compreensões das relações entre ciência e religião, bem como nossa cada vez menor capacidade de distinguir realidade e ficção; dentre outros.

Na minha percepção, a obra usa estas e um conjunto de outras constatações e projeções críticas como forma de embasar uma crítica maior: o fato de estarmos construindo, nesta transição epocal que nos leva para lá da modernidade, “uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética” . Ou seja, Harari parece evidenciar na sua obra que estamos para além da relação técnica e ética, ciência e religião. A própria técnica cada vez mais valida os princípios éticos, e a religião é cada vez mais a técnica – o dataísmo, a inteligência artificial. Assim, acabamos concebendo a vida enquanto um problema técnico, da engenharia algorítmica, de processamento de dados e vemos nisso a possibilidade de manipularmos a vida eterna e feliz: expressar a vida humana enquanto valor máximo, dando a ela eternidade e felicidade constante, assumindo assim o papel de Deus. Ao fazer isso, consciente ou inconscientemente, estamos colocando o protagonismo na técnica, não no humano e na vida humana, reforçando o seu processo de autovalidação. Estamos criando, quem sabe, um processo sem sujeitos (pelo menos se pensarmos os humanos como sujeitos) levado a cabo por seres inorgânicos ou então, por uma pequeníssima elite de super-humanos. Como serão as relações entre estes super-humanos ou os seres inorgânicos e os sapiens (uma provável subespécie)? Não sabemos. Mas, a julgar pela forma como o sapiens se relacionou com as demais espécies, com os animais, não temos muitas razões para sermos otimistas, como mostra Harari. E mais: contribuímos e desejamos tudo isso, acreditando que será a nossa salvação; será a possibilidade de sermos felizes e “eternos de fato”.

IHU On-Line – Como as transformações científicas a partir do século XVI transformaram a noção de Deus?

Gilberto Antonio Faggion – A ciência moderna, que se desenvolve a partir do século XVI, faz uma aliança e um acordo com uma "religião" específica, o humanismo. Este rejeita a crença em um grande plano cósmico, sendo que a ciência passa a dar aos humanos a sensação de domínio sobre o mundo, interferindo diretamente nele, não dependendo mais de algum ser transcendente para interferir por eles. A ciência e a tecnologia modernas conferem aos humanos poderes que excedem em muito os dos antigos deuses.

A modernidade fez um contrato com os humanos, no qual concordam em abrir mão de significado em troca de poder, sendo que as coisas simplesmente acontecem e a vida moderna consiste numa constante busca de poder num universo destituído de significado. Espera-se que as experiências dos humanos deem significado ao grande cosmo, que criem um significado sem significado, que se adquira fé na humanidade. Somos a fonte suprema de significado e nosso livre-arbítrio é a mais alta de todas as autoridades.

No humanismo, são os nossos sentimentos que proveem significado. Tanto é que o humanismo trouxe um novo método de estar em contato com a autoridade e de adquirir conhecimento. Na Europa medieval, a fórmula era: Conhecimento = Dados empíricos x Matemática. No humanismo é: Conhecimento = Experiência x Sensibilidade. A visão humanista da vida como uma sequência de experiências tornou-se o mito que fundamenta numerosas indústrias modernas, do turismo à arte.

No entanto, a aliança que conecta ciência e humanismo pode muito bem desmoronar e dar lugar a um tipo muito diferente de trato, entre a ciência e alguma nova religião pós-humanista. Ou seja, a visão humanista estaria por ser superada por uma tecnorreligião, a qual está associada justamente aos avanços científicos. Pode-se prometer a salvação por meio de algoritmos e genes. Surge o dataísmo, como se fosse Deus, para o qual o Universo consiste em um fluxo de dados e o valor de qualquer fenômeno ou entidade é determinado por sua contribuição ao processamento de dados. No dataísmo os humanos passam a ser secundários nesse processo, pois não passariam de algoritmos. Além disso, o autor argumenta que não há razão para pensar que algoritmos orgânicos (humanos) possam fazer coisas que algoritmos não orgânicos (inteligência artificial) não serão capazes de igualar ou de superar.

Lucas Henrique da Luz – Não sou especialista e nem mesmo um leigo conhecedor do tema, então poderei trazer algumas coisas imprecisas – o que pode ser bom também. Assim, valendo-me da leitura do livro e de outras resenhas sobre ele, inicio a resposta trazendo o fato de que Harari mostra que os caçadores-coletores eram animistas, ou seja, percebiam os humanos como outro animal e não um ser superior. Em uma etapa posterior, o homem passa a se perceber enquanto criação única, imagem e semelhança de Deus. Nesse sentido, Harari mostra que o velho testamento coloca nós humanos nesta condição, uma vez que não há como reconhecer o animal dentro de nós, pois isto negaria o poder da Criação, o poder de Deus e sua autoridade. Mostra ainda que esta concepção, assim como a bíblia, foram produtos da Revolução Agrícola. Ou seja, com ela reforçamos as religiões agrícolas que de uma ou de outra forma justificaram a superioridade humana perante os outros animais.

A teologia, a mitologia e a liturgia de religiões como o Judaísmo, o Hinduísmo e o Cristianismo contribuíram na justificação da superioridade humana e a consequente possibilidade de exploração dos animais, por exemplo. Já, o advento da revolução científica gerou as religiões humanistas, mantendo e quiçá ampliando a superioridade do valor do humano, porém tendo uma substituição dos deuses do período anterior, pelos humanos. O Homo sapiens enquanto portador de uma essência única e sagrada, de alma, de inteligência e consciência (coisas que Harari questiona no livro) se percebe capaz de compreender o universo e ter autoridade para com ele, passando assim a substituir os deuses. Passa a se autovalidar, não negociando com as demais espécies e mesmo silenciando os deuses. É o que Harari chama no livro de “one man show”. Ele praticamente age sem praticamente nenhuma obrigação, responsabilidade, cuidado no mundo. Ou seja, passou-se de um plano cósmico enquanto significador da vida, para um paradigma onde estas religiões humanistas passam a adorar a humanidade e esperam que os humanos atuem como Deus (este é o projeto em curso). As experiências humanas passam a dar significado ao cosmos e não o inverso. E é justamente este levar ao extremo o projeto humanista, colocando o Homo sapiens enquanto Homo Deus, que leva à superação do paradigma humanista e traz novos parâmetros à religião, uma vez que agora o Deus está baseado nos algoritmos, nos fluxos de informação, na inteligência artificial e no big data. Temos então a religião dos dados e, quem sabe, outras tecnorreligiões.

IHU On-Line – Quem é ou o que é o Homo Deus?

Gilberto Antonio Faggion – Os novos projetos do século XXI – alcançar a imortalidade, a felicidade e a divindade – têm o propósito de superar e não de salvaguardar os humanos, eles podem resultar na criação de uma nova casta super-humana que abandonará suas raízes liberais. Então o liberalismo entrará em colapso. Esses super-humanos teriam experiências fundamentalmente diferentes das do Homo sapiens. Para o tecno-humanismo, que ainda considera os humanos o ápice da criação e se atém a muitos valores humanistas tradicionais, o Homo sapiens, tal como conhecemos, já esgotou o seu curso histórico e não será mais relevante no futuro; portanto, deveríamos usar a tecnologia para criar Homo Deus – um modelo humano muito superior.

O Homo Deus manterá algumas características humanas essenciais, porém usufruirá igualmente de aptidões físicas e mentais aprimoradas, que o capacitarão a manter-se firme mesmo contra os mais sofisticados algoritmos não conscientes. Os humanos devem ativamente fazer o upgrade de suas mentes se quiserem permanecer no jogo. Ainda, é bem provável que os futuros upgrades da mente humana reflitam necessidades políticas e forças de mercado.

Deve-se ressaltar que apenas uma elite da humanidade se tornaria esse Homo Deus, uma vez que grande parte dos humanos seria militar e economicamente dispensável. Mas algumas pessoas continuariam a ser indispensáveis e indecifráveis, constituindo uma elite diminuta e privilegiada de humanos elevados a um grau superior. Esses super-humanos seriam dotados de aptidões ainda desconhecidas e de uma criatividade sem precedentes, o que permitiria que tomassem muitas das decisões mais importantes no mundo.

Harari sustenta que o Homo sapiens não é o ápice da criação ou o precursor de algum futuro Homo Deus. Os humanos seriam apenas instrumentos para a criação da internet de todas as coisas que eventualmente poderia se estender para fora do planeta. Esse sistema de processamento de dados cósmico seria como Deus. Estaria em toda a parte e controlaria tudo, e os humanos estariam destinados a se fundir dentro dele. O Homo sapiens se tornaria um algoritmo obsoleto.

Lucas Henrique da Luz – O Homo Deus poderá ser um tipo de super-humano, talvez podemos dizer de pós-humano: uma pequeníssima casta de “sacerdotes” dotadas do acesso aos artefatos inorgânicos, acoplados ao seu próprio corpo muitas vezes, com formas de pensar e processar diferenciadas, com conhecimentos “técnicos” elevadíssimos (nível elevadíssimo de inteligência – ou um tipo dela – e não de consciência). Ou ainda, em outra hipótese, o papel de Deus, o Homo Deus poderá ser constituído de seres inorgânicos. Estes terão tamanha capacidade que não precisarão mais dos sapiens e nem mesmo destes super-humanos, destes pós-sapiens. Enfim, o certo é que o custo de chegarmos a Homo Deus, em qualquer uma das “formas” que tentei expressar nesta resposta, ou na mistura delas, será (grosso modo) entregar nossa liberdade às máquinas, à técnica e significará a nossa superação.


IHU On-Line – Quais são os limites e os avanços da obra?

Gilberto Antonio Faggion – A contribuição maior da obra está na forma como o autor traz a questão dos algoritmos para o público em geral, permitindo facilmente a compreensão do que são e de suas implicações. Destina várias e várias páginas do livro descrevendo e exemplificando a concepção de organismos como algoritmos, a organização da sociedade em formato de algoritmos e como eles tornam os humanos inúteis econômica e militarmente.

Já quanto aos limites, me parece que o principal é focar demais na tecnologia e nas suas proezas, como se fosse certo que ela vai dar conta de tudo, resolver os problemas humanos e inclusive não precisar mais deles, superando-os. Acaba por sustentar uma narrativa um tanto catastrófica e distópica, que vai ficando mais forte nos capítulos finais, evidenciando a ideia de que a técnica fugirá do controle humano, fazendo-o desaparecer. Há uma forte ideia de que o humanismo será devorado pelo progresso tecnológico. Ou seja, o mundo atual, dominado pela ordem do pacote liberal do individualismo, dos direitos humanos, da democracia e do livre mercado, será solapado pela ciência do século XXI.

Talvez, isso ocorra mesmo, o que não quer dizer que seja o fim da humanidade, mas sim um cenário típico de um mundo pós-liberal, no qual haverá também outras "inovações" humanas além das tecnológicas, que junto a estas podem tornar o mundo um lugar muito melhor para se conviver e compartilhar, mais justo e inclusivo, mais equilibrado e integrado ecologicamente e por aí vai. Basta pensar nos potenciais da tecnologia para facilitar uma governança autônoma da sociedade, para a geração de melhores resultados econômicos numa sociedade sem classes, para a integração ecológica dos humanos com os demais seres e com o Planeta. A questão é como num mundo pós-liberal se empregará a tecnologia, para a criação de sociedades melhores ou para a remodelação e manutenção das velhas injustiças.

Nesse contexto, o livro descreve os grandes avanços da razão técnica, a ponto de praticamente deificar a tecnologia, mas não consegue formular a razão ética correspondente a isso. Há a descrição de um avanço sem precedentes da cultura material, mas fica devendo em termos de apresentar um horizonte claro de valores, metas e ideais. O mundo ético é fruto de uma árdua conquista da civilização, que precisa ser constantemente desenvolvido diante do rápido avanço tecnológico. Nisso o livro deixa a desejar.

Lucas Henrique da Luz – A obra tem, para mim, um mérito grande ao ler cenários pós (moderno, humano etc.) de uma maneira um tanto moderna, a das macronarrativas. Fato este que torna a obra muito rica e capaz de trazer alertas, histórias, projeções, fatos, bastante aguçados, que já mencionei. Assim, creio que tem como grande mérito provocar reflexões sobre um tempo em que o paradigma dominante técnico fundamenta a nossa existência e, ao mesmo tempo, fundamenta-se a si próprio, cada vez mais. Então, consegue questionar algo que se tornou ao mesmo tempo o existir e o fundamento da existência, o que me parece algo bastante difícil e meritório. Além disso, creio que consegue mostrar a continuidade entre o que trabalhou no livro anterior – o que ocorreu para se chegar ao sapiens que conhecemos, com a tentativa atual de nos tornarmos Homo Deus (foco desta última obra). Neste sentido, penso que o mérito maior está em mostrar uma “continuidade histórica” que gera seu próprio esgotamento, gera descontinuidades.

Enquanto limites, não há como uma obra desta dimensão não ter faltas. O próprio autor fala disso. Penso que no livro não fica claro o que ele percebe enquanto inteligência artificial. Mesmo outros avanços, como o big data, o autor trata deles como se houvesse certo consenso, um “saber o que são”, do que se tratam e até mesmo de que vão avançar em determinada direção. Além disso, outro limite tem sido apontado no sentido de que o autor pode assumir uma posição muito distópica, o que acabaria reforçando um paradigma tecnófilo, pois parece que não há saídas perante a tecnologia e seu avanço. Harari afirma que não há como pisar nos freios e, ao mesmo tempo, diz que não há liberdade de decisão perante algoritmos que compõem a nossa vida. Daí, por exemplo, a distopia. Comento isso na questão seguinte e acredito que falar de limites e pontos fortes seja tarefa para a leitura de cada um e cada uma.


IHU On-Line – O livro aponta para a atual crise do humanismo e sugere que no futuro estaríamos diante do imperativo dos bancos de dados e dos algoritmos. Segundo a leitura de Harari, pode-se afirmar que depois do Homo Deus virá o Big Data Deus? Como o autor acena para o futuro?

Gilberto Antonio Faggion – O autor afirma que é provável que um exame crítico do dogma dataísta seja não apenas o maior desafio científico do século XXI como também o mais urgente projeto político e econômico. Mas, ainda que o dataísmo esteja errado e os organismos não sejam apenas algoritmos, isso não impedirá necessariamente que o dataísmo tome conta do mundo. Nesse sentido, para poder alcançar a imortalidade, a felicidade e os poderes divinos da criação, precisamos processar quantidades imensas de dados, muito além da capacidade do cérebro humano. Assim, os algoritmos farão isso por nós.

Contudo, assim que a autoridade passar de humanos para algoritmos, os projetos humanistas podem tornar-se irrelevantes. O indivíduo estaria se tornando um pequeno chip dentro de um sistema gigantesco que, na realidade, ninguém entende. Do ponto de vista dataísta, podemos interpretar toda a espécie humana como um sistema único de processamento de dados.

Diante disso, o dataísmo ameaça fazer ao Homo sapiens o que o próprio Homo sapiens fez a todos os outros animais. Os humanos renunciam à autoridade em favor do livre mercado, da sabedoria das multidões e de algoritmos externos em parte porque não conseguem lidar com o dilúvio de dados, sendo que atualmente e no futuro ter poder significa saber o que ignorar.

Assim, quanto ao futuro, o autor argumenta que se adotarmos uma visão realmente ampla da vida, todos os outros problemas e desenvolvimentos serão ofuscados por três processos interconectados:
1) A ciência está convergindo para um dogma (dataísmo) que abrange tudo e que diz que organismos são algoritmos, e a vida, processamento de dados.
2) A inteligência está se desacoplando da consciência.
3) Algoritmos não conscientes mas altamente inteligentes poderão, em breve, nos conhecer melhor do que nós mesmos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Lucas Henrique da Luz – Na linha da penúltima questão desejo acrescentar que é difícil apontar o autor como tecnófilo e distópico, fazendo disso uma crítica a ele. Difícil, pois se pegarmos um pouco da evolução das tecnologias e suas promessas de vida mais livre, com tempo ocioso, com uma criatividade podendo ser aplicada a diferentes dimensões da vida etc., veremos que o que alcançamos é uma vida cada vez mais governada por elas, com menos tempo livre/ocioso, com menos liberdade e criatividade, que não aquela no sentido utilitarista/produtivista.

Também preciso ressaltar que, por mais estranho que possa parecer, em algum momento vejo uma leitura compartilhada entre Harari e autores que têm escrito sobre a Revolução 4.0, como por exemplo, Klaus Schwab . Tanto Harari como Schwab alertam ou mostram a fusão cada vez mais intensa entre o físico, o biológico e o digital como potencializadores do processo de transformação vivenciado. Harari vai falar da engenharia biológica, da engenharia cibernética e dos seres inorgânicos que cada vez mais compõem as novidades da nossa realidade. Porém, as consequências possíveis que os autores percebem são muito diferentes. E, ainda, Harari trabalha muito mais a perspectiva histórica que antecede a transição atual, dando uma visão bastante mais complexa do fenômeno. Ou seja, sei que não há comparação entre as obras, mas o que me chama atenção é que apesar de verem, serem e falarem para “audiências aparentemente tão diferentes”, ambos percebem um grau de transformação quem sabe jamais vivenciado e seu motor localizado na fusão anteriormente colocada.

Por fim, para aquelas e aqueles que pensam que tudo isso seja um “papo delirante”, longe do presente (nunca apostar no tempo linear), lembro de um fato que ocorreu recentemente. Qual seja, a fundação da igreja Way of the Future , que tem a adoração, culto e desenvolvimento de uma divindade baseada na inteligência artificial, como forma de melhorar a sociedade. Instigante. Ou seria, preocupante? ■

Assista a conferência

Leia mais

- O futuro do capitalismo: uma sociedade com custo marginal zero. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 10-9-2016, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.


- A barbárie da financeirização e a crise do RS. Entrevista especial com Lucas Henrique da Luz publicada na revista IHU On-Line, nº 470, de 17-8-2015.

- A burguesia golpista de 1964. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 19-3-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A contribuição da universidade na modelagem das relações de trabalho. Entrevista especial com Lucas Henrique da Luz publicada na revista IHU On-Line, nº 416, de 29-4-2013.

- Sociedade sustentável. Um debate em ambiente virtual. Entrevista especial com Gilberto Antonio Faggion publicada na revista IHU On-Line, nº 408, de 12-11-2012.;

- Cooperativismo de Trabalho: Avanço ou Precarização? Um estudo de caso. Artigo de Lucas Henrique da Luz publicado na 20ª edição dos Cadernos IHU.

- Fórum Nacional de Economia Solidária. Depoimento de Lucas Henrique da Luz publicado nas Notícias do Dia, de 29-6-2006, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU..

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